Em Díli as crianças brincam nas ruas enquanto cai a chuva quente da monção. Aqui em Portugal a chuva é fria e mais triste...
Um blog em português - e de vez em quando em tétum e em tocodede - sobre os devaneios de um professor e tradutor ilhavense a morar em Timor. Sobre temas timorenses e do Oriente em geral, e sobre outras coisas de vez em quando...
segunda-feira, julho 30, 2007
Saudades
Em Díli as crianças brincam nas ruas enquanto cai a chuva quente da monção. Aqui em Portugal a chuva é fria e mais triste...
sábado, julho 21, 2007
quinta-feira, julho 12, 2007
quarta-feira, maio 09, 2007
Ou às vezes a tradição ainda é o que era...

(Bali - Foto de autor desconhecido)
Fotos abaixo: Recentemente (2003) num templo da religião hindu (maioritária em Báli) num lugar simpático chamado Ubud. Os balineses levam a cabo as suas cerimónias religiosas em templos onde por vezes há estátuas como estas. Parece haver alguma diferença em relação ao omnipresente discurso sobre o pecado na tradição judaico-cristã...
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sexta-feira, maio 04, 2007
Quando for grande quero ser professor de inglês
Ganham bem estes professores australianos (US$50000-60000 por um contrato de um ano). Alguns portugueses que costumam espernear muito com os ataques à língua portuguesa em Timor irão seguramente começar agora a criticar o comandante das FDTL, Taur Matan Ruak, por permitir esta concorrência desleal contra o idioma de Camões.
E talvez até façam “uma vaquinha”, ou subscrição pública, para aumentar o salário dos professores portugueses...
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A tradição já não é o que era...
Este post é motivado por um comentário de um leitor no post anterior.
Como era a tradição balinesa...
Como era a tradição balinesa...







A vergonha do corpo é uma tradição ocidental trazida para Timor e para Báli pelas estruturas dos poderes coloniais.
Mesmo entre os javaneses, maioritariamente muçulmanos, a disseminação do uso do jilbab é um fenómeno muito recente (pós queda do regime de Suharto), e um desvio em relação ao islamismo sincrético e moderado tradicionalmente aí praticado.
segunda-feira, abril 23, 2007
Isto é tudo uma questão de imagem
Báli vende uma imagem de paz e amor, harmonia e graciosidade que seduz milhares de turistas do mundo inteiro. Há na ilha uma cultura de bem receber que se manifesta por exemplo na limpeza e elegância simples que existe habitualmente mesmo nos warung mais modestos, e na forma como as pessoas são tolerantes com hábitos diferentes dos seus, o que permite que australianas aos montes circulem pelas ruas de Kuta em biquíni sem que ninguém lhes atire pedras.



Em Timor há ainda muito trabalho a fazer, quer na educação para a tolerância dentro das comunidades, quer ao nível do funcionamento das estruturas do Estado. O turista que se afoite a comprar um bilhete da Merpati para vir visitar “a mais jovem nação do mundo” será recebido no interior do Aeroporto Internacional Nicolau Lobato por este quarto de banho deprimente, entupido e com o autoclismo avariado. Será muito difícil manter um quarto de banho decente a funcionar?
quarta-feira, abril 18, 2007
Funcao publica
Se entrarmos num Ministerio em Timor e formos espreitar o que estao a fazer os funcionarios nos seus computadores ha fortes probabilidades de haver varios a jogar "solitaire".
Se for em Portugal ou no Brasil... a mesma coisa!

Ainda bem que em Portugal o primeiro-ministro Jose Socrates anda a por alguns destes "servidores do publico" finalmente na linha...
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sexta-feira, março 09, 2007
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quinta-feira, fevereiro 22, 2007
quarta-feira, fevereiro 07, 2007
Textos antigos
Editoriais do Semanário
Em 2004, durante cerca de um mês e meio assumi em Díli as funções de Director provisório do jornal de língua portuguesa Semanário. O Director fundador, António Veladas, ia ausentar-se do país em férias e propôs-me esse desafio, que aceitei. Por razões que não vêm ao caso, ele acabou por se ver impedido de reassumir a tarefa no momento que havíamos inicialmente combinado, e ficou depois no seu lugar outra pessoa. Os pequenos textos que se seguem são os editoriais que escrevi durante esse período:
Quando o António Veladas me propôs que assumisse as funções de director do Semanário, durante as férias dele, hesitei. São muitos os meus afazeres e a última coisa de que preciso é de ainda mais trabalho. Mas acabei por aceitar, por uma questão de coerência com as posições que tenho defendido. Claro que teria sido muito mais fácil declinar o convite e ficar depois sentado numa esplanada a beber umas cervejas frescas e a dizer mal do trabalho de quem faz alguma coisa, como é hábito de muita gente da nossa praça. No entanto, é muito mais interessante pôr mãos à obra e tentar fazer algo que se veja.
O António teve ainda tempo de deixar preparada a maior parte deste jornal, antes de partir, de forma que a transição se torna mais suave. O jornal da próxima semana será a prova de fogo da equipa que cá ficou a labutar. A linha editorial do jornal irá naturalmente manter-se, com algumas pequenas alterações temporárias, nomeadamente no que se refere à ausência de colaboradores habituais, por motivo de férias. Teremos vários dossiês especiais sobre temas da actualidade nacional, e daremos também destaque à cultura.
O Semanário é um jornal timorense em língua portuguesa, vocacionado essencialmente para o público timorense, no qual trabalham timorenses e malais. Não é um jornal para expatriados. Cumpre uma função de suma importância, enquanto órgão de comunicação social em português, num panorama em que a maior parte dos jornais parece dar mais importância à língua dos indonésios do que às línguas oficiais de Timor-Leste, e em que a televisão nacional transmite programas infantis em língua inglesa.
Tentaremos também marcar uma diferença pela forma de relatar os acontecimentos, evitando o sensacionalismo fácil, que só serve para assustar a população. Como aconteceu no início da semana, quando uma manifestação na capital em que estava presente cerca de meia centena de pessoas se viu transformada nas palavras de alguns órgãos de comunicação social no dia seguinte num movimento de quinhentos ex-guerrilheiros.
Semanário [jornal em língua portuguesa publicado em Díli] nº 29, 24 de Julho de 2004
Em 2004, durante cerca de um mês e meio assumi em Díli as funções de Director provisório do jornal de língua portuguesa Semanário. O Director fundador, António Veladas, ia ausentar-se do país em férias e propôs-me esse desafio, que aceitei. Por razões que não vêm ao caso, ele acabou por se ver impedido de reassumir a tarefa no momento que havíamos inicialmente combinado, e ficou depois no seu lugar outra pessoa. Os pequenos textos que se seguem são os editoriais que escrevi durante esse período:
Quando o António Veladas me propôs que assumisse as funções de director do Semanário, durante as férias dele, hesitei. São muitos os meus afazeres e a última coisa de que preciso é de ainda mais trabalho. Mas acabei por aceitar, por uma questão de coerência com as posições que tenho defendido. Claro que teria sido muito mais fácil declinar o convite e ficar depois sentado numa esplanada a beber umas cervejas frescas e a dizer mal do trabalho de quem faz alguma coisa, como é hábito de muita gente da nossa praça. No entanto, é muito mais interessante pôr mãos à obra e tentar fazer algo que se veja.
O António teve ainda tempo de deixar preparada a maior parte deste jornal, antes de partir, de forma que a transição se torna mais suave. O jornal da próxima semana será a prova de fogo da equipa que cá ficou a labutar. A linha editorial do jornal irá naturalmente manter-se, com algumas pequenas alterações temporárias, nomeadamente no que se refere à ausência de colaboradores habituais, por motivo de férias. Teremos vários dossiês especiais sobre temas da actualidade nacional, e daremos também destaque à cultura.
O Semanário é um jornal timorense em língua portuguesa, vocacionado essencialmente para o público timorense, no qual trabalham timorenses e malais. Não é um jornal para expatriados. Cumpre uma função de suma importância, enquanto órgão de comunicação social em português, num panorama em que a maior parte dos jornais parece dar mais importância à língua dos indonésios do que às línguas oficiais de Timor-Leste, e em que a televisão nacional transmite programas infantis em língua inglesa.
Tentaremos também marcar uma diferença pela forma de relatar os acontecimentos, evitando o sensacionalismo fácil, que só serve para assustar a população. Como aconteceu no início da semana, quando uma manifestação na capital em que estava presente cerca de meia centena de pessoas se viu transformada nas palavras de alguns órgãos de comunicação social no dia seguinte num movimento de quinhentos ex-guerrilheiros.
Semanário [jornal em língua portuguesa publicado em Díli] nº 29, 24 de Julho de 2004
Muitas nações recém-independentes após terem sido colonizadas por outras potências tiveram que se defrontar com um dilema: o que fazer com os seus combatentes da liberdade? Nalguns casos, como por exemplo em países da África lusófona, a opção foi frequentemente dar-lhes lugares no aparelho de Estado, transformando bons comandantes guerrilheiros em maus ministros, secretários de Estado e directores-gerais. Timor-Leste parece ter aprendido alguma coisa com os erros dos outros, fugindo à tentação de premiar o mérito dos antigos comandantes e combatentes das Falintil com lugares nas estruturas do Governo, a não ser que os próprios demonstrem capacidades próprias para a função. Mas isto faz surgir um outro problema: como premiar então homens que abdicaram de tudo - da vida familiar, do aconchego de um lar e de um tecto sobre as suas cabeças, de uma vida de relativa segurança com salário ao fim do mês - para se dedicarem ao ideal da independência da pátria e da liberdade para o seu povo?
A entrada para as FDTL, já não um exército guerrilheiro de libertação, mas uma tropa moderna com outro tipo de objectivos, foi condicionada a um processo de selecção que deixou de fora alguns dos ex-combatentes do tempo da ocupação. Para esses, espera-se que o novo Estado saiba encontrar formas simbólicas, mas significativas, de lhes demonstrar que não foram esquecidos e que a Pátria tem consciência do que lhes deve. Não são tantos como às vezes se diz, e há comissões que estão a reunir os dados necessários para saber realmente quem são. Homens como Xanana Gusmão, Taur Matan Ruak ou Lu Olo conhecem-nos, andaram com eles no mato.
Há quem diga que a UIR [Unidade de Intervenção Rápida da Polícia] estava ansiosa para testar os equipamentos e que usou força excessiva para afastar os manifestantes do Palácio do Governo na semana passada, tendo em conta que eram poucos e estavam desarmados. É uma opinião discutível, o gás lacrimogéneo dá muito nas vistas mas é altamente eficaz para afastar as pessoas sem ser preciso usar violência.
O que não é discutível é a gravidade das acusações feitas à PNTL de tortura de detidos na sequência da manifestação. Sendo Timor-Leste um Estado de Direito, espera-se agora que, para além dos processos disciplinares na própria instituição, os alegados torturadores sejam julgados em tribunal para averiguar da verdade das acusações. Não é admissível que a PNTL possa usar os métodos de interrogatório que eram habituais por parte das forças de segurança indonésias, na época da ocupação.
Semanário [jornal em língua portuguesa publicado em Díli] nº 30, 31 de Julho de 2004
Regras no trânsito
Ontem à noite (sexta-feira, 6) fui mandado parar numa operação-stop da Polícia ao lado do Edifício ACAIT. Como circulava sem os documentos da motorizada, esta foi apreendida, e terei que pagar uma multa para a reaver. A minha motorizada é uma daquelas em “não-sei-quanta-gésima” mão, que foi sendo revendida de malai para malai ao longo dos últimos anos, e cujos documentos algum dos proprietários perdeu entretanto há muito tempo. Claro que me causa transtorno, mas encarei o percalço pelo lado positivo, isto parece significar que as regras de circulação na estrada estão a ser aplicadas e que Timor-Leste vai deixar de ser o “faroeste”, uma terra sem lei, no que se refere ao trânsito. No momento em que fui mandado parar havia já lá umas vinte motorizadas apreendidas aos seus condutores, e “ainda a noite era uma criança”. Resta mencionar, porque também deste tipo de pormenores se faz a imagem de um Estado, que os agentes da PNTL envolvidos na operação com os quais tive contacto mantiveram sempre uma postura de cortesia e profissionalismo.
Crianças mendigas
Durante séculos nos relatos de viajantes e missionários os timorenses foram descritos como um povo digno, altivo, que se recusava à mendicidade. Em 1999, os jornalistas aqui chegados para cobrir a chegada da Interfet ficaram assombrados com a total destruição da cidade. Num contexto em que faltavam quase todos os bens essenciais, os repórteres escreviam para os seus jornais e contavam nas suas rádios e televisões que os timorenses, apesar das dificuldades, não pediam esmola. Falavam com admiração sobre um povo orgulhoso. Cinco anos de presença dos “internacionais” mudaram radicalmente tudo isso, e agora basta passar em frente dos restaurantes onde os malais costumam comer para encontrar dúzias de crianças a mendigar dinheiro. Alguns dizem “Security, security”, como se meninos e meninas daquela idade pudessem proteger os carros ou motorizadas se alguém pretendesse roubá-los. O trabalho infantil é um mal, mas seguramente um mal menor do que a mendicidade infantil. Se uma criança tem que andar a vender isqueiros ou CDs para ajudar no orçamento familiar, pelo menos sempre vai aprendendo o valor do trabalho, e se tiver pais conscientes, será incentivada a aplicar-se nos estudos para poder ter uma vida melhor. As crianças de rua não assumem ainda as proporções de lugares como o Brasil ou Moçambique, mas é melhor que se faça alguma coisa ou estaremos a formar uma geração de pedintes. Se um destes pequenos mendigos conseguir que os malais que pensam estar a ser o bom samaritano lhe dêem por dia uns três dólares ganhará tanto como um funcionário público no fim do mês. Quem é que o convence depois a ir para a escola estudar para ter uma vida diferente?
Semanário [jornal em língua portuguesa publicado em Díli] nº 31, 7 de Agosto de 2004
A sétima edição do guia de viagens Lonely Planet sobre a Indonésia, publicada em Novembro de 2003, diz num texto assinado por um ignorante qualquer chamado Nick Ray (na página 33) que o Primeiro-Ministro Mari Alkatiri escolheu o português para língua oficial e que foi uma má escolha. O senhor que escreveu tal prosa passa por cima das decisões da Assembleia Constituinte democraticamente eleita em eleições organizadas pelas Nações Unidas, ignora as posições sempre oficialmente defendidas pelo CNRT, esquece as declarações de princípio dos partidos políticos deste 1975 até à independência, não tem em conta que o povo timorense elegeu os seus representantes sabendo de antemão que oficializar a língua portuguesa fazia parte do programa dos seus partidos.
Este tipo de declarações incorrectas é corrente em muitos meios de comunicação social, especialmente no mundo anglo-saxónico. Por outro lado, na minha terra costuma dizer-se “os cães ladram, mas a caravana passa”. Não creio que a opinião do senhor Nick Ray seja para levar a sério. Preocupa-me mais a atitude que persiste em certos jovens, que se queixam continuamente de que “o português é muito difícil”. Preocupo-me não pelo facto de eles não aprenderem português – há muitos outros que aprendem e quem fica a perder é quem fica parado – mas pelo que isso mostra da sua atitude perante a vida. Os argumentos deles deixam-me perplexo. Agora há quantidades enormes de livros e dicionários modernos distribuídos por todo o lado em Timor, incomensuravelmente mais do que alguma vez houve no tempo da administração colonial portuguesa. Há professores de nacionalidade portuguesa com cursos superiores de ensino de línguas espalhados pelo território, enquanto na época colonial não havia cá universidade, muitas das professoras do Liceu eram as esposas dos militares aqui colocados, muitas crianças aprendiam a ler e a escrever nas escolas primárias da “psico-social” onde o professor era muitas vezes um militar com a quarta classe que lá ia fazendo o que podia, mas não tinha preparação adequada para a função. Dizem que não falam português em casa; no tempo dos portugueses havia poucas famílias em que a língua de casa fosse a portuguesa. O maior escritor que Timor já produziu, Luís Cardoso, escreve com mestria em português, mas só aprendeu este idioma quando entrou para a escola, como as outras crianças com quem brincava. Conheço aqui muitos timorenses com o quinto ano antigo (equivalente à escola pré-secundária), ou mesmo com a quarta classe, que falam português fluente, apesar de quase não poderem exercitá-lo durante um quarto de século. Conheci um senhor, na época motorista no escritório da Comissão Europeia em Díli, que domina a língua portuguesa e que me contou que tinha aprendido no mato com a Fretilin, nos primeiros anos da ocupação, escrevendo na terra e nas cascas das árvores. Conheço pessoas, jovens e menos jovens, que aprenderam a falar português com correcção desde 1999 até agora. É que já passaram cinco anos. Muitos dos que ficam a protestar que a língua portuguesa é difícil sabem agora o mesmo que sabiam nessa altura. Isso deixa-me confuso: o que esses moços e moças querem dizer é que têm uma capacidade intelectual menor do que a da geração dos pais e avós deles? Ou simplesmente não lhes apetece fazer pela vida, e daqui por uns anos irão fazer manifestações quando os colegas mais diligentes arranjarem emprego e eles não?
Semanário [jornal em língua portuguesa publicado em Díli] nº 32, 14 de Agosto de 2004
Há uma Igreja em Lisboa onde vi uma vez um cartaz colado à entrada que dizia “Deus chama-o mas não através de telemóvel. Por favor desligue o seu ao entrar na Igreja.” Já repararam como o telemóvel passou a ser dono e senhor da vida de muita gente? Eterno intruso, sempre a desconcentrar-nos do trabalho, a acabar com o nosso sossego, a meter-se com a nossa privacidade... Sim, claro que é muito útil, mas deve ser um servo e nunca um senhor. Hoje em dia há pessoas que nunca desligam o seu, vão para reuniões que não devem ser interrompidas de telemóvel ligado, vão para as aulas de telemóvel ligado, até para os exames... E os colegas que sofram enquanto a maldita maquineta toca em acordes agudos uma cantiga qualquer que esteja na moda. E muito poucos utilizadores parecem ter descoberto já que os aparelhos endiabrados têm um comando para os pôr no silêncio de forma a não perturbar ninguém. Depois há aqueles, talvez deva dizer principalmente aquelas, que têm coragem de ficar a namorar pelo telemóvel no lugar de trabalho enquanto o cliente espera à sua frente para ser atendido. E já tentaram manter uma conversa decente com um(a) jovem moderno(a) de aparelho na mão a jogar “Snake” sem parar ou a mandar e receber mensagens “sms” ininterruptamente? Não é coisa para dar cabo dos nervos de um cidadão pacato e pouco dado a emoções fortes?
Acho que está a chegar a altura de eu ir viver para algum lugar como Hatu Builiku. Parece que os telemóveis lá ainda não funcionam...
Semanário [jornal em língua portuguesa publicado em Díli] nº 33, 21 de Agosto de 2004
A Ministra Ana Pessoa está de parabéns por ser a única pessoa que fala regularmente em língua portuguesa na TVTL, para além de alguns discursos de Xanana Gusmão por vezes também neste idioma. Com efeito, não se compreende muito bem porque não há mais presença da língua portuguesa na televisão nacional, sendo esta uma das línguas oficiais do país, a única que está com carácter definitivo já no sistema de ensino (a língua dos indonésios só continua a ser língua veicular nas escolas como medida provisória, e os currículos do tétum ainda estão a ser desenvolvidos) e sendo o idioma em que o Parlamento produz a legislação nacional. Como os responsáveis da televisão parecem achar que falar ou escrever português é pecado, colocam também todas as legendas numa algaraviada macarrónica que pretende passar por tétum, e acaba por nem ser tétum nem português, mutilando inclusivamente com o maior despudor o nome oficial das instituições do Estado, como Ministérios ou Secretarias de Estado (cuja designação é habitualmente em língua portuguesa). Sendo a televisão nacional um serviço público talvez fosse útil se ajudasse os cidadãos a conhecerem o nome correcto das instituições nacionais, em vez de “desajudar”.
Tem sido mencionada por vezes por alguns responsáveis timorenses a possibilidade de se solicitar que a RTP internacional passe a ser reemitida aqui como um segundo canal de televisão disponível vinte e quatro horas por dia, como acontece com a RTP África nos países africanos lusófonos. Isso seria algo de bastante útil, aprender as línguas oficiais do Estado é não apenas um dever patriótico mas também um direito de cidadania, e ter programação disponível em português na televisão é uma ajuda importante para quem está a aprender a língua.
Outra medida bastante produtiva seria pedir à RTP a cedência de programas infantis de qualidade como a Rua Sésamo, para emitir na TVTL em horas adequadas para as crianças poderem ver. Actualmente vejo por vezes programas para as crianças em inglês na televisão, e não duvido que seja muito giro e útil aprender essa língua, mas não creio que seja a prioridade mais urgente para as meninas e meninos que andam a esforçar-se na escola para dominar o português.
Semanário [jornal em língua portuguesa publicado em Díli] nº 34, 28 de Agosto de 2004
Com este número chega ao fim a minha curta passagem pelo Semanário como Director. Foi um desafio interessante, mas chegou a altura de voltar à normalidade. E a normalidade para mim não é dirigir um jornal, não sou jornalista, nem tive nunca pretensões de sê-lo. Sou professor, o que talvez tenha influenciado os assuntos tratados pelo Semanário durante este mês e meio, e os textos escolhidos. É-me naturalmente mais fácil falar do que conheço... Sou professor, e estou cheio de trabalho na Universidade, o que levou a que o meu trabalho voluntário me “tenha saído do corpo”, custou-me pelo menos duas “directas” (noites sem dormir) por semana a trabalhar. Mas não tenho nada que me pôr com lamúrias porque só aceitei porque quis. Continuo de resto a manter a mesma posição de princípio: é muito importante existir um jornal de língua portuguesa em Timor-Leste. O Semanário conseguiu ao longo da sua existência uma posição de relevo na sociedade timorense. A compra de um milhar de exemplares todas as semanas pela Cooperação Portuguesa é garantia de que conseguimos fazer chegar o jornal também aos distritos, já que esses mil jornais são depois distribuídos através dos professores portugueses e dos superintendentes da educação a professores timorenses por todo o país. Mas há muito por fazer ainda, principalmente no que se refere a recursos humanos. É um trabalho monstruoso se concentrado em poucas mãos, os jornalistas não dominam o português e escrevem em tétum ou indonésio, os textos passam depois para tradutores, e finalmente voltam a ser revistos... pelo Director. Se o Director tem outras coisas para fazer tudo isto se torna mais complicado, como o leitor pode verificar neste número. Os jornalistas estão a estudar português, e terão que o dominar, talvez numa fase posterior o jornal possa recrutar mais, ou receber estagiários de cursos que funcionem em língua portuguesa na universidade, mas para agora daria jeito ter alguns voluntários que fizessem tarefas como a revisão de textos em língua portuguesa. E termino como comecei: é melhor pôr mãos à obra do que ficar sentado a dizer mal de quem faz alguma coisa, é melhor acender uma vela do que maldizer a escuridão.
P.S. – Já depois de ter escrito este editorial, o António telefonou-me a dizer que tem uma costela partida e vai chegar cerca de uma semana mais tarde do que o previsto. Isso significa que o meu caríssimo leitor vai ter que me aturar aqui mais uma semana. Só mais uma.
Semanário [jornal em língua portuguesa publicado em Díli] nº 35, 4 de Setembro de 2004
Pirataria
Na Indonésia é difícil encontrar à venda filmes e CDs de música originais, em Timor-Leste é quase impossível. Quase tudo o que existe no mercado local é contrafeito, falsificado, ou seja, produtos-”piratas”. Isso é uma situação que ninguém tem interesse em mudar, se quisermos falar com franqueza, a não ser os artistas timorenses, que saem prejudicados, mas estes não constituem um grupo de pressão significativo. A realidade é que a situação actual é a única que permite que um cidadão leste-timorense (ou indonésio, já que os CDs piratas que se encontram em Timor têm aí origem) tenha poder de compra para adquirir filmes recentes ou CDs de música. Um CD áudio original que em Portugal custa para cima de quinze dólares obtém-se aqui em versão pirata por um dólar, um DVD que lá tem um preço que pode ultrapassar os trinta dólares encontra-se em Timor-Leste por menos de três dólares. Neste contexto é com muita satisfação que vemos como o mercado timorense está inundado de CDs e VCDs piratas de música dita portuguesa (deveria antes chamar-se música lusófona, porque a maior parte dela é em língua portuguesa, sim, mas oriunda de países como o Brasil, Angola, Cabo Verde...). Os empresários que se dedicam a ir fazer cópias contrafeitas à Indonésia não trabalham por projectos políticos ou sonhos ou ideais nacionalistas, eles investem na reprodução de milhares de cópias dessas músicas porque sabem que existe procura por parte dos consumidores timorenses. Isso revela como aspectos culturais e gostos musicais do mundo da lusofonia fazem parte integrante da actualidade nacional, e nunca deixaram de fazer, apesar de todos os esforços da Indonésia para suprimir esse importante traço da identidade de Timor-Leste.
Baby sitting
Em Timor quando um casal que tem filhos pequenos resolve ir jantar fora, ou dar um passeio romântico a ver a lua e as estrelas na praia, as crianças ficam com os irmãos mais velhos, ou com os avós, ou com os tios, ou com a crioula, ou com uma ama (ou nalguns casos, o marido prefere deixar a esposa em casa a tomar conta dos filhos e vai jogar às cartas com os amigos, ou para os copos, ou tentar engatar as moças que trabalham nos bares). Em países como a Austrália, EUA, e em Portugal nas grandes cidades, onde a família alargada foi substituída pela família nuclear de pai, mãe e um ou dois filhos apenas, a solução costuma ser arranjar uma jovem, habitualmente estudante, que fica umas horas a tocar conta dos meninos. Esse trabalho chama-se baby sitting. Foi isso que estive a fazer com o Semanário, mas agora chegou o momento de entregar a criança ao pai.
Agradeço a quem fez a gentileza de ir lendo o que aqui fui escrevinhando, e agora que me retiro prometo continuar a entregar uns textos de vez em quando ao Director, como contributo para este projecto que me parece de muito mérito.
Semanário [jornal em língua portuguesa publicado em Díli] nº 36, 11 de Setembro de 2004
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quarta-feira, janeiro 31, 2007
terça-feira, janeiro 30, 2007
sábado, janeiro 27, 2007
Cães com um olho de cada cor
Na casa dos meus sogros em Liquiçá nasceu uma ninhada de cães muito giros em que alguns têm um olho de cada cor:



quarta-feira, janeiro 17, 2007
Tradição
As autoridades locais decidiram mandar pintar passadeiras em várias ruas do centro de Díli. O problema é que se esqueceram de fazer uma campanha de educação rodoviária na televisão e nos jornais para ensinar às pessoas para que servem as ditas. Se os peões descobrirem antes dos condutores a utilidade das passadeiras vai ser uma tragédia. E parece-me que a hecatombe vai começar pelos peões estrangeiros, que - pelo menos na maioria - já sabem qual é o objectivo de uma passadeira. Já estou a imaginar as próximas primeiras páginas do STL: “Durante o dia de hoje morreram mais cinco malais enquanto estavam a atravessar a estrada por cima daquelas riscas brancas que o Governo mandou pintar”.
As regras de trânsito aqui são calmamente ignoradas pela maior parte dos timorenses. No cruzamento de Colmera quem vem do supermercado Fitun Maubara encontra um sinal de STOP. São muito poucos os condutores que aí param, sendo habitual que parem antes os que vêm na estrada de sentido único que vem dos lados do BNU. Também no cruzamento do banco australiano ANZ é normal que os condutores que chegam vindos da rua da Escola Paulo VI prossigam a sua marcha na maior das despreocupações, desrespeitando o sinal de “aproximação de estrada com prioridade” que encontram no caminho. Aí param os que vem da direcção do “galódromo”, apesar de a lei dizer que têm prioridade. Num caso e noutro os sinais são completamente ignorados e o que funciona é a tradição.
Ainda a propósito de tradição, tenho falado com vários timorenses manifestando o meu horror pelo crime hediondo de há alguns dias em Maubara, onde três mulheres da mesma família foram queimadas, assassinadas por serem consideradas bruxas (buan). A maior parte das pessoas reage como se fosse uma coisa natural: “então, mas elas eram buan”. Houve uma pessoa que me disse com toda a calma que alguns populares já tinham tentado queimá-las antes, nos tempos da UNTAET, mas a CIVPOL tinha interferido, impedindo o normal desenrolar da acção do povo. Na ocasião alguém tinha chegado a decepar uma orelha a uma das bruxas mas quando os polícias da ONU iam levá-la para o hospital viram que a orelha já tinha nascido novamente, o que teria causado grande surpresa a esses malais. Depois de várias conversas deste género, encontrei alguém que se solidarizou com o meu horror. “Não era preciso tê-las queimado”, explicou, “bastava ter-lhes pregado um prego na testa”!
As regras de trânsito aqui são calmamente ignoradas pela maior parte dos timorenses. No cruzamento de Colmera quem vem do supermercado Fitun Maubara encontra um sinal de STOP. São muito poucos os condutores que aí param, sendo habitual que parem antes os que vêm na estrada de sentido único que vem dos lados do BNU. Também no cruzamento do banco australiano ANZ é normal que os condutores que chegam vindos da rua da Escola Paulo VI prossigam a sua marcha na maior das despreocupações, desrespeitando o sinal de “aproximação de estrada com prioridade” que encontram no caminho. Aí param os que vem da direcção do “galódromo”, apesar de a lei dizer que têm prioridade. Num caso e noutro os sinais são completamente ignorados e o que funciona é a tradição.
Ainda a propósito de tradição, tenho falado com vários timorenses manifestando o meu horror pelo crime hediondo de há alguns dias em Maubara, onde três mulheres da mesma família foram queimadas, assassinadas por serem consideradas bruxas (buan). A maior parte das pessoas reage como se fosse uma coisa natural: “então, mas elas eram buan”. Houve uma pessoa que me disse com toda a calma que alguns populares já tinham tentado queimá-las antes, nos tempos da UNTAET, mas a CIVPOL tinha interferido, impedindo o normal desenrolar da acção do povo. Na ocasião alguém tinha chegado a decepar uma orelha a uma das bruxas mas quando os polícias da ONU iam levá-la para o hospital viram que a orelha já tinha nascido novamente, o que teria causado grande surpresa a esses malais. Depois de várias conversas deste género, encontrei alguém que se solidarizou com o meu horror. “Não era preciso tê-las queimado”, explicou, “bastava ter-lhes pregado um prego na testa”!
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quarta-feira, janeiro 10, 2007
Quando a ignorancia e a tradicao matam
EM MAUBARA
Vizinhos mataram três feiticeiras
Três mulheres foram mortas sábado em Maubara, 40 quilómetros a oeste de Díli, acusadas de feitiçaria pelos vizinhos, crime que está a ser investigado pela Polícia da ONU (UNPOL).Segundo a porta-voz da UNPOL, comissária Mónica Rodrigues, o crime está a ser averiguado por uma equipa de investigação criminal da ONU, não havendo ainda informações disponíveis sobre o móbil do crime.As autoridades policiais timorenses locais disseram que as três mulheres eram da mesma família, tinham 70, 50 e 25 anos, e que foram mortas e queimadas por populares que as acusaram de serem bruxas.A comissária Mónica Rodrigues acrescentou que também no fim-de-semana, na zona de Delta 4, no bairro de Comoro, na parte ocidental da capital timorense, um morador encontrou uma granada, tendo efectivos da GNR sido enviados para o local, confirmando tratar-se de um engenho explosivo de fragmentação, para uso militar, ainda intacto. A UNPOL está também a investigar a morte de um homem, cujo corpo apresentava várias marcas de ferimentos. O crime registou-se sábado na aldeia de Naigidal, distrito de Covalima, sudoeste de Díli.Segundo a UNPOL, na capital timorense continua a registar -se uma situação "relativamente calma, com alguns incidentes esporádicos, mas sem a intensidade das últimas semanas".
Jornal de Noticias
Terça-feira, 9 de Janeiro de 2007
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E triste o quao cruel pode ser a ignorancia! Choremos!...
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sexta-feira, janeiro 05, 2007
Malais
Em Timor sou um malai. Já era malai muito antes de vir para Timor, porque o convívio com a comunidade timorense tinha-me granjeado aí muitos amigos que me chamavam, naturalmente, malai, enquanto iam dizendo que eu já era meio timorense. É que se pode ser as duas coisas ao mesmo tempo. Conheço aqui um ancião português que veio para cá fazer a tropa como um moço na flor da idade e nunca mais de cá saiu, passou muito mais anos em Timor do que na terra natal, mas, como é natural, toda a gente lhe chama aqui o Malai Cruz. Tenho um amigo chamado Abílio Bessa que também veio para aqui jovem como militar e gostou tanto disto que acabou por casar com uma moça de Maubara e estabelecer-se por lá. Em 1975 foi um dos refugiados em Atambua evacuado para Portugal com a família, e foi morar no Porto. Durante muitos anos, antes de Timor se tornar moda e as pessoas fazerem cordões humanos vestidas de branco, havia pouca gente a mexer-se para que a situação mudasse, mas entre esses contava-se a CDPM, A Paz é Possível em Timor-Leste, o Prof. Barbedo de Magalhães e... a família Bessa. Quando a liberdade chegou a Timor, ele também veio para cá, tal como uma das filhas, e ambos construíram as suas casas no mesmo bairro de Díli. Questões de saúde e de família têm-no levado a dividir o tempo entre Timor e Portugal, e eu e a minha mulher acabámos por alugar a casa dele. No meu bairro toda a gente me conhece como o malai que alugou a casa do Avô Malai. “Avô” é aqui a forma de tratamento dos mais velhos, mesmo que não sejam da família. Se eu quiser perguntar o preço dos tomates no mercado a uma vendedora velhinha perguntarei “Avó, tomate ne’e folin hira?” (Avó, qual é o preço dos tomates?). A minha esposa é timorense, se tivermos filhos aqui eles serão “malae-oan”, filhos do malai.
Os malais, que são na generalidade umas criaturas muito cheias de manias estranhas, têm a obsessão do politicamente correcto (por exemplo, no mundo lá de onde vêm já não há “velhos”, agora há uns espectros trancafiados em lares e casas de repouso a que se chama “cidadãos da terceira idade”). Isso aplica-se inclusivamente a certos malais que chegam cheios de boas intenções a transbordar do peito e que se caracterizam pela atitude com que encaram os nativos “tão amorosos”: «Regozijai porque nós chegámos para vos salvar e trazemos a língua portuguesa, que é a panaceia universal que vai resolver todos os vossos problemas!» Alguns vem equipados para dar aulas sobre as obras de Gil Vicente e sobre “Os Lusíadas” e outras coisas que tais de que os timorenses precisam como de uma ida ao dentista sem anestesia. Há então uns malais que ficam muito escandalizados por serem chamados de malais, e que acham que isso é racismo e discriminação, e passam então a “ensinar” os nativos a não os chamarem assim. Os timorenses, inicialmente surpreendidos por os malais ficarem aborrecidos por serem chamados de malais, reagem com a benevolência que se deve ter com as crianças que ainda não sabem as regras de comportamento social (Sim, filho, o teu urso de peluche pode engolir o elefante do Mogli) e fazem-lhes a vontade, quando à sua frente. Alguns malais na terra deles já não chamam ciganos aos ciganos, mas mudaram-lhes o nome para “cidadãos de etnia cigana”; os timorenses acham que a língua serve para comunicar e não para complicar, por isso os chineses daqui não são chamados “cidadãos timorenses de etnia chinesa” mas sim “China-Timor” (Xina-Timór em tétum), o que permite distingui-los dos chineses recém-chegados, que não são de cá, e por isso são denominados de “China-Mandarim” ou “China” apenas. E já que falei em ciganos, lembremo-nos de que a palavra portuguesa “gajo” tem origem na língua antigamente falada por eles (o rom, ou romani, que ainda usam noutros países que não Portugal ou Espanha) e significava originalmente “alguém que não é cigano” (lembram-se do filme “Gadjo Dilo” – em tétum “malae bulak”?).
Também há uns malais burros que insistem em ouvir “malaio” em vez de “malai” (são normalmente os mesmos que pensam que o tecido tradicional “tais” tem um singular sem “s” e dizem preciosidades como “Olhe, sei lá, comprei hoje um tai divinal!”). Pelo menos actualmente, em Timor “malai” e “malaio” são duas palavras distintas com significados bem diferentes.
Mas afinal de onde vem esta palavra, “malai” na variedade de português que se fala em Timor e “malae” em tétum?
A. Mendes Corrêa no seu “Timor Português” (1944) diz que “por malai entendem os indígenas de Timor os estranhos, os Malaios de outras ilhas, os Chinas, os negros de África, os Árabes, os Portugueses metropolitanos, os Holandeses, os Europeus em geral. Eles próprios não se consideram Malaios, muito pelo contrário.»
Luís Thomaz num artigo de 1974, “Timor – Notas histórico-linguísticas”, pág. 231, defende que: “Por sua vez o nome que os malaios dão a si mesmos – melayu – tornou-se em Timor, sob a forma malae sinónimo de «estrangeiro, pessoa de fora de Timor» - recordação do tempo em que os malaios eram os únicos estrangeiros que apareciam nas costas da ilha. Osório de Castro nota que em Maluco o termo melayu é usado com o mesmo sentido.”
Mas há quem considere que a etimologia da palavra “malai” em Timor não tem nada a ver com “melayu”.
No seu artigo “East Timor and the Southwest Moluccas: Language, Time and Connections” (2000), Aone van Engelenhoven e John Hajek dizem-nos (pág. 121):
«A importante distinção entre os chamados ‘donos da terra’ e ‘donos dos barcos’ nas ilhas do Sudoeste das Molucas é não apenas crítica para as estruturas sociais na região, mas também um importante indicador histórico das relações com Timor no passado. Os ornusa ou clãs ‘donos da terra’ eram os verdadeiros senhores da terra, que já viviam nas ilhas antes da chegada dos ‘donos dos barcos’. Há textos históricos que revelam que a chegada dos donos dos barcos foi despoletada pela destruição da sua ‘Ilha Mãe’. Esta destruição é tradicionalmente explicada como o castigo supremo por uma luta fratricida que era proibida. Os nomes usados nestas histórias fornecem pistas importantes sobre ligações com Timor. Qualquer coisa que inclua malai como elemento reverte para Timor – o que se vê por exemplo em Sairmalai, o nome timorense do herói letinense Slerleti. ((32 A palavra malai, apesar das aparências, não tem nada a ver com Malay (ing.) [ou malaio (port.)], uma malformação europeia de melayu.)) O resultado é que todos os heróis, e consequentemente também os clãs que deles descendem, são considerados como sendo de origem timorense. O segmento Malai (lit. ‘Timor’) em muitos apelidos de família é altamente reverenciado devido à sua referência óbvia. Os exemplos incluem os apelidos Pelmalai ‘aliado timorense’ na ilha de Nila, e Maranmalai na ilha de Léti.
Reuniões recentes entre famílias keienses e do Sudoeste das Molucas na Holanda revelaram como ambos os lados tinham em comum narrativas semelhantes sobre a destruição de uma terra ou continente no ocidente (centrado na área de Timor-Luang). As histórias dos clãs falam sobre barcos que navegavam para o oriente a partir de Lun-Let, o nome keiense para o continente que era Luang. Os mitos letinenses contam-nos sobre pessoas que navegavam para e de Timor, e sobre o estabelecimento de povoações de ‘donos de barcos’ na costa de Malakitna-Malaliawna, o irmão mais novo (com malai ‘Timor’ bastante evidente).
As ligações entre comunidades em Timor-Leste e no Sudoeste das Molucas mantiveram-se mais directamente até tempos relativamente recentes. Alianças formais tradicionais, por exemplo, foram mantidas entre os governantes tradicionais de Kísar e Baucau até perto de meados deste século, mas acabaram por ser quebradas pelos portugueses. Também é verdade que laços de comércio tradicional foram mantidos até mais recentemente ainda, particularmente com comerciantes que falavam tétum de Leti e de Luang que se sabia visitarem Timor-Leste.» (A tradução do inglês é minha.)
Lendas na língua de Léti que mencionam esta ligação a Timor (Malai), e a sua análise antropológica e linguística, podem ser consultadas no livro de Aone van Engelenhoven “Leti, a language of Southwest Maluku” (2004), por exemplo nas págs 328, 329, 398.
Os dados destes autores relativos à antroponímia parecem ocorrer também entre os fatalucos da Ponta Leste de Timor, conheço uma moça de lá, de uma família “ratu“ (da nobreza), cujo nome tradicional (o do knua, não o dos documentos nem o “nome de estima” de casa) é Jar Malai. Na segunda parte do “Léxico Fataluco-Português” do Padre Alfonso Nacher, publicado na revista do Instituto Nacional de Linguística (2004), na pág. 122 pode ver-se que nesta língua a palavra “malai” pode significar “estrangeiro” mas também “liurai” (rei).
Enfim, na falta de mais dados, a origem da palavra é uma questão ainda em aberto. O que é certo é que o termo não é visto pelos timorenses como pejorativo ou insultuoso, antes pelo contrário. E quando um timorense quer insultar um malai salientando essa sua condição de não-filho-da-terra, não lhe chama “malae!”, recorre antes a epítetos como “kolonialista!”, ou, de forma mais poética, pode optar por formas como “fahi-mutin” (porco branco).
Os malais, que são na generalidade umas criaturas muito cheias de manias estranhas, têm a obsessão do politicamente correcto (por exemplo, no mundo lá de onde vêm já não há “velhos”, agora há uns espectros trancafiados em lares e casas de repouso a que se chama “cidadãos da terceira idade”). Isso aplica-se inclusivamente a certos malais que chegam cheios de boas intenções a transbordar do peito e que se caracterizam pela atitude com que encaram os nativos “tão amorosos”: «Regozijai porque nós chegámos para vos salvar e trazemos a língua portuguesa, que é a panaceia universal que vai resolver todos os vossos problemas!» Alguns vem equipados para dar aulas sobre as obras de Gil Vicente e sobre “Os Lusíadas” e outras coisas que tais de que os timorenses precisam como de uma ida ao dentista sem anestesia. Há então uns malais que ficam muito escandalizados por serem chamados de malais, e que acham que isso é racismo e discriminação, e passam então a “ensinar” os nativos a não os chamarem assim. Os timorenses, inicialmente surpreendidos por os malais ficarem aborrecidos por serem chamados de malais, reagem com a benevolência que se deve ter com as crianças que ainda não sabem as regras de comportamento social (Sim, filho, o teu urso de peluche pode engolir o elefante do Mogli) e fazem-lhes a vontade, quando à sua frente. Alguns malais na terra deles já não chamam ciganos aos ciganos, mas mudaram-lhes o nome para “cidadãos de etnia cigana”; os timorenses acham que a língua serve para comunicar e não para complicar, por isso os chineses daqui não são chamados “cidadãos timorenses de etnia chinesa” mas sim “China-Timor” (Xina-Timór em tétum), o que permite distingui-los dos chineses recém-chegados, que não são de cá, e por isso são denominados de “China-Mandarim” ou “China” apenas. E já que falei em ciganos, lembremo-nos de que a palavra portuguesa “gajo” tem origem na língua antigamente falada por eles (o rom, ou romani, que ainda usam noutros países que não Portugal ou Espanha) e significava originalmente “alguém que não é cigano” (lembram-se do filme “Gadjo Dilo” – em tétum “malae bulak”?).
Também há uns malais burros que insistem em ouvir “malaio” em vez de “malai” (são normalmente os mesmos que pensam que o tecido tradicional “tais” tem um singular sem “s” e dizem preciosidades como “Olhe, sei lá, comprei hoje um tai divinal!”). Pelo menos actualmente, em Timor “malai” e “malaio” são duas palavras distintas com significados bem diferentes.
Mas afinal de onde vem esta palavra, “malai” na variedade de português que se fala em Timor e “malae” em tétum?
A. Mendes Corrêa no seu “Timor Português” (1944) diz que “por malai entendem os indígenas de Timor os estranhos, os Malaios de outras ilhas, os Chinas, os negros de África, os Árabes, os Portugueses metropolitanos, os Holandeses, os Europeus em geral. Eles próprios não se consideram Malaios, muito pelo contrário.»
Luís Thomaz num artigo de 1974, “Timor – Notas histórico-linguísticas”, pág. 231, defende que: “Por sua vez o nome que os malaios dão a si mesmos – melayu – tornou-se em Timor, sob a forma malae sinónimo de «estrangeiro, pessoa de fora de Timor» - recordação do tempo em que os malaios eram os únicos estrangeiros que apareciam nas costas da ilha. Osório de Castro nota que em Maluco o termo melayu é usado com o mesmo sentido.”
Mas há quem considere que a etimologia da palavra “malai” em Timor não tem nada a ver com “melayu”.
No seu artigo “East Timor and the Southwest Moluccas: Language, Time and Connections” (2000), Aone van Engelenhoven e John Hajek dizem-nos (pág. 121):
«A importante distinção entre os chamados ‘donos da terra’ e ‘donos dos barcos’ nas ilhas do Sudoeste das Molucas é não apenas crítica para as estruturas sociais na região, mas também um importante indicador histórico das relações com Timor no passado. Os ornusa ou clãs ‘donos da terra’ eram os verdadeiros senhores da terra, que já viviam nas ilhas antes da chegada dos ‘donos dos barcos’. Há textos históricos que revelam que a chegada dos donos dos barcos foi despoletada pela destruição da sua ‘Ilha Mãe’. Esta destruição é tradicionalmente explicada como o castigo supremo por uma luta fratricida que era proibida. Os nomes usados nestas histórias fornecem pistas importantes sobre ligações com Timor. Qualquer coisa que inclua malai como elemento reverte para Timor – o que se vê por exemplo em Sairmalai, o nome timorense do herói letinense Slerleti. ((32 A palavra malai, apesar das aparências, não tem nada a ver com Malay (ing.) [ou malaio (port.)], uma malformação europeia de melayu.)) O resultado é que todos os heróis, e consequentemente também os clãs que deles descendem, são considerados como sendo de origem timorense. O segmento Malai (lit. ‘Timor’) em muitos apelidos de família é altamente reverenciado devido à sua referência óbvia. Os exemplos incluem os apelidos Pelmalai ‘aliado timorense’ na ilha de Nila, e Maranmalai na ilha de Léti.
Reuniões recentes entre famílias keienses e do Sudoeste das Molucas na Holanda revelaram como ambos os lados tinham em comum narrativas semelhantes sobre a destruição de uma terra ou continente no ocidente (centrado na área de Timor-Luang). As histórias dos clãs falam sobre barcos que navegavam para o oriente a partir de Lun-Let, o nome keiense para o continente que era Luang. Os mitos letinenses contam-nos sobre pessoas que navegavam para e de Timor, e sobre o estabelecimento de povoações de ‘donos de barcos’ na costa de Malakitna-Malaliawna, o irmão mais novo (com malai ‘Timor’ bastante evidente).
As ligações entre comunidades em Timor-Leste e no Sudoeste das Molucas mantiveram-se mais directamente até tempos relativamente recentes. Alianças formais tradicionais, por exemplo, foram mantidas entre os governantes tradicionais de Kísar e Baucau até perto de meados deste século, mas acabaram por ser quebradas pelos portugueses. Também é verdade que laços de comércio tradicional foram mantidos até mais recentemente ainda, particularmente com comerciantes que falavam tétum de Leti e de Luang que se sabia visitarem Timor-Leste.» (A tradução do inglês é minha.)
Lendas na língua de Léti que mencionam esta ligação a Timor (Malai), e a sua análise antropológica e linguística, podem ser consultadas no livro de Aone van Engelenhoven “Leti, a language of Southwest Maluku” (2004), por exemplo nas págs 328, 329, 398.
Os dados destes autores relativos à antroponímia parecem ocorrer também entre os fatalucos da Ponta Leste de Timor, conheço uma moça de lá, de uma família “ratu“ (da nobreza), cujo nome tradicional (o do knua, não o dos documentos nem o “nome de estima” de casa) é Jar Malai. Na segunda parte do “Léxico Fataluco-Português” do Padre Alfonso Nacher, publicado na revista do Instituto Nacional de Linguística (2004), na pág. 122 pode ver-se que nesta língua a palavra “malai” pode significar “estrangeiro” mas também “liurai” (rei).
Enfim, na falta de mais dados, a origem da palavra é uma questão ainda em aberto. O que é certo é que o termo não é visto pelos timorenses como pejorativo ou insultuoso, antes pelo contrário. E quando um timorense quer insultar um malai salientando essa sua condição de não-filho-da-terra, não lhe chama “malae!”, recorre antes a epítetos como “kolonialista!”, ou, de forma mais poética, pode optar por formas como “fahi-mutin” (porco branco).
quarta-feira, dezembro 20, 2006
segunda-feira, dezembro 11, 2006
domingo, novembro 26, 2006
Um excelente livro sobre Timor
I don’t want them forgotten: Rosa, Osvaldo, Raoul, Maria, Martinho, Arsenio. It would be easy to say in the glib way of those who can lead uninterrupted lives in placid places that such oblivion would be a fate worse that death. No fate is worse than death.
[Timothy Mo – The redundancy of courage. London, Paddleless Press, 2002, p. 7 (1st ed: Chatto and Windus 1991)]
Não quero que eles sejam esquecidos: Rosa, Osvaldo, Raul, Maria, Martinho, Arsénio. Seria fácil dizer da forma superficial daqueles que podem levar vidas ininterruptas em lugares plácidos que tal esquecimento seria um destino pior que a morte. Nenhum destino é pior que a morte.
[Timothy Mo – A redundância da coragem. Lisboa, Puma Editora, 1992, p. 9]
Ha’u lakohi ema haluha sira: Rosa, Osvaldo, Raul, Maria, Martinho, Arsénio. Sei fasil atu dehan, ho jeitu laseriu hanesan ema ne’ebé hala’o sira-nia moris ho kalma no dame iha fatin hakmatek, katak haluha sira hanesan ne’e sei sai destinu aat liu duké mate. La iha destinu aat liu duké mate.
[Timothy Mo – The redundancy of courage. London, Paddleless Press, 2002, p. 7 – tradusaun ba tetun husi JP Esperança ho Fernanda Correia]
A bra’is atu bligu ro’o: Rosa, Osvaldo, Raul, Maria, Martinho, Arsénio. Heki fasil odi dale, los jeitu tetseriu megees atu mane punsole ro’o-si’i mori los kalma los dame her hati tenega, ke bligu ro’o megees kede’e heki sai destinu klao desi duké mate. Tet dia destinu klao desi duké mate.
[Timothy Mo – The redundancy of courage. London, Paddleless Press, 2002, p. 7 – tradusaun la tokodede pe JP Esperança los Fernanda Correia]
There’s no such thing as a hero – only ordinary people asked extraordinary things in terrible circumstances, and delivering.
[Timothy Mo – The redundancy of courage. London, Paddleless Press, 2002, p. 448 (1st ed: Chatto and Windus 1991)]
Não há uma coisa a que se chama herói – apenas pessoas vulgares pediam coisas extraordinárias em circunstâncias terríveis – e entrega.
[Timothy Mo – A redundância da coragem. Lisboa, Puma Editora, 1992, p. 543]
Os heróis não existem – apenas pessoas vulgares a quem são pedidas coisas extraordinárias em circunstâncias terríveis, e que as fazem.
[Timothy Mo – The redundancy of courage. London, Paddleless Press, 2002, p. 448 – a tradução para português é minha]
Buat ida naran erói la eziste – iha de’it ema baibain ne’ebé tenke halo buat estraordináriu iha situasaun aat tebetebes, maibé konsege halo duni.
[Timothy Mo – The redundancy of courage. London, Paddleless Press, 2002, p. 448 – tradusaun ba tetun husi JP Esperança ho Fernanda Correia]
Lapar iso gala erói tet eziste – dia mesa atu normál mane tenke punu lapar estraordináriu her situasaun klao lobaloba, mas konsege punu riko.
[Timothy Mo – The redundancy of courage. London, Paddleless Press, 2002, p. 448 – tradusaun la tokodede pe JP Esperança los Fernanda Correia]
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terça-feira, novembro 14, 2006
quinta-feira, novembro 09, 2006
Blogosfera, conspirações e artes marciais
A crise, a blogosfera e a liberdade de expressão
Há um blog que se destacou especialmente durante o período mais agudo da crise recente em Timor, pelo número de visitas e porque, não obstante a sua não escondida parcialidade (anti-Austrália, anti-Xanana, anti-Ramos Horta, anti-Igreja timorense), teve um papel muito importante nos dias de caos nas ruas, há alguns meses atrás, quando a capital vivia a ferro e fogo. Era ao “Timor-Online” que recorríamos para saber que supermercado tinha a porta entreaberta para vender produtos essenciais quando todo o comércio estava fechado a sete chaves, era neste blog que líamos a cobertura mais actualizada do que ia acontecendo (também cheguei a participar umas quantas vezes com pequenas informações do que ia vendo por aí: “evitem a área tal porque está neste momento sob ataque”, “no sítio tal estão uns tipos com armas”, “os australianos já chegaram e andam a passear os tanques e a posar para a fotografia em frente ao Hotel Timor”). Depois, à medida que a situação foi acalmando e se começou a caminhar para a normalidade, o blog perdeu essa dimensão que era o seu aspecto mais interessante, mas continuo a espreitar de vez em quando o que lá se diz, principalmente porque, apesar das opiniões facciosas das pessoas que o fazem, os comentários são um interessante espaço de debate onde podemos ler as outras opiniões sobre o que por cá se vai passando.
Há dias dizia-se lá que tinha havido ameaças de morte contra os promotores do blog, o que é preocupante. Podemos não concordar com as opiniões da pessoa que se esconde no anonimato do pseudónimo Malai Azul, mas a liberdade de expressão é um direito inatacável. Quando eu tive um período de alguma actividade num grupo da Amnistia Internacional em Lisboa, no tempo do saudoso José Manuel Cabral – um valoroso amigo que nos deixou demasiado cedo – a A.I. vendia umas camisolas de manga curta com uma frase de Voltaire: “Posso não concordar com o que estás a dizer, mas defenderei até à morte o teu direito de o dizeres”. Seria muito bom se fossem feitos uns milhares de camisolas dessas para distribuir cá em Timor.
As artes marciais têm culpa da crise?
Apareceu há pouco tempo na imprensa a notícia de um relatório encomendado pelos australianos, onde se falava de possíveis ligações de grupos de artes marciais a partidos políticos aqui em Timor, e sobre o papel desses grupos na instabilidade no país. Não li o relatório, pelo que não posso pronunciar-me sobre o seu mérito, mas algumas notícias tinham um tom alarmista, muito distante da realidade, e por vezes traziam uma lista de organizações e respectiva suposta filiação. Parte das organizações da tal lista não têm nada a ver com artes marciais nem com grupos de jovens. A CPD-RDTL, por exemplo, é uma estrutura dissidente da Fretilin com grupos organizados por todo o país, entre a população rural principalmente, que se tem destacado pela rejeição da actual Constituição (defendiam – não sei se continuam a fazê-lo – que só a Constituição da Fretilin de 1975, de partido único, marxista-leninista, era válida). Também rejeitavam a transformação das Falintil em FDTL, e o Governo liderado por Mari Alkatiri, e várias outras coisas do actual Estado leste-timorense – diziam por vezes nos jornais que tudo isto era criação dos malais da ONU. Tinham uma postura pública bastante visível na época da UNTAET e nos primeiros tempos da independência, mas ultimamente não se tem ouvido falar tanto deles.
Os malais lunáticos que todos os dias aparecem com uma nova teoria da conspiração, onde aumenta o número e variedade dos conspiradores, ficaram eufóricos e vieram logo para os seus blogs e para as mesas do bar do Hotel Timor explicar a quem os quisesse ouvir como as escolas de artes marciais junto com os partidos da oposição estavam por detrás da onda de violência e ajustes de contas que tem assolado Timor. Ignoraram sistematicamente (não colocando negrito, não mencionando nos títulos – que eram do género “O que a Comissão de Inquérito da ONU escondeu”) a parte das notícias que referia que: «uma das conclusões chave do relatório é que centenas de pequenos grupos de jovens estão "a tentar, de maneiras diferentes mas positivas, engajarem-se e unificarem as suas comunidades " ».
Insistiam numa suposta ligação da PSHT – Persaudaraan Setia Hati Terate (Irmandade do Coração Leal da Flor-de-Lótus) aos dois principais partidos da oposição. Não mencionavam a ligação oficial e assumida publicamente do KORKA (Kmanek Oan Rai Klaran) à Fretilin. Quando o KORKA aderiu à Fretilin Xanana Gusmão e outros manifestaram publicamente a sua apreensão, perguntando se era intenção deste partido passar a dispôr de uma milícia privada. Tinham presente o exemplo da Indonésia onde Prabowo Subianto tinha tentado usar algumas organizações de pencak silat como uma extensão do partido do Governo, GOLKAR. Prabowo promoveu mesmo o estabecimento de uma nova organização, os Satria Muda Indonesia (Jovens Cavaleiros da Indonésia), que tinha uma relação de total promiscuidade com os Kopassus, e que foi activamente implantada por ele também aqui em Timor. Também a PSHT foi promovida por elementos dos Kopassus aqui em Timor-Leste, provavelmente por ser considerada mais um elemento de “indonesificação” da juventude local, mas contrariamente à SMI a PSHT tinha uma história quase centenária e tradições espirituais bastante mais profundas do que os partidarizados Satria Muda Indonesia. Provavelmente é por isso que, como nota Ian Douglas Wilson em The Politics of Inner Power: The Practice of Pencak Silat in West Jawa, a PSHT continua normalmente a sua actividade no novo país independente (como noutros: França, Holanda, Rússia, etc...) enquanto a SMI desapareceu com a saída dos indonésios (e parece que muitos SMI estiveram activos nas milícias em 1999). Perante as críticas por a Fretilin ter acolhido uma organização de artes marciais no partido, Mari Alkatiri disse que era sua intenção disciplinar a actividade dos jovens do Korka. A entrada para o partido no poder parece não ter provocado grandes alterações nas actividades públicas do Korka, continuaram a aparecer ocasionalmente pequenos episódios de porrada entre membros dessa organização e de outras – como é habitual em Timor – mas eu pessoalmente não tenho conhecimento de situações em que o Korka tenha agido como uma milícia ou aparecido enquanto estrutura nos conflitos dos últimos meses.
As organizações de artes marciais, enquanto estruturas organizadas a nível nacional, não tiveram um papel relevante no aparecimento e desenvolvimento da crise, nem na violência que esta trouxe. A violência de rua é baseada primordialmente na discriminação recente entre gente de lorosa’e e de loromonu, e os episódios de feridos ou mortos entre estilos de artes marciais não são uma coisa nova causada pela crise, mas sim a continuação de inimizades antigas que encontram na presente tensão social (e clima de impunidade) um espaço adequado para a sua actualização. As organizações de artes marciais não estão implantadas no território por zonas geográficas ou grupos etno-linguísticos. A PSHT, por exemplo, tem grupos de treino espalhados e implantados por todos os distritos de Timor-Leste (olhe à sua volta, procure grafítis que digam “SH” ou “Terate” ou com o desenho de um coração com raios à volta), e não está de maneira nenhuma partidarizada (fazem parte da organização pessoas de todos os quadrantes políticos e sociais timorenses, da Fretilin, da oposição e apartidários). A ideia de que a PSHT enquanto organização pudesse ter alguma coisa a ver com a promoção do divisionismo geográfico em Timor é completamente ridícula, os “irmãos” que dela fazem parte acreditam que devem ser solidários entre si e que sofrerão uma retaliação sobrenatural (do tipo ficar gravemente doente, p.ex.) se fizerem mal a outro “irmão” (saudara), independentemente do lugar do país (ou do mundo) onde ele nasceu.
Tavez a única organização de artes marciais que pudesse ser caracterizada como tendo um pendor mais regional fosse precisamente o Korka, embora também aí haja membros das várias zonas do país, porque a referência a “Rai Klaran” remete para as montanhas da região central de Timor-Leste, em volta do Tata Mai Lau, e porque se diz que o estilo nasceu em Ainaro. Mas não me consta que tenha havido durante o seu desenvolvimento nenhuma espécie de discriminação dos candidatos a praticantes (o FCP em Portugal é um clube do Norte mas há portistas e jogadores do Porto que são do Sul...). São outras as razões porque aparecem insígnias das organizações de artes marciais nas situações de violência. Estes sistemas tradicionais de combate têm as suas escolas espalhadas pelos bairros, em pátios, quintais e clareiras; quando a discriminação entre gente de leste e de oeste ficou ao rubro, os que eram o grupo em minoria no bairro onde moravam fugiram ou foram expulsos, de forma que muitos bairros ficaram só com o grupo maioritário. Nos confrontos frequentes que houve nos últimos meses os grupos de prática de artes marciais que treinam em cada bairro colocaram-se naturalmente na linha da frente da “protecção do bairro”, daí que apareçam os seus símbolos e os seus membros nas cenas de pancadaria. E quando há algum ferido ou morto o “espírito de corpo” torna-se ainda mais forte no grupo. Há dias as imagens no telejornal da RTTL do funeral de um membro dos Kera Sakti (a quem os familiares enlutados diziam que tinha sido decepada a cabeça depois de ter desaparecido a caminho da universidade em que se ia inscrever) mostravam muitos jovens a acompanhar a cerimónia vestidos com o uniforme deste estilo de kung fu. Há uns meses, também no telejornal local, numa reportagem sobre armamento apreendido pelas forças internacionais via-se na coronha de uma das armas o desenho das insígnias da PSHT. Antes que os malucos azuis comecem a disparatar a gritar “conspiração!” é bom esclarecer que há muitos “irmãos” praticantes de Setia Hati quer na PNTL quer nas FDTL, e que houve vários lugares em Díli em que, quando em 25 de Maio a tropa atacou o quartel da PNTL, os polícias que aí estavam de serviço despiram a farda e abandonaram as armas que tinham, para poderam fugir incógnitos. Seria absurdo querer tirar ilações sobre “conspirações” a partir de um desenho feito por um miúdo qualquer. No excelente documentário de Carmela Baranowska, "Scenes from an occupation", sobre o período de violência das milícias antes do referendo de 1999, também há um jovem activista do CNRT com uma camisola de membro da PSHT. A Mocidade Portuguesa, uma organização controlada ideologicamente pelo Estado Novo de Salazar, ensinava judo em Timor, porém seria estúpido dizer que o judo e o Kodokan são salazaristas; o Presidente russo Vladimir Putin é um judoca conhecido, seria incorrecto considerar que isso é a mesma coisa que dizer que o Judo está partidarizado na Rússia.
Em Portugal no tempo em que o jogo do pau era popular como as artes marciais aqui agora
Como sempre que se fala em violência em Timor aparecem uns quantos malais iluminados a sentir-se superiores por virem de países onde “nunca há porrada e toda a gente vive numa harmonia social perfeita” (antes fosse!), é bom lembrar pelo menos como eram as coisas há uns tempos nessas terras. Na Austrália havia caça organizada ao aborígene. Em Portugal era assim há umas décadas:
“Podemos dizer o mesmo – mas com mais certeza – das manifestações de violência que, por volta dos anos 20 e 30, acompanhavam geralmente as romarias e, mais concretamente, delas faziam parte ritual.
Não nos referimos só às disputas entre jovens que podem ter origem em rivalidades amorosas, sobretudo quando os rivais pertencem a grupos territoriais diferentes (717), nem às frequentes brigas provocadas pelo vinho (718). Eram outrora comuns e hoje não são raras (719). Referimo-nos, sim, a verdadeiras guerras entre aldeias, que explodiam, quase sistematicamente, no decurso das romarias e suficientemente recentes para que os velhos se lembrem de nelas terem participado e os mais jovens de a elas terem assistido. Se os velhos que entrevistámos são pouco loquazes relativamente aos aspectos sexuais da festa no tempo da sua juventude, os seus testemunhos são, pelo contrário, constantes e explícitos e as emoções ainda bastante vivas no que diz respeito a estas batalhas, permitindo-nos assim considerá-las como parte integrante da romaria. O pároco de Baçal relata fielmente alguns exemplos do fim do século XIX e princípios do século XX: alguns duraram um dia e uma noite, outros saldaram-se por mortos e dezenas de feridos (720). O pároco de Foz Côa mostra a inserção ritual e o desenrolar esperado e estereotipado destas batalhas na romaria da sua paróquia, até uma época mais recente. A naturalidade com que refere a continuação jovial do arraial, imediatamente após a separação dos adversários pela polícia e o transporte dos feridos (ou eventualmente dos mortos), mostra bem o carácter inelutável e sistemático desta fase da peregrinação (721). De alguma forma também este sangue fazia parte da festa.
(...)
As descrições detalhadas que recolhemos directamente dos actores de outrora centram-se na rivalidade entre aldeias (722). Antigas discórdias por vezes não resolvidas: «Discutiremos isso na romaria», velhos ressentimentos herdados de outra geração e que determinam uma agressividade latente, solidariedade entre os jovens «que começaram», ou então, muito simplesmente, recusa de aceitar uma humilhação ou uma injúria imediata... todos estes motivos podem conjugar-se – e ligar-se em torno de uma fatalidade própria da romaria – num fundo de hostilidade e de alianças tradicionais de que já não se sabe a origem. (...) Uma oração de joelhos, depois, agitando ameaçadoramente os cajados, um grito: «Viva Tinalhas!» (...) E era então que frequentemente estalava a briga. Entre homens. A pau e pedra. (...) Extremavam-se os campos, sempre os mesmos: Salgueiros e Póvoa de um lado, Juncal, Freixial e Tinalhas do outro (724).
(...)
Os antigos combatentes estão de acordo acerca dos factores desta evolução que puseram termo às guerras de aldeias: a escola, a Guarda Nacional [Republicana], os sermões do pároco «quando ele é bom...». “ in Pierre Sanchis – Arraial: Festa de um Povo – as romarias portuguesas. Lisboa, Publicações D. Quixote, 1992, 2ªed, p. 175-177
Ou ainda:
Ernesto Veiga de Oliveira - Festividades Cíclicas em Portugal. Lisboa, Publicações D. Quixote, 1984, pp.323-324 (Citado em O jogo-do-pau como representação de estatuto e hierarquia nas sociedades tradicionais): “E era o «varrer» da feira ou do terreiro, refregas épicas, verdadeiras lutas campais, de paus que cruzavam no ar, no furor das pancadas, num jogo largo de feira ou «varrimento» (...), entre nuvens de pó, no meio da gritaria das mulheres que fugiam em todas as direcções”.
O assunto também foi tratado por autores de ficção que retratavam nos seus romances a sociedade daquele tempo. Transcrevem-se de seguida alguns excertos de Terras do Demo [ Aquilino RIBEIRO - Terras do Demo. Lisboa, Círculo de Leitores, 1983] :
“(...) -Eh, rapaziada da Seitosa - disse ele -, então que febre vos fazem as vacas?
-Ainda aí apareces, filho de sete curtas!? - increpou o Zé Narciso. - Vais pagar o descaramento...
E à mão tente despediu-lhe o lodo à nuca. O Brás aparou a pancada no ombro e respondeu-lhe com uma chuçada valente do sombreiro à arca do peito.
O outro pulou e, trás, trás, só deixou de bater pela cabeça, pelos braços, pelo corpo todo, quando o viu estrumado por terra, a roncar.
O Espadagão vinha com uma enxada para lhe britar a cabeça, mas o Cláudio vendeiro deitou-lhe o gadanho e o golpe foi quebrar-se nas costelas:
- Conho, em homem no chão não se dá! (...) [pág. 134]
Passavam maltas, de varapau a estreloiçar contra varapau, varrendo nas arrecuas do batuque o terreiro coalhado de gentiaga: Viva Lamosa! (...) [pág. 136]
Entre eles nem ficava chão para cair um alfinete. E por entre estes e as vareiras, as maltas e ranchos cavalavam. Lá rompia Granjal de lodo no ar, tau-tau, viva a rusga! (...)
Aí disparava um cavaleiro, todo farófia, chapéu de aba larga, pau de choupa entalado debaixo da perna:
- Olá, gentes, abram passagem!
Bem arreada besta, crinas rentes, franjas na retranca, rifadora por de mais. O ar dele era rebentio, com a pinta de rico, e o poviléu apartava-se à banda. Mas lá desembocava outra malta:
- Viva Tabosa!
- Viva!
- Viva até que morra!
E arremetia por ali dentro, aos safanões, ó cetrás, em borborinhos de poeira, num zafarrancho de mil demónios. (...) [pág. 241]
- Foge! Foge! - exclamou a Zabana para Glorinhas diante dum roldão de caceteiros em enovelada correria.
Eram as maltas do Granjal e da Vila da Ponte que se acometiam, naquela sua inveterada rixa de povos fronteiriços e forçudos. Emborcando tarimbas do negócio e trilhando os dorminhões, acossado pelo estreloiçar dos paus, o poviléu varreu às bandas.
Glorinhas e a Zabana meteram para a porta do santuário, em que uma onda medrosa se atropelava. A espaldas delas, retiniam pragas, gemidos e gritos de aqui-d’el-rei. Mas acudia a tropa e os desordeiros tresmalhavam a pés de cavalo. Curioso, o povo refluía sobre o lugar da refrega, que durara o tempo dum credo. Escabujava no chão homem ferido, se não morto, e vozes de mulher gemiam, testemunhando a justiça do céu e da terra. (...) [pág. 257]
Se nas primeiras décadas do séc. XX houvesse malucos azuis e um blog “Portugal-Online” ser-nos-ia naturalmente aí explicado que a cacetada da velha que havia nas aldeias portuguesas existia precisamente por causa de uma conspiração organizada pelos espanhóis, pelo Presidente Bernardino Machado, pelos monárquicos e pela Nossa Senhora de Fátima.
Defensores do bairro
Disseram-me (não sei se é verdade, porque não fui verificar pessoalmente) que no Bairro de Bemôri os velhos continuam a jogar às cartas com os vizinhos como antigamente sem se preocuparem com a origem geográfica de cada um, e que os jovens da área sempre estiveram unidos para defender o bairro no tempo em que ainda havia o caos nas ruas. Talvez seja por isso que o lugar tem a reputação de ser um dos mais calmos de Díli. Muitos dos bairros mais problemáticos são precisamente aqueles de onde parte da população foi escorraçada por ter nascido noutra metade do país. Muitos dos jovens apanhados em zaragatas pelas forças internacionais desculpam-se dizendo que estavam só a defender o bairro. Eu sou céptico em relação aos jovens que se juntam dizendo que estão a defender-se de ataques exteriores se no bairro a que eles pertencem as casas tiverem as paredes cheias de grafítis racistas e xenófobos. Porque esses comentários são escritos precisamente pelos jovens do bairro. Há inclusivamente uma pressão intensa sobre os jovens sossegados que não se querem meter em conflitos para virem também para a rua andar à porrada, em vez de chamarem a polícia e ficarem quietos em casa – os rufias e arruaceiros de cada bairro são nessas situações promovidos de repente à categoria de heróis vigilantes. Os polícias e militares internacionais têm endurecido o tom de voz nos apelos à população, explicando que qualquer pessoa apanhada num cenário de conflito na posse de flechas de Amboíno (rama-Ambon), lanças e, claro, armas de fogo, será imediatamente presa – como explicava em tétum na RTTL o simpático militar australiano porta-voz da tropa do país dele, com certeza ninguém pensa ir caçar nas ruas da capital. É que se a catana é aqui uma ferramenta multi-usos que existe em todas as casas as flechas de Amboino são armas perversas de destruição que não têm outra utilidade que não seja fazer mal às pessoas.
Até há cerca de uma semana quase todos os dias havia pedrada entre dois grupos de jovens, na estrada para Comoro, um de cada lado da via, na zona perto do mercado. Quando os rapazes estavam mais entusiasmados tínhamos que esperar um bocado ali parados ou ir por um caminho alternativo, quando eles estavam mais bem dispostos e as pedradas eram só para para não perder a prática, eles paravam de atirar pedras uns aos outros e faziam-nos sinal para passarmos. Há um ou dois meses, em dois seguidos, tive oportunidade de assistir de um edifício alto a confrontos na zona de Caicôli, envolvendo muitas dezenas de jovens – assim que alguém começava a bater num ferro a dar o alarme via-se os miúdos (e miúdas!) a correr das casas e quintais para a estrada apanhando pedras, paus, canos de ferro, etc, e depois avançavam e recuavam enfrentando o outro grupo, no meio de gritos e risadas. Alguns e algumas não teriam mais de doze anos. Um que levou uma pedrada numa perna foi gozado pelos colegas que estavam ao lado dele. Fez-me lembrar das “guerras de torrões de areia” que fazia às vezes com os meus amigos quando era criança. Nem sempre os confrontos são assim, alguns são bastante mais graves.
Em Timor-Leste há uma cultura de impunidade, está espalhada na sociedade a ideia de que os que cometem crimes não terão de responder por eles num tribunal. Isso é desde logo uma herança do tempo da ocupação indonésia, e também da facilidade com que os organizadores da violência de 1999 escaparam à justiça devido à necessidade de o novo Estado manter boas relações com a Indonésia. A Igreja Católica foi inexcedível no apoio aos deslocados da crise desde o primeiro momento e está a ter actualmente um papel extremamente positivo nos esforços de pacificação das comunidades, mas na altura da manifestação da Igreja contra o Governo em 2005 – quando muitos manifestantes se fartaram de usar slogans e cartazes com mensagens racistas e de intolerância religiosa – perdeu uma boa oportunidade de lançar uma campanha de educação para a tolerância a nível nacional. Quando numa noite nessa altura dois portugueses e um polícia foram sequestrados na residência do Bispo de Díli e espancados, o Padre Maubere apareceu na televisão a dizer que era normal que os jovens tivessem tido tal atitude porque estavam nervosos por as suas reivindicações não serem ouvidas. Que eu saiba não houve ninguém julgado e condenado por rapto e tortura na sequência desse caso. Em 4 de Dezembro de 2002 houve confrontos graves e muita destruição na cidade de Díli, os culpados também nunca foram julgados e condenados. Há quem faça apelos à violência nos jornais sem qualquer consequência.
Apesar de tudo a situação tem vindo a melhorar francamente, já há esquadras permanentes da polícia da ONU em alguns lugares de Díli, os polícias já andam por aí a fazer patrulhas a pé e acompanhados de agentes da PNTL... Há diariamente na RTTL um espaço de antena para a UNPOL e os militares australianos onde se comenta a lista de casos de polícia do dia (que têm vindo a diminuir), para que a população seja informada com objectividade sobre as ocorrências relativas a problemas de segurança, em vez de ouvir os boatos que por cá correm (e o tom alarmista de certos blogues que dizem que “Eles andem aí!!”). Continua no entanto a existir um clima de medo e de suspeição mútua no seio das comunidades. Algumas acções de criminosos xenófobos durante o último mês, como entrar numa microlete com uma faca à procura de gente de leste, ou esperar no caminho de ida para uma escola e mandar as crianças nascidas no oriente voltarem para casa, reforçaram esses receios. Em Díli não é preciso fazer uma coisa dessas muitas vezes, basta um único incidente para que no dia seguinte toda a gente fale disso e vá “acrescentando um ponto”. Também já há menos deslocados nos campos, mas muitos dos que aí estão continuam com medo não do “lobo mau” mas dos próprios vizinhos.
Nas ruelas interiores dos bairros continua a haver grupos de moços que se sentam em convívio à noite, às vezes com um jerrican de vinho de palma ou aguardente para animar os espíritos. Já antes se fazia, e tocava-se viola e cantavam-se umas cantigas; agora contam-se histórias de valentia - real ou de fanfarronice - contra “os outros”, a UNPOL em geral, a GNR... Não acredito que os australianos estejam cá só pelos lindos olhos dos timorenses, naturalmente têm a sua própria agenda. Mas o que não ajuda nada para a resolução da situação é fomentar os receios do povo com histórias sobre “bichos-papões”, como faz o “Timor-Online”, em vez de apelar a que as comunidades deixem de seguir as maçãs podres que existem no seu seio, e a que tomem a paz nas suas próprias mãos. É preciso dizer que o António, ou Manuel, ou Zé, que andem com uma catana a ameaçar pessoas são criminosos, no lugar de dizer que são sempre outros os maus.
Há um blog que se destacou especialmente durante o período mais agudo da crise recente em Timor, pelo número de visitas e porque, não obstante a sua não escondida parcialidade (anti-Austrália, anti-Xanana, anti-Ramos Horta, anti-Igreja timorense), teve um papel muito importante nos dias de caos nas ruas, há alguns meses atrás, quando a capital vivia a ferro e fogo. Era ao “Timor-Online” que recorríamos para saber que supermercado tinha a porta entreaberta para vender produtos essenciais quando todo o comércio estava fechado a sete chaves, era neste blog que líamos a cobertura mais actualizada do que ia acontecendo (também cheguei a participar umas quantas vezes com pequenas informações do que ia vendo por aí: “evitem a área tal porque está neste momento sob ataque”, “no sítio tal estão uns tipos com armas”, “os australianos já chegaram e andam a passear os tanques e a posar para a fotografia em frente ao Hotel Timor”). Depois, à medida que a situação foi acalmando e se começou a caminhar para a normalidade, o blog perdeu essa dimensão que era o seu aspecto mais interessante, mas continuo a espreitar de vez em quando o que lá se diz, principalmente porque, apesar das opiniões facciosas das pessoas que o fazem, os comentários são um interessante espaço de debate onde podemos ler as outras opiniões sobre o que por cá se vai passando.
Há dias dizia-se lá que tinha havido ameaças de morte contra os promotores do blog, o que é preocupante. Podemos não concordar com as opiniões da pessoa que se esconde no anonimato do pseudónimo Malai Azul, mas a liberdade de expressão é um direito inatacável. Quando eu tive um período de alguma actividade num grupo da Amnistia Internacional em Lisboa, no tempo do saudoso José Manuel Cabral – um valoroso amigo que nos deixou demasiado cedo – a A.I. vendia umas camisolas de manga curta com uma frase de Voltaire: “Posso não concordar com o que estás a dizer, mas defenderei até à morte o teu direito de o dizeres”. Seria muito bom se fossem feitos uns milhares de camisolas dessas para distribuir cá em Timor.
As artes marciais têm culpa da crise?
Apareceu há pouco tempo na imprensa a notícia de um relatório encomendado pelos australianos, onde se falava de possíveis ligações de grupos de artes marciais a partidos políticos aqui em Timor, e sobre o papel desses grupos na instabilidade no país. Não li o relatório, pelo que não posso pronunciar-me sobre o seu mérito, mas algumas notícias tinham um tom alarmista, muito distante da realidade, e por vezes traziam uma lista de organizações e respectiva suposta filiação. Parte das organizações da tal lista não têm nada a ver com artes marciais nem com grupos de jovens. A CPD-RDTL, por exemplo, é uma estrutura dissidente da Fretilin com grupos organizados por todo o país, entre a população rural principalmente, que se tem destacado pela rejeição da actual Constituição (defendiam – não sei se continuam a fazê-lo – que só a Constituição da Fretilin de 1975, de partido único, marxista-leninista, era válida). Também rejeitavam a transformação das Falintil em FDTL, e o Governo liderado por Mari Alkatiri, e várias outras coisas do actual Estado leste-timorense – diziam por vezes nos jornais que tudo isto era criação dos malais da ONU. Tinham uma postura pública bastante visível na época da UNTAET e nos primeiros tempos da independência, mas ultimamente não se tem ouvido falar tanto deles.
Os malais lunáticos que todos os dias aparecem com uma nova teoria da conspiração, onde aumenta o número e variedade dos conspiradores, ficaram eufóricos e vieram logo para os seus blogs e para as mesas do bar do Hotel Timor explicar a quem os quisesse ouvir como as escolas de artes marciais junto com os partidos da oposição estavam por detrás da onda de violência e ajustes de contas que tem assolado Timor. Ignoraram sistematicamente (não colocando negrito, não mencionando nos títulos – que eram do género “O que a Comissão de Inquérito da ONU escondeu”) a parte das notícias que referia que: «uma das conclusões chave do relatório é que centenas de pequenos grupos de jovens estão "a tentar, de maneiras diferentes mas positivas, engajarem-se e unificarem as suas comunidades " ».
Insistiam numa suposta ligação da PSHT – Persaudaraan Setia Hati Terate (Irmandade do Coração Leal da Flor-de-Lótus) aos dois principais partidos da oposição. Não mencionavam a ligação oficial e assumida publicamente do KORKA (Kmanek Oan Rai Klaran) à Fretilin. Quando o KORKA aderiu à Fretilin Xanana Gusmão e outros manifestaram publicamente a sua apreensão, perguntando se era intenção deste partido passar a dispôr de uma milícia privada. Tinham presente o exemplo da Indonésia onde Prabowo Subianto tinha tentado usar algumas organizações de pencak silat como uma extensão do partido do Governo, GOLKAR. Prabowo promoveu mesmo o estabecimento de uma nova organização, os Satria Muda Indonesia (Jovens Cavaleiros da Indonésia), que tinha uma relação de total promiscuidade com os Kopassus, e que foi activamente implantada por ele também aqui em Timor. Também a PSHT foi promovida por elementos dos Kopassus aqui em Timor-Leste, provavelmente por ser considerada mais um elemento de “indonesificação” da juventude local, mas contrariamente à SMI a PSHT tinha uma história quase centenária e tradições espirituais bastante mais profundas do que os partidarizados Satria Muda Indonesia. Provavelmente é por isso que, como nota Ian Douglas Wilson em The Politics of Inner Power: The Practice of Pencak Silat in West Jawa, a PSHT continua normalmente a sua actividade no novo país independente (como noutros: França, Holanda, Rússia, etc...) enquanto a SMI desapareceu com a saída dos indonésios (e parece que muitos SMI estiveram activos nas milícias em 1999). Perante as críticas por a Fretilin ter acolhido uma organização de artes marciais no partido, Mari Alkatiri disse que era sua intenção disciplinar a actividade dos jovens do Korka. A entrada para o partido no poder parece não ter provocado grandes alterações nas actividades públicas do Korka, continuaram a aparecer ocasionalmente pequenos episódios de porrada entre membros dessa organização e de outras – como é habitual em Timor – mas eu pessoalmente não tenho conhecimento de situações em que o Korka tenha agido como uma milícia ou aparecido enquanto estrutura nos conflitos dos últimos meses.
As organizações de artes marciais, enquanto estruturas organizadas a nível nacional, não tiveram um papel relevante no aparecimento e desenvolvimento da crise, nem na violência que esta trouxe. A violência de rua é baseada primordialmente na discriminação recente entre gente de lorosa’e e de loromonu, e os episódios de feridos ou mortos entre estilos de artes marciais não são uma coisa nova causada pela crise, mas sim a continuação de inimizades antigas que encontram na presente tensão social (e clima de impunidade) um espaço adequado para a sua actualização. As organizações de artes marciais não estão implantadas no território por zonas geográficas ou grupos etno-linguísticos. A PSHT, por exemplo, tem grupos de treino espalhados e implantados por todos os distritos de Timor-Leste (olhe à sua volta, procure grafítis que digam “SH” ou “Terate” ou com o desenho de um coração com raios à volta), e não está de maneira nenhuma partidarizada (fazem parte da organização pessoas de todos os quadrantes políticos e sociais timorenses, da Fretilin, da oposição e apartidários). A ideia de que a PSHT enquanto organização pudesse ter alguma coisa a ver com a promoção do divisionismo geográfico em Timor é completamente ridícula, os “irmãos” que dela fazem parte acreditam que devem ser solidários entre si e que sofrerão uma retaliação sobrenatural (do tipo ficar gravemente doente, p.ex.) se fizerem mal a outro “irmão” (saudara), independentemente do lugar do país (ou do mundo) onde ele nasceu.
Tavez a única organização de artes marciais que pudesse ser caracterizada como tendo um pendor mais regional fosse precisamente o Korka, embora também aí haja membros das várias zonas do país, porque a referência a “Rai Klaran” remete para as montanhas da região central de Timor-Leste, em volta do Tata Mai Lau, e porque se diz que o estilo nasceu em Ainaro. Mas não me consta que tenha havido durante o seu desenvolvimento nenhuma espécie de discriminação dos candidatos a praticantes (o FCP em Portugal é um clube do Norte mas há portistas e jogadores do Porto que são do Sul...). São outras as razões porque aparecem insígnias das organizações de artes marciais nas situações de violência. Estes sistemas tradicionais de combate têm as suas escolas espalhadas pelos bairros, em pátios, quintais e clareiras; quando a discriminação entre gente de leste e de oeste ficou ao rubro, os que eram o grupo em minoria no bairro onde moravam fugiram ou foram expulsos, de forma que muitos bairros ficaram só com o grupo maioritário. Nos confrontos frequentes que houve nos últimos meses os grupos de prática de artes marciais que treinam em cada bairro colocaram-se naturalmente na linha da frente da “protecção do bairro”, daí que apareçam os seus símbolos e os seus membros nas cenas de pancadaria. E quando há algum ferido ou morto o “espírito de corpo” torna-se ainda mais forte no grupo. Há dias as imagens no telejornal da RTTL do funeral de um membro dos Kera Sakti (a quem os familiares enlutados diziam que tinha sido decepada a cabeça depois de ter desaparecido a caminho da universidade em que se ia inscrever) mostravam muitos jovens a acompanhar a cerimónia vestidos com o uniforme deste estilo de kung fu. Há uns meses, também no telejornal local, numa reportagem sobre armamento apreendido pelas forças internacionais via-se na coronha de uma das armas o desenho das insígnias da PSHT. Antes que os malucos azuis comecem a disparatar a gritar “conspiração!” é bom esclarecer que há muitos “irmãos” praticantes de Setia Hati quer na PNTL quer nas FDTL, e que houve vários lugares em Díli em que, quando em 25 de Maio a tropa atacou o quartel da PNTL, os polícias que aí estavam de serviço despiram a farda e abandonaram as armas que tinham, para poderam fugir incógnitos. Seria absurdo querer tirar ilações sobre “conspirações” a partir de um desenho feito por um miúdo qualquer. No excelente documentário de Carmela Baranowska, "Scenes from an occupation", sobre o período de violência das milícias antes do referendo de 1999, também há um jovem activista do CNRT com uma camisola de membro da PSHT. A Mocidade Portuguesa, uma organização controlada ideologicamente pelo Estado Novo de Salazar, ensinava judo em Timor, porém seria estúpido dizer que o judo e o Kodokan são salazaristas; o Presidente russo Vladimir Putin é um judoca conhecido, seria incorrecto considerar que isso é a mesma coisa que dizer que o Judo está partidarizado na Rússia.
Em Portugal no tempo em que o jogo do pau era popular como as artes marciais aqui agora
Como sempre que se fala em violência em Timor aparecem uns quantos malais iluminados a sentir-se superiores por virem de países onde “nunca há porrada e toda a gente vive numa harmonia social perfeita” (antes fosse!), é bom lembrar pelo menos como eram as coisas há uns tempos nessas terras. Na Austrália havia caça organizada ao aborígene. Em Portugal era assim há umas décadas:
“Podemos dizer o mesmo – mas com mais certeza – das manifestações de violência que, por volta dos anos 20 e 30, acompanhavam geralmente as romarias e, mais concretamente, delas faziam parte ritual.
Não nos referimos só às disputas entre jovens que podem ter origem em rivalidades amorosas, sobretudo quando os rivais pertencem a grupos territoriais diferentes (717), nem às frequentes brigas provocadas pelo vinho (718). Eram outrora comuns e hoje não são raras (719). Referimo-nos, sim, a verdadeiras guerras entre aldeias, que explodiam, quase sistematicamente, no decurso das romarias e suficientemente recentes para que os velhos se lembrem de nelas terem participado e os mais jovens de a elas terem assistido. Se os velhos que entrevistámos são pouco loquazes relativamente aos aspectos sexuais da festa no tempo da sua juventude, os seus testemunhos são, pelo contrário, constantes e explícitos e as emoções ainda bastante vivas no que diz respeito a estas batalhas, permitindo-nos assim considerá-las como parte integrante da romaria. O pároco de Baçal relata fielmente alguns exemplos do fim do século XIX e princípios do século XX: alguns duraram um dia e uma noite, outros saldaram-se por mortos e dezenas de feridos (720). O pároco de Foz Côa mostra a inserção ritual e o desenrolar esperado e estereotipado destas batalhas na romaria da sua paróquia, até uma época mais recente. A naturalidade com que refere a continuação jovial do arraial, imediatamente após a separação dos adversários pela polícia e o transporte dos feridos (ou eventualmente dos mortos), mostra bem o carácter inelutável e sistemático desta fase da peregrinação (721). De alguma forma também este sangue fazia parte da festa.
(...)
As descrições detalhadas que recolhemos directamente dos actores de outrora centram-se na rivalidade entre aldeias (722). Antigas discórdias por vezes não resolvidas: «Discutiremos isso na romaria», velhos ressentimentos herdados de outra geração e que determinam uma agressividade latente, solidariedade entre os jovens «que começaram», ou então, muito simplesmente, recusa de aceitar uma humilhação ou uma injúria imediata... todos estes motivos podem conjugar-se – e ligar-se em torno de uma fatalidade própria da romaria – num fundo de hostilidade e de alianças tradicionais de que já não se sabe a origem. (...) Uma oração de joelhos, depois, agitando ameaçadoramente os cajados, um grito: «Viva Tinalhas!» (...) E era então que frequentemente estalava a briga. Entre homens. A pau e pedra. (...) Extremavam-se os campos, sempre os mesmos: Salgueiros e Póvoa de um lado, Juncal, Freixial e Tinalhas do outro (724).
(...)
Os antigos combatentes estão de acordo acerca dos factores desta evolução que puseram termo às guerras de aldeias: a escola, a Guarda Nacional [Republicana], os sermões do pároco «quando ele é bom...». “ in Pierre Sanchis – Arraial: Festa de um Povo – as romarias portuguesas. Lisboa, Publicações D. Quixote, 1992, 2ªed, p. 175-177
Ou ainda:
Ernesto Veiga de Oliveira - Festividades Cíclicas em Portugal. Lisboa, Publicações D. Quixote, 1984, pp.323-324 (Citado em O jogo-do-pau como representação de estatuto e hierarquia nas sociedades tradicionais): “E era o «varrer» da feira ou do terreiro, refregas épicas, verdadeiras lutas campais, de paus que cruzavam no ar, no furor das pancadas, num jogo largo de feira ou «varrimento» (...), entre nuvens de pó, no meio da gritaria das mulheres que fugiam em todas as direcções”.
O assunto também foi tratado por autores de ficção que retratavam nos seus romances a sociedade daquele tempo. Transcrevem-se de seguida alguns excertos de Terras do Demo [ Aquilino RIBEIRO - Terras do Demo. Lisboa, Círculo de Leitores, 1983] :
“(...) -Eh, rapaziada da Seitosa - disse ele -, então que febre vos fazem as vacas?
-Ainda aí apareces, filho de sete curtas!? - increpou o Zé Narciso. - Vais pagar o descaramento...
E à mão tente despediu-lhe o lodo à nuca. O Brás aparou a pancada no ombro e respondeu-lhe com uma chuçada valente do sombreiro à arca do peito.
O outro pulou e, trás, trás, só deixou de bater pela cabeça, pelos braços, pelo corpo todo, quando o viu estrumado por terra, a roncar.
O Espadagão vinha com uma enxada para lhe britar a cabeça, mas o Cláudio vendeiro deitou-lhe o gadanho e o golpe foi quebrar-se nas costelas:
- Conho, em homem no chão não se dá! (...) [pág. 134]
Passavam maltas, de varapau a estreloiçar contra varapau, varrendo nas arrecuas do batuque o terreiro coalhado de gentiaga: Viva Lamosa! (...) [pág. 136]
Entre eles nem ficava chão para cair um alfinete. E por entre estes e as vareiras, as maltas e ranchos cavalavam. Lá rompia Granjal de lodo no ar, tau-tau, viva a rusga! (...)
Aí disparava um cavaleiro, todo farófia, chapéu de aba larga, pau de choupa entalado debaixo da perna:
- Olá, gentes, abram passagem!
Bem arreada besta, crinas rentes, franjas na retranca, rifadora por de mais. O ar dele era rebentio, com a pinta de rico, e o poviléu apartava-se à banda. Mas lá desembocava outra malta:
- Viva Tabosa!
- Viva!
- Viva até que morra!
E arremetia por ali dentro, aos safanões, ó cetrás, em borborinhos de poeira, num zafarrancho de mil demónios. (...) [pág. 241]
- Foge! Foge! - exclamou a Zabana para Glorinhas diante dum roldão de caceteiros em enovelada correria.
Eram as maltas do Granjal e da Vila da Ponte que se acometiam, naquela sua inveterada rixa de povos fronteiriços e forçudos. Emborcando tarimbas do negócio e trilhando os dorminhões, acossado pelo estreloiçar dos paus, o poviléu varreu às bandas.
Glorinhas e a Zabana meteram para a porta do santuário, em que uma onda medrosa se atropelava. A espaldas delas, retiniam pragas, gemidos e gritos de aqui-d’el-rei. Mas acudia a tropa e os desordeiros tresmalhavam a pés de cavalo. Curioso, o povo refluía sobre o lugar da refrega, que durara o tempo dum credo. Escabujava no chão homem ferido, se não morto, e vozes de mulher gemiam, testemunhando a justiça do céu e da terra. (...) [pág. 257]
Se nas primeiras décadas do séc. XX houvesse malucos azuis e um blog “Portugal-Online” ser-nos-ia naturalmente aí explicado que a cacetada da velha que havia nas aldeias portuguesas existia precisamente por causa de uma conspiração organizada pelos espanhóis, pelo Presidente Bernardino Machado, pelos monárquicos e pela Nossa Senhora de Fátima.
Defensores do bairro
Disseram-me (não sei se é verdade, porque não fui verificar pessoalmente) que no Bairro de Bemôri os velhos continuam a jogar às cartas com os vizinhos como antigamente sem se preocuparem com a origem geográfica de cada um, e que os jovens da área sempre estiveram unidos para defender o bairro no tempo em que ainda havia o caos nas ruas. Talvez seja por isso que o lugar tem a reputação de ser um dos mais calmos de Díli. Muitos dos bairros mais problemáticos são precisamente aqueles de onde parte da população foi escorraçada por ter nascido noutra metade do país. Muitos dos jovens apanhados em zaragatas pelas forças internacionais desculpam-se dizendo que estavam só a defender o bairro. Eu sou céptico em relação aos jovens que se juntam dizendo que estão a defender-se de ataques exteriores se no bairro a que eles pertencem as casas tiverem as paredes cheias de grafítis racistas e xenófobos. Porque esses comentários são escritos precisamente pelos jovens do bairro. Há inclusivamente uma pressão intensa sobre os jovens sossegados que não se querem meter em conflitos para virem também para a rua andar à porrada, em vez de chamarem a polícia e ficarem quietos em casa – os rufias e arruaceiros de cada bairro são nessas situações promovidos de repente à categoria de heróis vigilantes. Os polícias e militares internacionais têm endurecido o tom de voz nos apelos à população, explicando que qualquer pessoa apanhada num cenário de conflito na posse de flechas de Amboíno (rama-Ambon), lanças e, claro, armas de fogo, será imediatamente presa – como explicava em tétum na RTTL o simpático militar australiano porta-voz da tropa do país dele, com certeza ninguém pensa ir caçar nas ruas da capital. É que se a catana é aqui uma ferramenta multi-usos que existe em todas as casas as flechas de Amboino são armas perversas de destruição que não têm outra utilidade que não seja fazer mal às pessoas.
Até há cerca de uma semana quase todos os dias havia pedrada entre dois grupos de jovens, na estrada para Comoro, um de cada lado da via, na zona perto do mercado. Quando os rapazes estavam mais entusiasmados tínhamos que esperar um bocado ali parados ou ir por um caminho alternativo, quando eles estavam mais bem dispostos e as pedradas eram só para para não perder a prática, eles paravam de atirar pedras uns aos outros e faziam-nos sinal para passarmos. Há um ou dois meses, em dois seguidos, tive oportunidade de assistir de um edifício alto a confrontos na zona de Caicôli, envolvendo muitas dezenas de jovens – assim que alguém começava a bater num ferro a dar o alarme via-se os miúdos (e miúdas!) a correr das casas e quintais para a estrada apanhando pedras, paus, canos de ferro, etc, e depois avançavam e recuavam enfrentando o outro grupo, no meio de gritos e risadas. Alguns e algumas não teriam mais de doze anos. Um que levou uma pedrada numa perna foi gozado pelos colegas que estavam ao lado dele. Fez-me lembrar das “guerras de torrões de areia” que fazia às vezes com os meus amigos quando era criança. Nem sempre os confrontos são assim, alguns são bastante mais graves.
Em Timor-Leste há uma cultura de impunidade, está espalhada na sociedade a ideia de que os que cometem crimes não terão de responder por eles num tribunal. Isso é desde logo uma herança do tempo da ocupação indonésia, e também da facilidade com que os organizadores da violência de 1999 escaparam à justiça devido à necessidade de o novo Estado manter boas relações com a Indonésia. A Igreja Católica foi inexcedível no apoio aos deslocados da crise desde o primeiro momento e está a ter actualmente um papel extremamente positivo nos esforços de pacificação das comunidades, mas na altura da manifestação da Igreja contra o Governo em 2005 – quando muitos manifestantes se fartaram de usar slogans e cartazes com mensagens racistas e de intolerância religiosa – perdeu uma boa oportunidade de lançar uma campanha de educação para a tolerância a nível nacional. Quando numa noite nessa altura dois portugueses e um polícia foram sequestrados na residência do Bispo de Díli e espancados, o Padre Maubere apareceu na televisão a dizer que era normal que os jovens tivessem tido tal atitude porque estavam nervosos por as suas reivindicações não serem ouvidas. Que eu saiba não houve ninguém julgado e condenado por rapto e tortura na sequência desse caso. Em 4 de Dezembro de 2002 houve confrontos graves e muita destruição na cidade de Díli, os culpados também nunca foram julgados e condenados. Há quem faça apelos à violência nos jornais sem qualquer consequência.
Apesar de tudo a situação tem vindo a melhorar francamente, já há esquadras permanentes da polícia da ONU em alguns lugares de Díli, os polícias já andam por aí a fazer patrulhas a pé e acompanhados de agentes da PNTL... Há diariamente na RTTL um espaço de antena para a UNPOL e os militares australianos onde se comenta a lista de casos de polícia do dia (que têm vindo a diminuir), para que a população seja informada com objectividade sobre as ocorrências relativas a problemas de segurança, em vez de ouvir os boatos que por cá correm (e o tom alarmista de certos blogues que dizem que “Eles andem aí!!”). Continua no entanto a existir um clima de medo e de suspeição mútua no seio das comunidades. Algumas acções de criminosos xenófobos durante o último mês, como entrar numa microlete com uma faca à procura de gente de leste, ou esperar no caminho de ida para uma escola e mandar as crianças nascidas no oriente voltarem para casa, reforçaram esses receios. Em Díli não é preciso fazer uma coisa dessas muitas vezes, basta um único incidente para que no dia seguinte toda a gente fale disso e vá “acrescentando um ponto”. Também já há menos deslocados nos campos, mas muitos dos que aí estão continuam com medo não do “lobo mau” mas dos próprios vizinhos.
Nas ruelas interiores dos bairros continua a haver grupos de moços que se sentam em convívio à noite, às vezes com um jerrican de vinho de palma ou aguardente para animar os espíritos. Já antes se fazia, e tocava-se viola e cantavam-se umas cantigas; agora contam-se histórias de valentia - real ou de fanfarronice - contra “os outros”, a UNPOL em geral, a GNR... Não acredito que os australianos estejam cá só pelos lindos olhos dos timorenses, naturalmente têm a sua própria agenda. Mas o que não ajuda nada para a resolução da situação é fomentar os receios do povo com histórias sobre “bichos-papões”, como faz o “Timor-Online”, em vez de apelar a que as comunidades deixem de seguir as maçãs podres que existem no seu seio, e a que tomem a paz nas suas próprias mãos. É preciso dizer que o António, ou Manuel, ou Zé, que andem com uma catana a ameaçar pessoas são criminosos, no lugar de dizer que são sempre outros os maus.
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