OS LÍRICOS
Sobre amos em Timor e outras construções do imaginárioQuando eu era miúdo era comum entre o meu círculo de amigos chamar a quem tivesse ideias fantasiosas, desligadas da realidade, um “lírico” ou, com mais frequência, um “p… lírico” (em que “p…” era um palavrão sinónimo de “c…”). Eu, que até era um puto bem comportado, evitava o uso do calão (o que fazia de mim uma ave rara entre a miudagem da minha terra), no entanto agora vem-me sempre essa expressão à cabeça quando leio certos textos sobre Timor que pintam uma imagem idílica muito distante da realidade dos factos. Muitos activistas ou simpatizantes da causa da autodeterminação nos anos da ocupação habituaram-se a imaginar um povo de santos mártires e heróicos guerrilheiros imaculados e sentem-se traídos nas suas expectativas quando os timorenses se revelam apenas… humanos. Recentemente encontrei num blogue sobre actualidade timorense muito frequentado trocas de acusações entre leitores que denunciavam ou defendiam a Fretilin com base em factos revelados pelo
Relatório da Comissão de Acolhimento, Verdade e Reconciliação sobre violações de direitos humanos perpetradas por aquele partido durante a guerra civil e os primeiros anos da ocupação. Neste tipo de debates é frequente os participantes de ambos os lados assumirem posições radicais de defesa fanática dos seus correligionários e tentarem mostrar os opositores políticos como a encarnação do Mal absoluto. E a verdade é a primeira baixa nessas guerras de palavras. Tem-se visto isso muito na blogosfera e nos artigos de opinião que abundam sobre política timorense recente.
Porém, os textos um pouco mais antigos também sofrem muitas vezes do mesmo mal. Um exemplo que costumo citar é o artigo de Elaine Brière intitulado “
East Timor: History and Society”, incluído na colectânea “
East Timor: Occupation and Resistance” organizada por Torben Retbløl e publicada em 1998. A autora diz que “
antes da chegada dos portugueses os timorenses estavam organizados politicamente em cerca de 46 pequenos reinos independentes, todos livres e independentes uns dos outros”
(1), ignorando a verdade histórica de que esses reinos se guerreavam frequentemente entre si, e que estabeleciam em muitos casos relações de vassalagem uns com os outros. Mais à frente Elaine Brière declara que em 1974 “
crimes como o incesto e a violência contra crianças ou contra a esposa eram virtualmente desconhecidos”
(2), contribuindo para reforçar uma imagem idealizada de “bom selvagem” que só viria a conhecer o crime e a perfídia com a invasão indonésia.
No mesmo tom temos um excerto de um texto de Maria José Albarran publicado em 2004, de que me lembrei ao ler uma certa passagem numa tradução inglesa do
Noli Me Tangere, e que motivou o subtítulo desta breve reflexão. O tal excerto diz respeito à palavra “
Amo”, usada pelos timorenses para se dirigirem aos padres:
“Item arcaizante, figura nos dicionários etimológicos e modernos como sinónimo de
senhor, dono de criação, patrão de trabalhadores, antigo senhor de escravos, forma de tratamento do soberano pelos cortesãos, mas como masculino de
ama, ou seja, sem evolução autónoma de étimo latino. Isto acrescenta-lhe o sentido carinhoso de
hospedeiro, educador, pedagogo, já que a
ama era tanto a
criada que amamenta, como a dona de casa, a governante, sempre uma educadora. Julgo ter sido nesta última especialização semântica que o termo se difundiu, valorizando a vertente pedagoga do clero em Timor.”
(3)Ora, se nas conversas em tétum os timorenses usam habitualmente “
amu”, nos textos aparece com mais frequência o composto “
amu-lulik” ou a sua forma abreviada “
amlulik” (em que “
lulik” significa “sagrado”), e “
amu-lulik” é sinónimo de “
na’i-lulik”. “
Na’i” é a forma de tratamento usada para um liurai (rei) ou um dato (nobre), e foi também adoptada para os fiéis se dirigirem a Deus, traduzindo a palavra portuguesa “
Senhor”. Diz-nos o
Disionáriu Nasionál ba Tetun Ofisiál, monumental obra lexicográfica de referência para a língua tétum com 872 páginas, publicada pelo Instituto Nacional de Linguística em 2005:
amusubstantivu 1. Ema ida ne’ebé ema seluk nia patraun ka xefe. SIN.
na’in, patraun2. Títulu haraik-an ne’ebé ita fó ba patraun, xefe ka amlulik.
amlulik mós
amu-luliksubstantivu Mane ida ne’ebé hala’o kultu relijiozu no hanorin kona-ba Maromak. SIN.
na’i-lulik,
padrena’i mós
na’i-manesubstantivu 1. Mane ida ne’ebé iha fatin aas iha sosiedade, hanesan liurai, dato, emboot ka patraun.
2. Ema-mane ida ne’ebé ita respeita tanba matenek, barani ka oin-na’in. SIN.
señór, usi.
‘Na’i Maromak’ ne’e títulu ne’ebé ita ema baibain fó ba Maromak.
na’i-luliksubstantivu Mane ida ne’ebé hala’o kultu relijiozu no hanorin kona-ba Maromak. SIN.
amlulik, padre(4)Ainda sobre a entrada da palavra portuguesa “
amo” para línguas de Timor, encontramos na Revista Missões, publicada em Lisboa pelos Jesuítas, Ano XIII, número de Maio/Junho de 1960, um texto intitulado “
Deus em Timor”, no qual podemos ler uma lista de termos para designar Deus em diversos idiomas timorenses que inclui “
Amo Deus” em galole, midique e uaima’a. O autor do texto comenta: “
Para evitar confusões, introduziram então termos ocidentais, mais ou menos infelizes, como esse do Amo Deus.
Mas a língua não teria sequer possibilidades de traduzir o antiquado «amo», patrão ou Senhor? Ou de... o suprimir até?”. Em tétum não houve necessidade de usar neste contexto empréstimos lexicais uma vez que já existia uma palavra para uma entidade de natureza divina “
Maromak” que passou a ser usada para o Deus dos católicos, às vezes associada a “
Na’i”:
“
Glória ba Maromak leten aas bá. (
5)Pás iha raiklaran
ba ema sira be Na’i hadomi.
Na’i Maromak,
Liurai Lalehan nian.
Aman Maromak bele halo hotu-hotu
ami hahi’i Ita-Boot
(…)”
Não passa pela cabeça de ninguém negar a importância da vertente pedagoga da Igreja em Timor, mas parece-me fantasioso querer demonstrar que a palavra “
amo” não tivesse entrado para as línguas locais com o seu significado de “figura de autoridade”.
Já tenho dito e escrito em diversos locais que a Igreja Católica foi talvez a mais importante instituição na criação e amadurecimento da cultura moderna timorense e de uma identidade nacional diferenciada. Esse papel não cessou ainda.
Benedict Anderson, o celebrado autor de
Imagined Communities: Reflections on the Origins of Nationalism e um velho amigo de Timor, publicou em 1993 um texto, baseado numa conferência do ano anterior, de que a revista galega
Çopyright publicaria depois em 1999 uma tradução sob o título “
Imaginar Timor Leste”. Aí o autor dizia:
“
A minha percepção é de que em 1974-75 o verdadeiro nacionalismo timorense tinha ainda uma ténue base de apoio; talvez apenas uma pequena percentagem da população pudesse então imaginar realmente o futuro Estado-Nação de Timor Leste. Desde 1975 a situação mudou dramaticamente. (…) Um dos principais projectos do estado de Suharto foi o de "desenvolver" a Indonésia. Isto envolve necessariamente um certo tipo de definição do que significa ser um verdadeiro indonésio. Parte dessa definição decorreu dos massacres anti-comunistas de 1965-66, que foram em parte entendidos como uma luta contra o ateísmo. Em consequência, hoje todo o indonésio tem de seguir uma religião do Livro. Neste ponto, o estado indonésio acaba enredado numa estranha ratoeira. Em 1975 a maioria dos timorenses era ainda animista. Fazer deles "indonésios" significou "erguê-los" do animismo a uma religião decente, o que, dadas as realidades existentes, significou Catolicismo. Ao mesmo tempo, o Estado estava perfeitamente consciente dos perigos da implantação do catolicismo, sobretudo devido ao facto de Roma insistir em tratar directamente com Timor Leste, ultrapassando a conformista hierarquia católica indonésia. Assim, o regime indonésio a um tempo desejou e receou o alargamento da influência do catolicismo. Nos últimos dezassete anos, a população católica do território mais que duplicou de tamanho. Em Timor Leste todos sabem que se se é membro da Igreja católica, beneficia-se de protecção de acordo com a própria lógica do estado; ao mesmo tempo desenvolveu-se um catolicismo popular como expressão de um sofrimento comum, tal como sucedeu na Irlanda do século XIX. Este elemento comum católico num certo sentido substituíu aquele tipo de nacionalismo de que falei noutros lugares, o qual deriva da articulação entre imprensa e capitalismo. Além do mais, a decisão da hierarquia católica em Timor Leste de usar Tetum, e não indonésio, como a língua da Igreja, teve efeitos profundamente nacionalizadores. Transformou o Tetum, de uma língua local ou língua franca em certas partes de Timor Leste, na língua da religião e da identidade de Timor Leste.” [o sublinhado é meu]
Mas, sem deixar de reconhecer o importante papel desempenhado pela Igreja em Timor, não podemos criar uma imagem idealizada e distante da realidade na qual o clero apareça transfigurado em meiga ama-de-leite que exerce o seu labor pedagógico na mais mansa das atitudes. Os timorenses contam muitas histórias sobre venerandos padres famosos por distribuírem chapadas no meio das missas, e nas escolas da Igreja também se continuam a usar ainda hoje (como nas do Estado) castigos corporais. Ao longo da história a Igreja esteve muitas vezes na posição de autoridade mesmo no mundo secular, e a evangelização de Timor não foi isenta de querelas. No livro “
Timor Loro Sae - 500 Anos”, o historiador Geoffrey C. Gunn conta-nos sobre disputas no séc. XVII entre os dominicanos já instalados e os jesuítas que pretendiam instalar-se e cita documentos desta última ordem que “
sugerem uma actuação criminosa por parte dos dominicanos invejosos, que, tendo vivido ali durante 100 anos, «se recusam a aprender a língua nativa para grande detrimento da salvação do povo. Não impedem os pregadores muçulmanos de islamizar os gentios, mas gostariam de expulsar os outros missionários. Ocupam-se activamente a construir barcos para o seu comércio e a obter lucros, deixando as almas ao abandono».” (pág. 83)
A palavra “
amo” como forma de tratamento dos sacerdotes não é de resto exclusiva de Timor. Também existe nas Filipinas, que tal como Timor são uma sociedade católica conservadora culturalmente mestiça ibero-asiática. Vejamos então um trecho de “
Noli Me Tangere”, grande romance de José Rizal, nacionalista filipino do séc. XIX fuzilado pelas autoridades coloniais espanholas, no original em espanhol e em traduções para inglês e para tagalog:
«
Entretanto el entusiasmo del predicador subía por grados. Hablaba de los antiguos tiempos en que todo filipino, al encontrar un sacerdote, se descubría, doblaba una rodilla en tierra, y le besaba la mano. “¡Pero ahora – añadía- sólo os quitáis el salakot o el sombrero de castorcillo, que colocáis medio ladeado sobre vuestra cabeza para no desarreglar el peinado!. Os contestáis con decir: ¡buenos días,
among!
9 [
Nota 9: Del español 'amo,' señor, usado en tagalog como adjetivo y por lo tanto con la desinencia 'ng.' La frase completa sería 'ámong pare' o 'ámong cura.'], y hay orgullosos estudiantillos de poco latín, que por haber estudiado en Manila o en Europa se creen con derecho de estrecharnos la mano en lugar de besarla... ¡Ah!, el día del juicio pronto viene, el mundo se acaba, muchos santos lo han profetizado, ¡va a llover fuego, piedra y ceniza para castigar vuestra soberbia!”.
Y exhortaba al pueblo a que no imitase a esos salvajes, sino que los huyese y aborreciese, porque estaban excomulgados.
- ¡Oíd lo que dicen los santos concilios! - decía-. Cuando un indio encontrare en la calle a un cura, doblará la cabeza y ofrecerá el cuello para que el
among se apoye en él; si el cura y el indio van a caballo ambos, entonces el indio se parará, se sacará el salakot o sombrero reverentemente; en fin, si el indio va a caballo y el cura a pie, el indio bajará del caballo y no volverá a montar hasta que el cura le diga ¡sulung!,
10 o esté ya muy lejos. Esto dicen los santos concilios y el que no obedezca estará excomulgado”. »
(6)«In the meantime the preacher’s enthusiasm was growing by leaps and bounds. He referred to the old times when every Filipino on meeting a priest, uncovered himself, bent one knee to the ground and kissed the hand of the religious. “But today,” he added, “he removes only his
sakalot or his felt hat, which is tilted one way so as not to disarrange the hair! You are content with saying: Good morning
among, master; and there are arrogant
estudiantillos who know little Latin who, because of having studied in Manila or in Europe, believe it their right to shake our hand instead of kissing it. Ah! the world is coming to an end; many saints have prophesied it. It is going to rain fire and brimstone to punish your pride!”
And he exhorted the people not to imitate those savages; to flee from them, abhor them, because they are excommunicated. “Pay attention to what the holy councils proclaim,” he said. “When an
Indio meets a priest on the street, he must bend his head and offer his neck for the
among to lean on. If the priest and the
Indio are both on horseback, then the
Indio should stop, reverently remove his sakalot or hat; and finally, when the
Indio is on horseback and the priest on foot, the Indio should get down from his horse and not mount it again until the priest tells him
sulong! begone! Or is already far away. That is what the holy councils say and he who does not obey will be excommunicated.” »
(7)
«Samantala nama’y lalong nag-uulol ang sigabo ng kalooban ng nagsesermon. Tinutukoy ang matatandang kapanahunan, noong pag nakasalubong ng isang pari ang sinumang Pilipino ay nag-aalis ng sumbrero, iniluluhod sa lupa ang isang paa at humahalik ng kamay. “Datapwa’t ngayon,” ang dugtong niya, “ay nag-aalis na lamang kayo ng salakot o ng sumbrerong kastorilyo, na inilalagay ninyong pakiling sa ulo, upang huwag magusot ang buhok! Nasisiyahan na kayo sa pagsasabi ng: magandang araw po
among! At may mga mapalalong estudiantillos de poco latin, na sa dahilang nakapag-aral sa Maynila o sa Europa ay nag-aakalang nararapat nang kami’y kanilang kamayan at huwag halikan ng kamay…”“Ah…ang araw ng paghuhukom ay nalalapit na, ang mundo’y natatapos na; maraming banal ang humula ng gayon, uulan ng apoy, bato at abo upang parusahan ang inyong kapalaluan!”
At pinangaralan ang bayan upang huwag gumaya sa mga salbaheng iyon, kundi bagkus pa ngang sila’y layuan at kamuhian sapagka’t silay mga excomulgado.“Pakinggan ninyo ang sinasabi ng mga santong concilio!” anya, “kapag natagpuan ng isang Indio sa lansangan ang isang kura ay iyuyuko ang ulo at ihahain ang leeg upang ang
among ay makapangalalay; kung ang kura at ang Indio ay kapwa nangangabayo, ang Indio ay titigil, magalang na mag-aalis ng salakot o sumbrero; sa kahuli-hulihan, kung ang Indio ay nangangabayo at ang kura ay naglalakad, ang Indio ay lulunsad sa kabayo at hindi sasakay na muli hanggang hindi siya pinagsasabihan ng: sulong ng kura, o kaya’y malayung-malayo na ito. Ito ang sinasabi ng mga banal na konsilyo at ang hindi sumunod ay eskomulgado.” »
(8)
(1) - “
Before the arrival of the Portuguese the Timorese were politically organized into some 46 small independent kingdoms, all free and independent of one another.”
(2) “
Crimes such as incest and child and wife abuse were virtually unknown.”
(3) O artigo chama-se “
Aprendizagem do Léxico Português e Empréstimos – Timor, restante Sudeste Asiático e Japão” e foi publicado em 2004 na revista do Instituto Nacional de Linguística “
Estudos de Línguas e Culturas de Timor-Leste”.