quarta-feira, dezembro 24, 2008

Resposta ao JPG

Ó homem, não se amofine, nem leia no meu texto coisas que eu não escrevi. Vamos a alguns factos para esclarecer o seu confuso e angustiado cérebro (que certamente terá um QI de 500 ou até para cima, não estou a pôr isso em causa).

1. O meu texto não é sobre o artigo de Pedro Rosa Mendes (um tipo porreiro, por sinal, além de escritor e jornalista que admiro). Certamente um malai inteligente como você poderia ter compreendido isso. Apenas citei uma frase do texto dele porque vinha a propósito para ilustrar um ponto. Reparou certamente que o exemplo que dei a seguir continua o raciocínio de Pedro Rosa Mendes expresso nessa frase, tal como o seu exemplo sobre os relógios de sol. A verdade é que não se fazem omeletes sem ovos, e o sistema de ensino timorense tem carências muito graves. Isto para além de outros factores, como por exemplo as deficiências ao nível da nutrição nas cruciais fases do desenvolvimento precoce que frequentemente deixam as crianças marcadas para toda a vida.

2. Você diz que:

Nem acho, como "malai", que espetar um ferro no coração de um animal seja um distinto sinal de civilização, de elevação cultural ou sequer de extraordinário "Q.I."

Pessoalmente não sou grande apreciador destas actividades que provocam sofrimento nos animais, embora tenha tido oportunidade ao longo da vida de participar na matança do porco em casa do meu avô aí em Portugal, segurando o animal enquanto lhe espetavam a faca. Os malais também matam animais, como certamente já terá tido ocasião de verificar. Suponho que você também não considera “um distinto sinal de civilização, de elevação cultural ou sequer de extraordinário Q.I.” espetar muitos ferros nas costas de um animal, como se faz na cultura do seu (nosso) país nas touradas, com presença e aplausos das elites culturais da nação, transmissão televisiva e muitos discursos sobre a celebração de uma tradição de séculos.

Sou eu que estou enganado ou haverá um certo tom de sobranceria nesse seu comentário? A civilização ocidental já terá ultrapassado essa fase primitiva de espetar ferros no coração dos búfalos, parece poder ler-se nas entrelinhas. Não se esqueça, por favor, em futuros comentários de comparar também o grau de civilização e de elevação cultural de um povo que alimenta o gado bovino (herbívoro) com carcaças industrialmente transformadas de animais mortos

[http://www.defra.gov.uk/animalh/bse/controls-eradication/causes.html].


3. E continua:

E quem diz matança do búfalo, diz sentido de orientação, diz destreza para a luta corpo-a-corpo ou diz memória genealógica.

Sendo professor terá certamente estudado diferentes teorias da pedagogia e da psicologia, e saberá portanto que há muito boa gente que considera os testes de QI obsoletos. Não me parece que seja preciso eu vir aqui “ensinar o Pai Nosso ao vigário”. Da mesma forma, também deveria saber que as competências da mente humana são plurais, e que é redutor querer pôr tudo no mesmo saco. Howard Gardner tem uma teoria famosa sobre isso. Se você der uma volta aí pelas feiras em Portugal vai certamente ter oportunidade de encontrar ciganos a vender roupa que são muito melhores no cálculo aritmético do que você com todo o seu QI, mesmo que possam não perceber os relógios de sol. Isso não lhes permitirá construir reactores nucleares ou descobrir a cura do cancro, mas permite-lhes fazer outras coisas necessárias ao seu trabalho.
Procurando um bocadinho só na Internet encontrei este excerto que poderá ser útil para o seu esclarecimento:

As pessoas com altas capacidades ou com talentos excepcionais diferem dos outros indivíduos pelas potencialidades que apresentam e pelo elevado nível de execução e concretização de que são capazes nas suas áreas de interesse. Pode ser uma forma de inteligência que se apresenta bastante desenvolvida e estruturada (por exemplo: a lógica-matemática), uma alta habilidade (por exemplo: para a liderança) ou um talento artístico (por exemplo: a criação musical). Tradicionalmente chamam-se sobredotadas a estas pessoas mas o termo tende a ser substituído por "Indivíduo Portador de Alta Capacidade".” [http://www.academiadesobredotados.com/]

É-lhe assim tão difícil aceitar que grande parte dos timorenses possa ter capacidades mentais superiores às suas em certas áreas, como as da “inteligência visuo-espacial” e da “inteligência socio-interpessoal”?

domingo, dezembro 21, 2008

Os malais têm memória de passarinho

É sempre perigoso querer medir inteligências, à maneira daquela corrente da psicologia estadunidense obcecada com QIs. Lembro-me de quando andava na faculdade ter sido cobaia de colegas meus, estudantes de psicologia, que andavam a participar nos esforços dos professores deles para adaptar os testes de QI para a realidade portuguesa. O problema é que os testes desse género medem competências específicas, e um lavrador lá da minha terra pode ter um péssimo resultado neles mas ter por outro lado capacidades e conhecimentos, ligados ao seu labor de amanhar a terra para nela semear a vida, que os doutos psicólogos nem sabem que existem.

Um texto recente do jornalista/escritor Pedro Rosa Mendes que deu muito que falar mencionava a existência de uma geração de timorenses que “chegou à idade adulta e ao mercado de trabalho sem muitas vezes conhecer conceitos como a lei da gravidade, o fuso horário ou as formas geométricas”. Sorri quando li isto no artigo, recordando os seis anos em que dei aulas na universidade em Timor e as muitas vezes em que expliquei nas aulas conceitos básicos, incluindo exercícios como “Se a estátua do Cristo-Rei fica a oito quilómetros daqui, isso significa uma distância de quantos metros?” ou “Se a altura da Maria é cento e cinquenta centímetros, quantos metros mede a Maria?” (os alunos que fizeram a escola primária no tempo colonial português – mesmo os que revelavam muitas dificuldades nas matérias leccionadas nas diversas cadeiras do curso – não tinham normalmente qualquer dificuldade em responder a isto, bem ao contrário de muitos jovens). Escrevi neste blogue em diversas ocasiões textos sobre a necessidade de preparar programas e currículos pensados a partir da realidade local, e não num qualquer gabinete distante por pessoas que sonham com um público-alvo que não existe. Mas não é disso que quero falar agora. O tema de que me ocupo aqui é a existência de algumas competências que os timorenses têm na sua esmagadora maioria e que deixam atónitos os malais que por cá andam. Uma delas é um refinadíssimo sentido de orientação. Todo o timorense sabe sempre para que lado está o mar e qual é a direcção para as montanhas. Daí que o seu sistema de coordenadas geográficas de uso quotidiano seja diferente do nosso. Enquanto o meu limitado cérebro só consegue computar direcções como ir em frente e virar à esquerda ou à direita, os timorenses dão habitualmente indicações como “sa’e” e “tun” (“subir” e “descer”). Isto é complicado de processar quando vou de motorizada com a minha mulher, seguindo as instruções dela para irmos a casa de alguma amiga, e todos os caminhos possíveis no cruzamento são completamente planos!...

Uma outra capacidade que os timorenses em geral têm extremamente desenvolvida é a memória para genealogias complexas, e para os rostos associados a elas. Vindo do ocidente onde, cada vez mais, família significa a família nuclear com poucas caras, fico com um nó no cérebro de cada vez que tento compreender todos os laços de parentesco da família alargada que algum familiar ou amigo me tenta pacientemente explicar. Uma das primeiras coisas que duas pessoas fazem aqui quando se encontram pela primeira vez é começar a explicar áreas geográficas de origem ou de ramificação das respectivas famílias, posicionando-se assim na complicada teia de parentescos e alianças que ocupa um papel central na forma como os timorenses se vêem no mundo. Tudo coisas demasiado complexas para malais, que têm memória de passarinho.

terça-feira, dezembro 02, 2008

Dizem que e uma especie de virus

La na minha terra as pessoas mais velhas dizem que ate parece bruxedo. Os mais novos e instruidos dizem que "e um virus que anda por ai". E contagioso como o fogo em palha seca. Os sintomas mais visiveis sao diarreia e vomitos. O meu filho parece ter sido contagiado por um amigo bebe dele, do meu filho passou para mim e para a minha mulher, na minha familia todos acabaram contagiados, em graus diversos: nos os tres, as minhas duas sobrinhas, a minha irma, o meu irmao e a mulher dele, os meus pais... Alguns tiveram que meter baixa no trabalho. Depois como aparece desaparece. No SAP aconselharam canja de arroz e maca cozida, e andamos uns dias a comer quase so isso.
Ja estamos recuperados felizmente. Mas parece confirmar a regra que diz que fico doente de cada vez que vou a Portugal...

terça-feira, outubro 14, 2008

Hafoin é que são elas

Se o jornalista do telejornal timorense disser a frase:

Prezidente Ramos Horta halo diskursu ida hafoin hatán ba jornalista sira-nia pergunta barak.

O que é que aconteceu primeiro, o discurso ou as respostas às perguntas dos jornalistas? Os velhos falantes de tétum téric não teriam quaisquer dúvidas, ele fez primeiro o discurso. Mas muitos falantes actuais de tétum-praça diriam que o discurso foi só após a sessão de perguntas e respostas. Porquê? É que a palavra “hafoin” parece estar actualmente a passar por um processo de evolução semântica. Da mesma forma que alguns falantes tentam substituir as tradicionais saudações em tétum “bondia” e “bonoite” por “loron di’ak” e “kalan di’ak”, há uma tendência actual para procurar vocábulos autóctones, mesmo que alterando o seu significado. Assim, e de acordo com os falantes de tétum téric que consultei, “hafoin” costumava ser equivalente a “depois é que” ou “depois maka” mas actualmente é também usado com o sentido de “depois de” ou “liutiha/depoizde”.

Ou seja, e de acordo com a acepção mais antiga de “hafoin”:

Prezidente Ramos Horta halo diskursu ida hafoin hatán ba jornalista sira-nia pergunta barak.
=
Prezidente Ramos Horta halo diskursu ida depois hatán ba jornalista sira-nia pergunta barak.

Prezidente Ramos Horta halo diskursu ida liutiha hatán ba jornalista sira-nia pergunta barak.” = “Prezidente Ramos Horta halo diskursu ida depoizde hatán ba jornalista sira-nia pergunta barak.

terça-feira, setembro 02, 2008

E bom estar de regresso

Dois dos meus sobrinhos aqui em Timor

segunda-feira, julho 21, 2008

segunda-feira, julho 07, 2008

Abrandamento ainda

Estive quase uma semana sem Internet e ando, ainda, cheio de coisas para fazer. Aos amigos que me mandarem e-mails a que não respondi nos últimos tempos, tenham lá um bocadinho de paciência que dentro de dias começarei a pôr a correspondência em ordem.

Burmese Days - 1934

There iss nothing I can do. Simply I must wait and hope that my prestige will carry me through. In affairs like this, where a native official’s reputation iss at stake, there iss no question of proof, of evidence. All depends upon one’s standing with the Europeans. If my standing iss good, they will not believe it of me; if bad, they will believe it. Prestige iss all.

George ORWELL – Burmese Days. London, Penguin Books, 2002, pág. 154 [1ªed. 1934]

Nos dias de hoje isto ainda seria verdade? Ou as linhas de separação traçadas pelos poderosos passam agora por outras fronteiras que não a etnia?

Caetano Veloso canta no “Haiti”:
Ou quase brancos quase pretos de tão pobres…


E o doutor Daniel da Barca, no belo romance do galego Manuel Rivas “O Lapis do Carpinteiro”, explica-nos:

«O único bo que teñen as fronteiras son os pasos clandestinos. É tremendo o que pode facer unha liña imaxinaria trazada un día no leito por un rei chocho ou debuxada na mesa por poderosos como quen xoga un poker. (…) Pero, por sorte, esta fronteira irá esvaéndose no seu propio absurdo. As fronteiras de verdade son aquelas que manteñen aos pobres apartados do pastel.» [sublinhado meu]

Manuel RIVAS – O lapis do carpinteiro, 6ªed. Vigo (Galiza), Xerais, 1998, p. 12-13

De bacalhoeiros e outros plebeus

Do conto “Charo A’Loura” (um dos meus preferidos do autor):

«Bem, pois neste filme, Capitães intrépidos, Spencer Tracy fazia de pescador na Terra Nova. (…) E aí entre Spencer Tracy, que no filme se chamava Manuel e era português. Pois bem, esse Manuel, pouco a pouco, vai fazendo o rapaz entrar na razão. Com poucas palavras fá-lo descobrir um mundo desconhecido. O verdadeiro sentido da coragem e do trabalho. Aqueles homens, rudes e sem estudos, reaparecem aos olhos do menino como heróis. Manuel era para ele uma espécie de Ulisses que pescava bacalhau (...)»

Manuel RIVAS – Alma, Maldita Alma. Lisboa, Dom Quixote, 2000, p. 59



sexta-feira, junho 27, 2008

Terra-longe

Kini rasanya aneh bahwa aku begitu terpisah dari persoalan-persoalan itu, yang selama ini menjadi bagian hidup. Aku belum juga nyambung dengan lingkungan ini, (...). Rasanya aku spesies dari dunia lain.

[Ayu Utami – Saman, cet ke-22. Jakarta, Gramedia, 2003, p. 168 (cet ke-1: 1998)]

É uma sensação estranha estar tão distante dos problemas que durante todo este tempo se tornaram parte da minha vida. Também ainda não me integrei neste ambiente (...). Sinto-me como um peixe fora de água.

[Ayu Utami Saman, cet ke-22. Jakarta, Gramedia, 2003, p. 168 (1ºed. 1998) – traduzido para português por JP Esperança]

quarta-feira, junho 25, 2008

Surpreendido

A Internet é uma coisa maravilhosa. Acabo de passar alguns minutos no Google à procura de imagens de algumas pessoas que só conhecia de nome e tive uma grande surpresa ao ver a correspondência entre os nomes e os rostos! A vida às vezes espanta-nos…

Tchuba na bin tchubi

«Chuva há-de vir, nha Venância. Veja que ela anda a rondar por cima de nós. Esta seca maldita não há-de durar toda a vida, não é verdade? E fixe bem. O dia de hoje é diferente do dia de ontem e o de amanhã será diferente do de hoje. Nha Venância sabe. A todo o momento as coisas se modificam. Amanhã todos teremos mais experiência. Quando mais não seja para sabermos dominar melhor o mal e a injustiça que pesa sobre nós.»

[Manuel Ferreira – Hora di Bai, 2ª ed. Lisboa, Portugália Editora, 1963, p. 253]

«Udan sei mai, tia Venância. Haree to’ok nia la’o hale’u iha ita-nia leten. Malisan rai-maran ne’e sei la dura vida tomak, loos ka lae? No hanoin didi’ak to’ok. Loron ohin la hanesan horisehik no loron aban sei la hanesan ida ohin ne’e. Tia Venância hatene. Iha momentu ida-idak buat sira nakfila an. Aban ita hotu sei iha esperiénsia tan. Se la’ós ba buat seluk pelumenus atu ita hatene domina di’ak liu buat aat no injustisa ne’ebé hanehan ita.»

[Manuel Ferreira – Hora di Bai, 2ª ed. Lisboa, Portugália Editora, 1963, p. 253 – tradusaun ba tetun husi JP Esperança]

Saudades de Aquilino

- Que há? Que há? – bramou por duas vezes com a sua voz de trovão.

[Aquilino Ribeiro – O Malhadinhas. Lisboa, Livraria Bertrand, 1958, p. 88 (1ª ed: 1922)]

A mim parece-me que Aquilino Ribeiro deveria ser leitura obrigatória nas aulas de Português Língua Materna das escolas secundárias do nosso país. A bem da nossa língua.




- Qu’est-ce qui se passe ici? Qu’est-ce qui se passe ici? beugla-t-il à deux reprises de sa voix de stentor.

[Aquilino Ribeiro – Les Sentiers du Démon. Paris, Éditions Chandeigne, 2004, p. 89 – traduite par Marie-Noëlle Ciccia & Claude Maffre]



- Saida mak akontese iha-ne’e? Saida mak akontese iha-ne’e? – nia ko’alia maka’as dala rua ho nia lian ne’ebé hanesan rai-tarutu.

[Aquilino Ribeiro O Malhadinhas. Lisboa, Livraria Bertrand, 1958, p. 88 – tradusaun ba tetun husi JP Esperança]


- Ada apa? Ada apa? – dia berteriak dua kali dengan suaranya yang seperti guntur.

[Aquilino Ribeiro – O Malhadinhas. Lisboa, Livraria Bertrand, 1958, p. 88 – diterjemahkan ke dalam Bahasa Indonesia oleh JP Esperança]


- Heta ke akontese her-kede’e? Heta ke akontese her-kede’e? – ú dale huru kui ru los ú-ni’i bo’a mane mege’es bregas.

[Aquilino Ribeiro – O Malhadinhas. Lisboa, Livraria Bertrand, 1958, p. 88 – tradusaun la tokodede pe JP Esperança los Fernanda Correia]

sábado, maio 24, 2008

Ana, uma moça de coragem

Ana Francisco Santos, uma moça que foi submetida a brincadeiras de mau gosto conhecidas habitualmente por praxe, teve a coragem de denunciar os agressores e estes acabam de ser condenados em tribunal. Há muitas Anas por este país que passam por experiências semelhantes e tentam relativizar e desculpabilizar esses actos porque têm medo de "levantar ondas"... Ou talvez tenham receio de encontrar um juiz que tenha sido praxista e que nunca tenha chegado a crescer como ser humano. Neste país de gente "que se fica", de amedrontados perante os poderosos e os prepotentes, a atitude da Ana devia ser um exemplo para todos nós.

***

Alunos da Escola Superior Agrária de Santarém condenados por praxe violenta a caloira


Os sete alunos foram acusados pelo Ministério Público dos crimes de coacção e ofensa à integridade física de uma caloira que foi barrada com excrementos. Um arguido foi considerado culpado do crime de coacção e seis foram considerados culpados do crime de ofensa à integridade física qualificada. A pena reflectiu o sofrimento da caloira, que se constituiu como assistente no processo, refere o Tribunal de Santarém. A sentença é “inédita” em Portugal e “pedadógica”, tal como havia sido pedido ao tribunal, comenta a advogada da antiga caloira. A representante legal dos acusados admite apresentar recurso, mas para já vai analisar a sentença do Tribunal de Santarém.

RTP 2008-05-23




Ainda a praxe…

Cara leitora, imagina que vais na rua e um desconhecido te exige que lhe entregues o Bilhete de Identidade, que removas uma ou mais peças de roupa, que o deixes pintar-te toda a cara e pôr-te pasta de dentes no cabelo. Imagina que ele te diz que tu és pior que um verme, que te manda cantar canções com letras obscenas e que te faz deitar no chão enquanto um gajo que não conheces de lado nenhum faz flexões em cima de ti. Isso é… Bem, isso é agressão, assédio sexual, atentado contra o pudor, ou outras coisas inventariadas no código penal. Imagina agora que o tal desconhecido está vestido com capa e batina pretas. Isso é praxe!
A praxe não é coisa nova, os rituais de iniciação são velhos como a humanidade. Nas sociedades tradicionais a entrada na vida adulta é normalmente precedida de provas que podem assumir a forma de mutilações como a circuncisão e a excisão. Por cá as práticas foram mudando, mas quem nunca ouviu a geração dos nossos pais a dizer coisas como «não é homem quem nunca foi à tropa»? E o mundo militar é pródigo nestas coisas. As provas são tanto mais duras e os rituais mais elaborados e penosos quanto é restrito o acesso ao estado, grau ou instituição de que se quer fazer parte. Um instrutor de uma tropa de elite pergunta ao jovem recruta exausto e ofegante: «Você está cansado? Ai sim? Então faça lá mais trinta flexões… E agora, está cansado? Não? Ainda bem, nós queremos aqui homens de barba rija e com tomates. Venha de lá uma completa de cinquenta!...» Se o infeliz não faz o que lhe pedem é colocado fora do grupo, indigno de pertencer aos “eleitos”: «Então berre aí bem alto para os seus camaradas ouvirem que você é um paneleiro de merda que só presta para o “arre-macho”». Quem não se submete não pode ser um “iniciado”, um “veterano”, e é ameaçado com a ostracização. «Se não fores praxado, não vais fazer amigos na Faculdade».
Antigamente a praxe coimbrã era altamente ritualizada, quando ser estudante universitário era inacessível à maioria da população. O caloiro não podia andar na rua depois das sete, sob o risco de ser apanhado pelas trupes e ser mimoseado com penas como o cabelo rapado. Tinha também “protecções”, como o facto de estar acompanhado pelo pai ou pela mãe na ocasião, por exemplo, poupando assim ao vexame os familiares. A praxe tinha regras que os veteranos tinham também de seguir. A massificação do acesso à universidade, em vez de tornar obsoletos estes rituais, “apimbalhou-os”, pô-los ao nível da sociedade “Big Show Sic”. Entre a praxe desses tempos (a tal “tradição académica” de que eles falam) e a palhaçada actual há a mesma relação que existe entre o confessionário da aldeia dos avós (onde o pároco ameaçava com o fogo do Inferno quem não cumprisse as penitências todas) e o “Perdoa-me”, aquele programa de televisão execrável que era líder de audiências.
Também já defendi a praxe, mas depois pus-me a pensar, um hábito que se vai tornando cada vez mais raro nas nossas universidades. Que “integração” traz a “praxe”? Não há maneiras melhores de fazer amigos do que ser humilhado, ridicularizado, usado como um boneco masoquista nas mãos de sádicos ou de pessoas com problemas não-resolvidos ao nível da socialização ou da sexualidade? A preocupação com a dignidade do ser humano não pode começar aqui mesmo com os nossos colegas inexperientes, caloiros recém-chegados a este mundo que deveria ser do humanismo, da busca do conhecimento?
P.S. – Não tenho brincos no nariz, nas orelhas, nas sobrancelhas ou em qualquer outro lugar mais íntimo, nem tenho o cabelo verde, nem sou filiado ou simpatizante do Bloco de Esquerda. Evidentemente que não tenho nada – a não ser divergências ideológicas – contra quem é enquadrável nestas características, mas achei pertinente este esclarecimento porque tenho visto algumas mentalidades pequeninas a combater as ideias contra esta praxe com argumentos do género «eles dizem isso porque são radicais com o cabelo roxo».

João Paulo Tavares Esperança

Publicado no jornal “Fazedores de Letras” (da Associação de Estudantes da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa), nº30, Dez 99, p.5

sexta-feira, maio 23, 2008

Abrandamento

Tenho andado com outras preocupações nos últimos tempos, e por isso não tenho escrito aqui grande coisa. Tenho posto cá uns vídeos para edificação dos meus caríssimos leitores, mas pouco mais...
Dentro de dias o blogue retomará a sua actividade normal...

terça-feira, maio 20, 2008

Raízes

"«Continuaj a armar-te em carapau de corrida e lebas uma trancada qui até andas de querena, qui é p’ra escarmentares!»
Mas
opois chegou o catano do belhote gafanhão e mandou-oj apertarem o bacalhau e fazerem as pazes que senão qui oj atiraba à iágua. "

Uma das poucas coisas boas neste exílio temporário na terra natal é a re-imersão nas minhas raízes dialectais…

quinta-feira, maio 08, 2008

Movimentos básicos de Setia Hati Terate

Um vídeo do YouTube com os movimentos mais básicos do pencak silat da PSHT (Persaudaraan Setia Hati Terate - Irmandade do Coração Leal da Flor-de-Lótus).


quarta-feira, maio 07, 2008

Música de Cabo Verde

Há algo de místico na morna caboverdiana, que me toca a alma, como o fado também. E o funaná é hipnotizante e faz com que até um tipo com dois pés esquerdos como eu queira saber dançar...


Fundamentalistas?

Ao longo dos anos em que fui activista da causa timorense e durante o tempo em que morei em Timor era comum ouvir portugueses falarem da Indonésia como se fosse um bicho papão muçulmano monolítico e fundamentalista. Na verdade, a Indonésia é um país extraordinariamente complexo, cheio de diversidade, onde forças modernizadoras e conservadoras coexistem às vezes em harmonia e outras vezes em choque. E falar em conservadores na maior parte das regiões do país não é de maneira nenhuma sinónimo de falar em fundamentalistas muçulmanos – o islamismo indonésio é tradicionalmente tolerante e moldou-se à cultura pré-islâmica local (talvez na senda de Sunan Kalijaga, apontado como o mais sincrético dos Wali Songo). Muitos indonésios ficam ofendidos em serem comparados com certas sociedades do Médio Oriente que não deixam as mulheres conduzirem carros e coisas do género, e pedem que não confundamos a religião muçulmana com as tradições dos povos de língua árabe.
Um assunto que une, no entanto, os conservadores de diversas correntes é a condenação das novas tendências da música dangdut. A maior parte dos indonésios parece não ligar a essas opiniões. Extremamente popular como entretenimento de massas, com concertos a que assistem às vezes milhares de pessoas (a maior parte homens, mas não apenas), o dangdut tem vindo a tornar-se cada vez mais sexualizado, com as intérpretes a executarem movimentos cada vez mais explícitos. Que eu saiba a pioneira desta abordagem mais radical foi Inul Daratista, há uns anos atrás, quando eu estava em Timor ainda há pouco tempo (e lá vendem-se muitos VCDs da Inul...), mas agora há uma verdadeira legião de seguidoras. Assisti uma vez a um concerto de rua na Jalan Malioboro, em Yogyakarta, em que algumas adolescentes tentavam também fazer uma aproximação a este estilo. A jovem Mela Anjani é a bonita cantora do vídeo abaixo:




Bakti Negara, um estilo balinês de pencak silat

Demonstrado pela jovem pesilat (praticante de silat) Ni Luh Putu Spyanawati

quarta-feira, abril 30, 2008

AMAM - Asociasión de Mujeres Anti-Mutilación

A AMAM - Asociasión de Mujeres Anti-Mutilación é uma ONG com sede em Barcelona, liderada por Mama Samateh Saidy, uma mulher nascida na Gâmbia que mora há mais de duas décadas na Catalunha. A AMAM leva a cabo campanhas contra a mutilação genital feminina. Estas fotos são de uma dessas campanhas:





[Fotos encontradas no blogue dO Jumento.]

sexta-feira, abril 25, 2008

Ainda há combate...

Porque hoje é 25 de Abril, ouçamos outra vez o Lluí­s Llach:

ABRIL 74
***********
Companys, si sabeu on dorm la lluna blanca,
digueu-li que la vull
però no puc anar a estimar-la,
que encara hi ha combat.
Companys, si coneixeu el cau de la sirena,
allà enmig de la mar,
jo l'aniria a veure,
però encara hi ha combat.
I si un trist atzar m'atura i caic a terra,
porteu tots els meus cants
i un ram de flors vermelles
a qui tant he estimat,
si guanyem el combat.
Companys, si enyoreu les primaveres lliures,
amb vosaltres vull anar,
que per poder-les viure
jo me n'he fet soldat.
I si un trist atzar m'atura i caic a terra,
porteu tots els meus cants
i un ram de flors vermelles
a qui tant he estimat,
quan guanyem el combat.
---------------------------------------

(Traducción al castellano)
ABRIL 74
***********
Compañeros, si sabéis donde duerme la luna blanca
decidle que la quiero
pero que no puedo acercarme a amarla
porque aún hay combate.Compañeros, si conocéis el canto de la sirena
allá en medio del mar,
yo me acercaría a buscarla
pero aún hay combate.
Y si un triste azar me detiene y doy en tierra
llevad todos mis cantos
y un ramo de flores rojas
a quien tanto he amado.
Si ganamos el combate.
Compañeros, si buscáis las primaveras libres
con vosotros quiero ir
que para poder vivirlas
me hice soldado.
Y si un triste azar me detiene y doy en tierra
llevad todos mis cantos
y un ramo de flores rojas
a quien tanto he amado.
Cuando ganemos el combate.
----------------------------------------

Obrigado aos Capitães de Abril.

o timorense continua no pântano

Esta foto foi publicada há cerca de dois anos no blogue Abrupto, de Pacheco Pereira, tal como o texto que então enviei:

Metido no pântano até aos sovacos, este homem todos os dias apanha “canco” (uma planta que vive na água estagnada com a qual se faz salada) aqui em Caicóli, Díli. Depois vai vendê-lo no mercado aos molhinhos a cinco centavos (5 cêntimos de dólar) cada um. Se aparecer um comprador malai (estrangeiro) o homem poderá tentar vender o mesmo molhinho por 25 centavos (uma moeda de ¼ de dólar), o que motivará protestos indignados do malai. Mais tarde, sentado no ar condicionado do bar do Hotel Timor, enquanto bebe um chá que custa 2 dólares, o mesmo malai comentará com os colegas como os timorenses são “uns trafulhas que querem é enganar os malais”. Entretanto, o timorense continua no pântano.


quinta-feira, abril 24, 2008

Dia Mundial do Livro e dos Direitos de Autor

No dia 23 de Abril comemorou-se o Dia Mundial do Livro e dos Direitos de Autor. A data foi escolhida pela UNESCO, mas inspira-se em tradições catalãs:





quarta-feira, abril 23, 2008

Homenagem de Lisboa aos judeus vítimas do fundamentalismo católico


Encontrei esta fotografia no blogue dO Jumento.


Na "matança da Páscoa de 1506", durante três dias (19 a 21 de Abril) da Semana Santa, foram assassinadas em Lisboa entre duas mil e quatro mil pessoas acusadas de professarem a religião judaica.
Também no mesmo blogue encontrei o Rua da Judiaria e o Portugal e os judeus, onde se pode encontrar mais informação.

Muitos judeus portugueses foram obrigados ao exílio ou à conversão forçada. Tenho uma teoria, ainda não provada, de que poderei ser descendente de um desses "cristãos-novos". A família da minha mãe é conhecida pela alcunha de "Maranos", herdada de um bisavô meu de apelido Ferreira. "Marano" poderá ser corruptela de "marrano", uma das designações dadas tradicionalmente em Portugal a esses judeus. Não fiz ainda investigação genealógica, isto é mera especulação, mas quem sabe se não terei um antepassado judeu anusin?

terça-feira, abril 22, 2008

Uma ópera javanesa

Também ainda não vi o filme, mas fica aqui o trailer, que promete. Baseado na versão javanesa do Ramayana, Opera Jawa é mais um filme de Garin Nugroho, um dos mais importantes realizadores indonésios, autor do belíssimo Daun di Atas Bantal, de que hei-de voltar a falar aqui em breve. A orquestra é um gamelão.





sexta-feira, abril 18, 2008

Estudos académicos de Buffylogia

Lembram-se de uma série televisiva de ficção norte-americana em que uma adolescente loira chamada Buffy chacinava vampiros e outras criaturas sobrenaturais? Descobri com alguma surpresa que há uma vasta produção académica no campo da Buffylogia, o estudo científico (ou pelo menos com pretensões a isso) da Buffy!

Os especialistas têm até uma revista académica em linha, que já vai no número 25 (+- trimestral): Slayage: The Online International Journal of Buffy Studies.

domingo, abril 13, 2008

João Neto campeão europeu de judo

O português João Neto tornou-se hoje campeão europeu de judo.
Para quem não sabe o que é e de onde vem o judo, deixo aqui um vídeo sobre o assunto. É um documentário com um tom um bocado sensacionalista, mas dá para ficar com uma ideia…



quinta-feira, abril 10, 2008

Uma arte marcial das Filipinas: eskrima ou arnis

Um documentário já velhinho, mas ainda muito interessante...



quinta-feira, abril 03, 2008

Os putos




Uma bola de pano, num charco
Um sorriso traquina, um chuto
Na ladeira a correr, um arco
O céu no olhar, dum puto.

Uma fisga que atira a esperança
Um pardal de calções, astuto
E a força de ser criança
Contra a força dum chui, que é bruto.

Parecem bandos de pardais à solta
Os putos, os putos
São como índios, capitães da malta
Os putos, os putos
Mas quando a tarde cai
Vai-se a revolta
Sentam-se ao colo do pai
É a ternura que volta
E ouvem-no a falar do homem novo
São os putos deste povo
A aprenderem a ser homens.

As caricas brilhando na mão
A vontade que salta ao eixo
Um puto que diz que não
Se a porrada vier não deixo

Um berlinde abafado na escola
Um pião na algibeira sem cor
Um puto que pede esmola
Porque a fome lhe abafa a dor.

Ary dos Santos



[encontrei o poema nos Poemas do Mundo, e o bonito fado interpretado por Carlos do Carmo no Imeem (só dá para ouvir uma parte, terá que fazer login para ter acesso à canção inteira)]


segunda-feira, março 31, 2008

Historiografia comunista norte-coreana



"Este é o vídeo que passa na televisão norte-coreana, a KCNA TV, para contar ao povo a história fantástica da vida de Kim Jong-il. As legendas estão em inglês." - Encontrei o vídeo, e a legenda, no interessante blogue Coreia do Norte - Um segredo de Estado.

Os inimigos da liberdade de expressão

domingo, março 30, 2008

Tradição cruel

O vídeo mostra uma mulher acusada de ser bruxa na Índia e que por isso foi amarrada a uma árvore e espancada. Cortaram-lhe também bocados do cabelo. Em Timor coisas deste género também acontecem. Há tradições que têm que ser mudadas.




Acabemos com a violência contra as mulheres


Ramos Horta é um dos participantes numa campanha contra a violência doméstica que decorre em Timor-Leste. O Presidente da República de Timor-Leste foi no dia 11 de Fevereiro alvo de um atentado, mas está a recuperar bem e pensa regressar brevemente ao seu país. Ainda bem, Timor precisa dele.

sábado, março 29, 2008

Je t’aime moi non plus em Timor

Luís CARDOSOCrónica de uma travessia – A época do ai-dik-funam. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1997, pág. 89

“Recrutavam então valores dispersos pelos aquartelamentos, metropolitanos e nativos, cantadores românticos e imitadores de bandidos, que abandonadas as espingardas, armados de viola e microfone partiam numa caravana, denominada artística, parecida com aquelas do farwest representadas nos livros de sete balas. Era certamente o único momento em que se podiam ouvir canções proibidas de uma tal Zeca Afonso – Grândola, vila morena – cantadas por oficiais estudantes. Viras, corridinhos e António Mafra – eram prà aí sete e picos – por soldados dos ranchos folclóricos da província e gemidos duma mulher imitados por um cantor, bas-fond das discotecas lisboetas, na tal música francesa, Je t’aime moi non plus.”


Luís CARDOSOThe Crossing - A Story of East Timor. London, Granta Books, 2000, p. 84 (Tradução de Margaret Jull Costa)

«It recruited anyone with talent, whether Portuguese or Timorese (who were occasionally to be found scattered throughout various barracks) – romantic singers and would-be bandits who laid down their rifles and, arming themselves with a guitar and a microphone, set off in a so-called artistic troupe, rather like one of those travelling shows in a pulp western. It was certainly the only time that people would hear banned songs by the likes of Zeca Afonso (Grândola, vila morena) sung by student officers, or popular songs and dance tunes and António Mafra (…eram prà aí sete e picos) sung by soldiers from provincial folk clubs, and a woman’s orgasmic moans imitated by a male singer, a frequenter of Lisbon discotheques, in a rendition of Je t’aime moi non plus


Luís CARDOSOUne île au loin. Paris, Éditions Métailiè, 2000, p. 84 (Tradução de Jacques Parsi)

“Ils recrutaient alors des gens de valeur, dispersés dans les casernements, métropolitains ou indigènes, chanteurs romantiques et copies de bandits qui, ayant abandonné le fusil, armés de guitare et de micro, partaient dans une caravane, appelée artistique, semblable à celle du Far West qu’on voyait dans le livre à deux sous. C’était sûrement le seul moment où l’on pouvait entendre les chansons interdites d’un certain Zeca AfonsoGrândola, vila morena – chantées par des officiers étudiants. Des viras, des corridinhos, et António Mafra – eram prà aí sete e picos, «Ils étaient à peu prés sept et quelques» - par des soldats des groupes folkloriques de la province et les gémissements d’une femme imités par un chanteur basfond des boîtes de nuit de Lisbonne, dans la fameuse chanson française Je t’aime moi non plus.”






Luís CARDOSOCrónica de uma travessia – A época do ai-dik-funam. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1997, pág. 91-92

“O meu irmão Toni já falava bem inglês praticado em tarefas de voluntariosos e esforçado guia turístico. Formava uma dupla com Carlos Campara e ambos prometiam enquadrar-me no solícito feudo dos prazeres mundanos. Dizia um que a aprendizagem de qualquer língua partia sempre com rituais iniciáticos de actividades corporais. O outro complementava que gostava mais de falar com as camonas numa língua estrangeira como a francesa, E dizia je t’aime moi non plus, ficava por aí, com os olhos fechados. Depois concluía que o resto era latim, como quando os padres diziam a missa.”

Luís CARDOSOThe Crossing - A Story of East Timor. London, Granta Books, 2000, p. 87 (Tradução de Margaret Jull Costa)

«My brother Toni already spoke good English, acquired in his work as a headstrong, enthusiastic tour guide. He formed a duo with Carlos Campara and both promised to introduce me to the sweet domain of worldly pleasures. According to one, learning a language always began with initiation rites involving certain physical activities. The other added that he found it more enjoyable talking to women in a foreign language like French. He would say to me, ‘Je t’aime moi non plus,’ and then stop, his eyes closed. The rest, he concluded, was just Latin, like when the priests said mass.»


Luís CARDOSOUne île au loin. Paris, Éditions Métailiè, 2000, p. 86-87 (Tradução de Jacques Parsi)

“Mon frère Toni parlait déjà bien l’anglais, qu’il pratiquait dans son travail de vaillant guide touristique volontaire. Il formait un tandem avec Carlos Campara et tous deux promettaient de m’encadrer dans le monde désirable des plaisirs du monde. L’un disait que l’apprentissage de n’importe quelle langue débutait toujours par des rituels initiatiques d’activités corporelles. L’autre ajoutait qu’il aimait mieux parler avec les nénettes australiennes dans une langue étrangère comme le français. Il disait je t’aime moi non plus et, les yeux fermés, n’allait pas plus loin. Puis il concluait que le reste était du latin comme lorsque les prêtres disaient la messe.”

Cântico Negro

A Fátima Guterres e a Mónica Fonseca leram-me este poema (um dos meus preferidos) na festa de despedida que os alunos organizaram na faculdade lá na UNTL.





Cântico Negro
de José Régio (1901-1969)
dito por Maria Bethânia


"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!


[encontrado no já extinto Blog da Sabedoria Defunta]

sexta-feira, março 28, 2008

O Islão como uma religião de paz

Foi colocado na Internet o filme anti-Islão “Fitna” do deputado holandês de extrema-direita Geert Wilders. No YouTube aparece em duas partes, a primeira é uma sequência de imagens de atentados terroristas, crimes horríveis e apelos à violência feitos por fanáticos muçulmanos, e a segunda é uma tentativa de assustar os europeus com o aumento do número de crentes islâmicos na Europa. Ao longo do filme são citadas algumas frases do Alcorão, descontextualizadas, para tentar mostrar que esta é uma religião violenta. Poderia facilmente ter encontrado muitas citações da Bíblia cheias de crueldade também, o Antigo Testamento fala de cidades inteiras dizimadas, e será que isso faria de todos os cristãos pessoas desapiedadas? A Indonésia é o maior país islâmico do mundo, mas a grande maioria dos muçulmanos indonésios é gente tolerante e respeitadora. Aliás, muitos pais muçulmanos lá até continuam a dar aos filhos nomes hindus tradicionais do Mahabharata e do Ramayana como Arjuna, Brahma, Damayanti, Laksmi, Bima, Sinta, Krisna, Lestari, Dewi, Dewa, Larasati... Tenho muitos amigos que professam a religião islâmica e que são indivíduos com virtudes e defeitos como eu e tu que me lês, e que nada têm a ver com esta imagem que o senhor Geert Wilders deles tenta fazer passar. Parece-me que o problema é que o tempo de antena das televisões e a atenção dos jornais do mundo é normalmente para os fundamentalistas, sendo os moderados uma maioria silenciosa. Porém, há crentes que não querem continuar calados e pretendem ter um papel mais militante e mais visível contra o ódio e a intolerância, pessoas como Ziauddin Sardar ou a jovem Irshad Manji que aparece nesta entrevista:



Judo - O caminho da suavidade

Jacarandá em Lisboa

"Nas ruas de Lisboa, os jacarandás floriam como se a natureza não perdesse nunca a memória das cores. Como archotes, velavam pelo canto dos loricos, cacoaques e outros pássaros feridos, na época de ai-dik-funam."

Luís CARDOSO in "Crónica de uma travessia - A época do ai-dik-funam"
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1997

"In the streets of Lisbon, the jacaranda trees were blooming as if nature had never lost its memory for colours. Like flaming torches, they kept vigil over the songs of the lorikeets, the cacoaques and all the other wounded birds, in the season when the coral tree flowers."

Luís CARDOSO in "The Crossing - A Story of East Timor"
London, Granta Books, 2000 (Tradução de Margaret Jull Costa)


"Dans les rues de Lisbonne, les jacarandas étaient en fleurs comme si la nature ne perdait jamais le souvenir des couleurs. Comme des torches, ils veillaient sur le chant des oiseaux de paradis, les loricos, les cacoaques et autres oiseaux blessés, à l'époque de l'ai-dik-funam."

Luís CARDOSO in "Une île au loin"
Paris, Éditions Métailiè, 2000 (Tradução de Jacques Parsi)



[Encontrei esta bonita fotografia no blogue Zoo, e foi também publicada numa bela sequência sobre os jacarandás de Lisboa no blogue Arboretto.]

quinta-feira, março 27, 2008

Mutilação genital feminina na Guiné e na Indonésia

O semanário português Expresso dá a notícia da divisão dos deputados do Parlamento guineense em relação à aprovação de uma lei para proibir a mutilação genital feminina no país. Fernando Gomes, fundador e antigo presidente da Liga Guineense dos Direitos Humanos, é um dos parlamentares que tenta fazer passar a lei, contra a resistência dos que não querem mexer com a tradição. Em Portugal e noutros Estados europeus com comunidades imigrantes provenientes de países onde se mutilam ainda os órgãos genitais das raparigas é completamente proibido realizar tal prática. Esperemos que os dirigentes políticos da Guiné-Bissau tenham a coragem de pelo menos dar os instrumentos legais àquelas que se empenham na luta contra este flagelo. Mesmo com aprovação da lei ainda haverá um longo caminho a percorrer para mudar as mentalidades e os costumes.

A Organização Mundial de Saúde estabelece uma tipologia dos tipos de mutilação que vão dos menos radicais, que podem limitar-se à realização de um pequeníssimo corte ritual no clítoris só até fazer sair uma gota de sangue, até outros que incluem a remoção do capuz do clítoris, ou do capuz e do próprio clítoris, ou a amputação completa destes e dos lábios menores, até aos casos mais graves, da chamada infibulação, em que após a ablação os lábios maiores são cosidos quase em todo o comprimento deixando apenas um pequeno orifício para passagem da urina e do sangue mentrual.

Também na Indonésia se mantém ainda a tradição da mutilação genital. De acordo com um estudo de que se deu notícia no jornal Kompas, citado no blogue Indonesia Matters, 90% das mulheres indonésias são circuncidadas. O mesmo blogue aponta para um artigo do New York Times, de Janeiro passado, onde se fala num valor ainda mais elevado, 96%. Este jornal inclui fotografias de uma sessão de mutilação em massa (mais de 200 numa manhã) realizada em Bandung pela Fundação Assalaam, cujo responsável pelos serviços sociais diz que “há três ‘benefícios’ para as raparigas: um, estabiliza a libido delas; dois, vai fazer a mulher ficar mais bonita aos olhos do marido; e três, dá-lhes equilíbrio psicológico”.

Os direitos humanos são universais e há que continuar a trabalhar para que cheguem também a estas vítimas da tradição.

segunda-feira, março 24, 2008

Pequim 2008 e boicotes

Os acontecimentos recentes no Tibete vieram chamar a atenção da comunidade internacional para esta nação invadida pela China há mais de cinquenta anos. Alguns dos movimentos de solidariedade com o povo tibetano espalhados pelo mundo têm também apelado ao boicote aos Jogos Olímpicos, a União Europeia veio dizer que não vai boicotar, o Dalai Lama também diz que apoia a realização das Olimpíadas em Pequim e que espera que as ONGs aproveitem este período para lembrar o mundo da repressão na sua terra. Algum apoiante da autodeterminação do Tibete fez este desenho, que encontrei no blogue d”O Jumento”.

Em 1992 participei com timorenses e portugueses numa manifestação de apoio a Timor na Expo 92, em Sevilha. Andávamos com camisolas de manga curta pretas com um pequeno texto em que se perguntava se a Indonésia também mostrava na Expo os massacres que fazia em Timor-Leste. Depois de uma concentração nossa em frente ao pavilhão indonésio, a polícia espanhola levou-nos todos para as traseiras do edifício. Após algum debate foi negociado que não faríamos mais manifestações no recinto, mas que não seríamos expulsos de lá e poderíamos circular à vontade, mantendo as camisolas vestidas, claro. Acabei por ser interpelado por vários turistas e membros de delegações estrangeiras que queriam saber o que era isso de Timor.

Uns três anos depois participei num encontro de uma semana em Amesterdão de dirigentes de ONGs, associações e outras estruturas ligadas ao trabalho com jovens e com minorias étnicas. Falei bastante de Timor, evidentemente, e um dia uma moça da organização veio explicar-me que fazia parte do programa um jantar de todos os participantes num restaurante indonésio e ela queria saber se eu teria alguma objecção. Disse-lhe que em tempos Portugal tinha sido uma potência colonial que mantinha uma guerra para não permitir a autodeterminação das suas colónias e que se nesse tempo uma família de portugueses abrisse um restaurante em França, ou na Holanda, seria muito triste que o público boicotasse o seu estabelecimento por causa das opções políticas do regime de Salazar. Nunca fiz boicotes aos produtos indonésios, sempre me pareceram um bocado histéricas as reacções como as que houve por cá quando descobriram que a selecção (de futebol, se bem me lembro) usava camisolas feitas na Indonésia. Se fossemos coerentes nesse tipo de boicote teríamos que ir ler o relatório anual da Amnistia Internacional e boicotar os produtos de meio mundo.

Um boicote aos Jogos Olímpicos (como muitos países fizeram em diversas ocasiões, nomeadamente nos de Moscovo em 80 e nos de Los Angeles em 84) é uma coisa muito triste, é os políticos a quererem levar as suas querelas (que tantas vezes provocam guerras) para onde não devem. O desporto é uma área em que os indivíduos dos mais diversos povos, religiões, países, se podem encontrar e competir em igualdade de oportunidades, e mostrar o seu valor. As condições de treino podem ser díspares, os percursos de vida também, mas no tatami, na pista, no ringue, no campo, cada mulher e cada homem vale por si, e a determinação e empenho podem dar a todos a esperança de uma medalha. Um boicote às Olimpíadas seria uma colossal falta de respeito para com o esforço espartano dos atletas que se preparam há anos para esse momento. Dito isto, parece-me que nada obsta a que os apoiantes dos tibetanos invistam numa estratégia do tipo das camisolas de que eu falava acima, algo do género de convencer turistas, jornalistas, membros de delegações, técnicos, etc, a andar pela aldeia olímpica e por Pequim com camisolas evocando a situação no Tibete. Iniciativas dessas seriam mais um teste à tão propalada vontade das autoridades chinesas de mostrarem uma nova imagem, mais tolerante e democrática. Os apelos pelo Tibete da cantora Bjork num concerto recente em Xangai são um bom precedente.

domingo, março 16, 2008

Culturas mestiças, misticismos mestiços também

Em Timor existem diversos movimentos de natureza mais ou menos mística, como por exemplo a Sagrada Família e os Kolimau 2000, que normalmente incorporam elementos católicos com outros das tradições religiosas animistas locais. Tal fenómeno acontece também noutros lugares onde a história da ocupação colonial criou culturas nacionais que, como a de Timor-Leste, são mestiças.

No fotoblogue My Sarisari Store, um dos meus favoritos sobre as Filipinas, encontrei uma colecção muito interessante de fotografias de grupos místicos locais, incluindo Rizalistas, que transformaram o escritor e intelectual nacionalista José Rizal, fuzilado pelos espanhóis, numa figura sagrada. Uns consideram-no um santo, outros um profeta, alguns ainda uma reencarnação de Jesus Cristo. As fotografias mostram lugares onde a população diz ter havido aparições de Cristo, anting-antings (amuletos), peregrinos, curandeiros… Os timorenses reconhecerão conceitos que, tal como na sua terra, unem a raiz austronésica com o superestrato de uma língua neo-latina ibérica, como "inang miserecordia".

Nas Filipinas existe também em certos meios o costume de inserir pequenos objectos no corpo (“sona ai-moruk”, em tétum) para ficar mais forte ou invulnerável, como fazem em Timor grupos como os Sete-Sete. O malikmata de que fala o senhor no vídeo abaixo parece ser semelhante ao poder de matan-helik dos timorenses.



P.S. - Não tendo nada a ver já com misticismos, deixo aqui um link para um slideshow sobre cocos nas Filipinas. A minha mulher ao vê-lo disse imediatamente: - Mas isto parece Timor!

P.P.S. - Futu-manu (luta de galos) nas Filipinas. O galódromo de Bidau ainda não é tão sofisticado como o deles, que até tem bancada em anfiteatro, mas também é jeitoso.

E mais um P.S. - Se o vídeo de cima não funcionar tente esta versão:



sexta-feira, março 14, 2008

Ministry dos affairses extrangeiros

Há uns anos atrás publiquei no jornal timorense “Semanário” um texto em que falava sobre erros habituais na comunicação social na denominação em tétum dos ministérios do Estado timorense. Dava o exemplo do “*Ministériu Educasaun Cultura Juventude no Desporto”, em que a palavra “Ministériu” está escrita em tétum, “Cultura” em português e “*Educasaun” em língua nenhuma, porque em português seria “Educação” e em tétum “Edukasaun”.

Sendo o tétum uma das línguas oficiais de Timor-Leste deveria haver uma designação oficial das instituições do Estado também nesta língua. Tomemos agora como exemplo o “Ministério dos Negócios Estrangeiros e Cooperação”. Como designá-lo em tétum? Fui procurar nos meus arquivos designações deste ministério e/ou ministro.

STL,18-06-2003,p.6 – *Ministru Negosius Estrangeirus no Kooperasaun
STL,23-10-2003,p.6 – *Ministru dos Negosios Estranjeirus no Kooperasaun e, no mesmo texto, *Ministru Negosius Estranjeirus
STL,29-10-2003,p.1 – *Ministru Negosiu Estrangeiru no Kooperasaun
Jornal Nacional Diário,03-03-2006,p.7 – *Ministru dos Negocius Estranjeirus
Jornal Nacional Diário,22-03-2006,p.2 – *Ministru Negocius Estranjeirus no Koperasaun
Timor Post,11-05-2006,p.1 – *Ministru Negocios Estrangeiros no Cooperasaun

A versão bilingue do livro de António Veladas “Timór Terra Sentida” (Publ. Europa-América, 2001) chama-lhe “Ministériu Asuntu Li’ur nian”. Creio que este livro será leitura obrigatória nos estudos académicos que vierem a existir sobre a tradução em tétum, por ter sido uma das primeiras obras integralmente traduzidas para a língua, por ter usado já a ortografia oficial do INL e por a tradução ter estado a cargo de um dos mais importantes linguistas timorenses, o Professor Benjamim Corte-Real (curiosamente não há qualquer referência ao tradutor na ficha técnica). O tradutor que trabalha nestas circunstâncias é um pioneiro, um explorador que de catana na mão vai abrindo novos caminhos na selva virgem. Em idiomas com uma antiga tradição de tradução muito foi feito pelos que vieram antes, há que repetir apenas o procedimento, mas em línguas ágrafas, ou quase, ele vê-se na posição de ter que decidir qual a forma melhor para traduzir pela primeira vez uma dada expressão ou palavra. Nenhum tradutor de inglês, francês ou indonésio precisará de pensar duas vezes ao substituir “Ministério dos Negócios Estrangeiros” por “Ministry of Foreign Affairs” (1), “Ministère des Affaires Étrangères” ou “Departemen Luar Negeri”, mas o profissional consciente que trabalha com o tétum poderá ter que parar e reflectir antes de decidir qual será a melhor tradução possível. Na ausência de um nome oficial da instituição em tétum, os jornais timorenses frequentemente inventam, como já vimos. No "Lia Foun", um projecto bilingue pioneiro que existiu em 2005, houve uma decisão da redacção (tradutores incluídos) de manter os nomes oficiais em português dos ministérios mesmo nos textos em tétum, enquanto não houvesse decisão sobre as designações oficiais neste idioma, e também como forma de educar o público (afinal o português também é língua oficial do país e não merece ser mutilado como habitualmente é nos média de Timor-Leste).

Entretanto, enquanto pensava sobre estas questões, lembrei-me das brincadeiras que Umberto Eco faz com traduções e retroversões de textos clássicos no Babel Fish, no livro "Mouse or Rat – Translation as Negotiation" (Phoenix, 2004, p.10-18). Um dos textos que ele usa é constituído pelos sete primeiros versículos do Génesis de uma versão da Bíblia em inglês (a King James Bible), que ele depois traduz para diferentes línguas para mostrar alguns pontos sobre questões teóricas da tradução. Os resultados são, como seria de esperar, no mínimo estranhos. Então resolvi levar o Ministério dos Negócios Estrangeiros para o Babel Fish…

Traduzi primeiro “Ministério dos Negócios Estrangeiros” para inglês e obtive “*Ministry of the Foreign affairses”. Como não conhecia a palavra “*affairses” fui ao Google ver se havia quem conhecesse. 867 ocorrências, o que significa que há pelo menos este número de nabos na Internet. Uma delas é um comentário a uma notícia sobre Timor escrito por um autodenominado “Maubere” que andou a traduzir as suas opiniões para um monte de línguas, provavelmente no Babelfish também, e lá aparecem os “*affairses” rodeados de caracteres chineses (外国affairses的先生部长 葡萄牙语), o que mostra que o programa não reconhece as suas próprias criações lexicais. A seguir, pedi a tradução para português do “*Ministry of the Foreign affairses” e obtive “*Ministry dos affairses extrangeiros”. Comecei a achar que o Babel Fish tinha aprendido português nos jornais timorenses.

Lembrei-me então de ir lá com o “Ministério das Relações Exteriores” dos nossos irmãos brasileiros. Choque! O Babel Fish sabe o que é e apresentou de imediato a tradução para americano ver: “Department of state”. Fiz a retroversão e… “Departamento de estado”, que é como em português se chama o equivalente deste ministério nos EUA.

Tentei então em francês. Perfeito!

Ministério dos Negócios Estrangeiros>Ministère des Affaires Étrangères>Ministério dos Negócios Estrangeiros

Fui lá novamente com a designação brasileira, confesso que com uma esperançazinha de que o Babel Fish francês manifestasse por eles o mesmo desprezo que o seu congénere inglês mostrou por nós. Mas não, uma pequena discrepância apenas, normal nisto de máquinas de tradução burras.

Ministério das Relações Exteriores>Ministère des Relations Extérieures>Ministério das Relações Externas

Das duas uma, ou os franceses sabem mais de geografia e de relações internacionais do que os americanos ou então lembram-se de nós por causa das porteiras e mulheres-a-dias.

E a tradução para tétum, que é por onde tínhamos começado? Analisemos então os elementos do problema. Se optássemos, como tem feito a imprensa, por adaptar a designação portuguesa, haveria que ser coerente com a ortografia. Teríamos então “Ministériu Negósiu Estranjeiru no Kooperasaun nian” ou “Ministériu Negósiu Estranjeiru no Kooperasaun sira-nian”. Mas não fiquemos por aqui. Quais são os elementos que compõem o nome do ministério? “Cooperação” pode nalguns contextos ser traduzida por “serbisu lisuk”, mas aqui parece-me que “kooperasaun” não seria contestada por ninguém. “Estrangeiro” já é diferente, podemos falar em “tasi-balun”, “li’ur”, “rai-li’ur” (por oposição a “rai-laran”, “doméstico”, “interior”), “rain-seluk”,… O Dicionário de Tétum do INL usa o neologismo “makli’ur”, com recurso à morfologia tradicional do tétum téric, com o significado de “exterior” ou “externo”. Finalmente a palavra “negócio”, ou em tétum “negósiu”, que em Timor é usada mais no sentido económico, como sinónimo do termo indonésio “bisnis”, que ainda se ouve muito, e que pode no caso ser perfeitamente substituída por “asuntu”, como vimos acima. Daqui surgem várias designações alternativas possíveis, versões divergentes das formas portuguesas, como por exemplo:

Ministériu Asuntu Li’ur no Kooperasaun nian
Ministériu Asuntu Tasi-Balun no Kooperasaun nian
Ministériu Asuntu Rai-Li’ur no Kooperasaun nian
Ministériu Asuntu Makli’ur no Kooperasaun sira-nian
Ministériu Negósiu Makli’ur no Kooperasaun sira-nian

Como vê o meu caro leitor, a tarefa do tradutor é espinhosa, de partir pedra para abrir caminho, e seria de facto útil que o Estado aprovasse uma lista oficial com os nomes dos Ministérios e Secretarias de Estado em tétum. Mas não se pense que é preciso a toda a força encontrar denominações vernáculas que substituam os empréstimos lexicais do português. Numa aula em que discutíamos as opções dos puristas para o desenvolvimento do tétum, propus aos alunos que traduzissem sem usar palavras de origem portuguesa a seguinte frase, sabendo ser esta uma tarefa impossível:

A roda do meu carro tem um furo.

Várias vozes tentaram fazer a tradução em voz alta, evitando os termos “roda” e “karreta”. Então uma moça começou, pensando à medida que falava:
- “Ha’u-nia buat ne’e ne’ebé ema sa’e nia buat-kabuar iha kuak.
Quando terminou toda a sala explodiu numa gargalhada, e ela, compreendendo de repente a interpretação que estavam a fazer, ficou vermelha como um tomate. O que ela disse, numa tradução livre, foi algo como: “A minha coisa para cima da qual se pode subir (montar) tem uma coisa redonda que tem um buraco”. Às vezes é melhor usar os empréstimos lexicais mesmo…


(1) Ou “Ministry of External Affairs” ou “Ministry of External Relations”.

quarta-feira, março 12, 2008

Wikipédia em hakka

Também já há uma wikipédia em hakka, a língua materna dos chineses timorenses. A pesquisa é feita preferencialmente pelas palavras escritas numa forma de romanização, mas pode ser também pelos caracteres chineses (ainda que isso não funcione muito bem) porque muitas das definições enciclopédicas aparecem em duas colunas, uma em caracteres latinos e outra em caracteres chineses. Provavelmente esta última seria a maneira melhor, já que há muitos sistemas de romanização diferentes, além de que a representação em caracteres latinos das palavras também varia de acordo com as pronúncias das diferentes regiões (como em português há quem diga "vaca" ou "baca", "laite" ou "leti", etc). O problema para os chineses timorenses é que a maioria deles é analfabeta em chinês, porque os indonésios mandaram encerrar as escolas chinesas que havia no tempo dos portugueses. Talvez seja altura de reabrir alguma dessas escolas...
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Procurando por 中國 [China] vamos ter a uma página que nos diz que há compatibilidade de 100% com Kôan-lièn-thu, 92.0% com Kôan-lièn-thu e 17.3% com Kôan-lièn-thu. O problema é que a primeira é a Mongólia, a terceira é aranha, e a segunda opção é que é a China.

Dias de silêncio e dias de celebração

O Nyepi, o dia de silêncio dos balineses foi no dia 7 de Março (ou 8, conforme as versões - eu não estava lá...). Em Timor-Leste não há Nyepi mas alguns malais têm andado a protestar na blogosfera porque o estado de sítio também estraga as jantaradas e idas à discoteca. Entretanto, aproxima-se a Páscoa (פסחא) e provavelmente o estado de sítio será levantado para o povo poder participar nas cerimónias religiosas.

Mas a propósito de Nyepi... será que há algum timorense hindu? E havendo, terá ele direito a pedir que esta data passe a ser feriado oficial? Afinal, o Lebaran (عيد الفطر/Eid ul-Fitr) e o Idul Adha (عيد الأضحى/Eid ul-Adha) são feriados do Estado, e os timorenses muçulmanos são uma pequena minoria... E o Ano Novo Chinês (農曆新年/Tinan Foun Xina/Tahun Baru Imlek)? Não terão os chineses timorenses direito a pedir também o seu feriado?

segunda-feira, março 10, 2008

Capoeira na Indonésia

As vezes que eu vi este reclame em Timor e na Indonésia...



Gudang Garam é uma marca de kretek, o típico tabaco indonésio misturado com cravinho (Syzygium aromaticum).

sábado, março 08, 2008

Sirana – O início do cinema timorense

As cenas iniciais mostram-nos o interior de uma casa de palapa, um típico lar timorense com uma fotografia do Papa João Paulo II pendurada na parede, um oratório onde rezam os habitantes com uma vela acesa, frinchas nas paredes, cozinha e quarto-de-banho exteriores, também feitos de materiais como palapa ou chapas. Um senhora de lipa e cabaia reza as orações matinais e faz a lida da casa. Ficamos então a saber quem mais mora na casa, Sirana, a protagonista, filha da senhora, e a irmã mais velha daquela e o cunhado. Este está desempregado, é vadio e bêbado, e bate na mulher. As discussões entre o casal são constantes.

Vemos depois Sirana sair cedo a pé com a mãe para irem vender legumes da sua horta no mercado. Aí aparece uma antiga conhecida da mãe, acompanhada por uma jovem colega de Sirana, ambas bem vestidas e com visual moderno. As senhoras conversam um pouco e a que compra os vegetais diz que trabalha num kantor [escritório] e refere as muitas colegas de ambas de antigamente, que são agora deputadas no Parlamento e funcionárias de Ministérios. A cena apresenta, sem tal mencionar explicitamente, o contraste chocante entre a vida de uma que continua pobre e a forma como a outra subiu na vida e se move no mundo dos políticos, dos malais, das ONGs… As duas raparigas andam ambas a ensaiar para uma peça de teatro e combinam encontrar-se lá no CJPAV mais tarde. Sirana interpreta o papel principal, o de Rosa Muki Bonaparte.

Já em casa, aparece a visitá-las uma prima, moça moderníssima, toda gira, transportada de carro. Explica que trabalha com os malais, ganha muito dinheiro, e, inquirida, responde que para arranjar um emprego assim “tem que se saber inglês e português, saber vestir-se bem, ser bonita, e mais outras coisas… que tu [Sirana] ainda não sabes”. Veio contar-lhes que na semana seguinte será o seu “troka prenda”, noivado, e que o namorado é estrangeiro, mas muito boa pessoa, e que no próximo ano irão ambos à terra dele.

Noutra cena, as amigas de Sirana vêm chamá-la para ir com elas à praia. São exuberantes, elegantes e belas, vestem roupas justas com ombros nus e umbigos à mostra… Sirana vai com roupas que a prima lhe havia oferecido. Na praia ela está triste e acaba por desabafar com dois colegas, um rapaz e uma cachopa, contando os problemas em casa entre a irmã e o cunhado, e também que não lhe estão a correr bem os ensaios porque não sabe o suficiente sobre Rosa Muki Bonaparte. Os colegas falam-lhe do papel desta como pioneira dos direitos da mulher em Timor, no âmbito da OPMT, e que foi assassinada pelos militares indonésios no porto de Díli logo no primeiro dia da invasão, e aconselham-na a procurar nos livros e perguntar às senhoras mais velhas. Ela confessa que há mais uma coisa a preocupá-la, um amigo, Nonó, gosta dela, mas ela sente-se reticente em retribuir porque ele é rico e ela não. Eles asseguram que o Nonó é um tipo impecável que não dá importância a essas coisas.

Noutro ensaio, um senhor lá no CJPAV (uma das mais importantes instituições culturais de Díli) pergunta à nossa jovem heroína porque não pede ela à mãe informação sobre a personagem que tem que interpretar e sobre esses tempos. Ele tinha afinal estado no mato com a mãe de Sirana. Esta conta depois à filha sobre os primórdios da luta das mulheres pela sua dignidade, oprimidas que estavam pela sociedade e pela cultura tradicional, e sobre as actividades da OPMT na montanha nos primeiros anos da guerra.

Entretanto o namoro com o tal Nonó parece estar encaminhado. Sirana chega a casa e depara com a irmã que fora novamente espancada.

Temos depois uma cena com a prima, numa esplanada com o namorado. Este é “português”, apesar de o actor falar com um forte sotaque anglo-saxónico:

“- Amor, quando é que me levas para Portugal?
- Fazer o quê?
- Aprezenta ha’u ba ó-nia família [apresentar-me à tua família], of course!
- Querida, ó tenke komprende ha’u tropa ne’e. Ha’u labele lori ó ba Portugál agora. [tens que compreender que sou militar aqui. Não posso levar-te para Portugal agora]
- Mas amorzinho, ó promete atu aprezenta ha’u ba ó-nia família! [tu prometeste apresentar-me à tua família] Sabes perfeitamente que eu estou grávida!
- Eu sei amor. Ne’e la’ós ha’u mak sala. Itrua mak hakarak!... [isso não é culpa minha. Ambos quisemos… ]
- Mas amor…
- Não, não! Ita la promete buat ida ba malu. [nós não prometemos nada um ao outro]
- Ó labele halo ha’u nune’e [não podes fazer-me isso], por favor! “

E o “português” pede desculpa e põe-se a andar. Fica a moça abandonada a chorar. Depois vai a casa das primas contar-lhes lavada em lágrimas.

Este é um drama relativamente comum em Timor, o das namoradas grávidas deixadas entregues à sua sorte por namorados malais que terminam o tempo de serviço e voltam para os seus países. Mas achei curioso que – ainda por cima sendo o actor falante de inglês – tivessem optado por dar ao personagem a nacionalidade portuguesa. É certo que um soldado australiano me contou (não sei se estava a dizer a verdade ou não) que eles estão proibidos de namorar com as timorenses e que por isso, enquanto dura a comissão, têm alguns dias de licença de xis em xis semanas para irem a Báli, mas também é verdade que ele me disse isso num bar e que fiquei com a impressão que ele namorava com uma das empregadas que lá trabalhava…

A história no filme continua a desenrolar-se com a estreia da peça, que retrata a violência da invasão indonésia. As cenas da peça alternam com outros acontecimentos: o cunhado que aparece bêbado mais uma vez e que a sogra expulsa de casa, o reaparecimento deste num estado deplorável andando aos tombos até à porta que ninguém lhe abre. A peça termina com aplausos entusiásticos do público e com a subida ao palco de Mari Alkatiri (na época Primeiro Ministro) para dar beijinhos e cumprimentos aos actores e actrizes.

O filme foi feito em Díli há uns quatro ou cinco anos, e parece-me que é a obra pioneira do cinema timorense. Lembro-me de ter visto pelo menos uma produção antiga com actores da diáspora, “Flores Amargas”, ambientado no meio dos refugiados do Vale do Jamor, em Portugal, mas produto nacional mesmo, este – que eu saiba – é o primeiro. Apesar de algumas dificuldades ao nível técnico, como por exemplo a captação do som que não está muito boa, parece-me um trabalho muito bem conseguido a vários níveis. O primeiro é a sua radicação consciente na realidade local, falado em tétum, não se tratando apenas de olhares de malai sobre Timor mas sim de ambientes e histórias que fazem parte do quotidiano genuíno dos timorenses. Outro aspecto que me agradou foi, que apesar da aparente simplicidade do argumento, há a possibilidade de mais do que um nível de leitura. Resta dizer que Ivete de Oliveira foi a realizadora, e que o filme resulta do trabalho conjunto de várias instituições: Fundasaun Kultural Le-Ziaval, Sahe Institute for Liberation, Sanggar Mamura e Catholic Institute for International Relations, com apoio da Caritas Australia e Caritas New Zealand. Da banda sonora fazem parte pelo menos Os Novos 5 do Oriente e o Nelson Turquel, que também aparecem no filme.