quinta-feira, agosto 17, 2006

Basá ema hotu ne’ebé kaer surik, sei mate ho surik

Mt, 26, 52
Jesus disse-lhe: «Mete a tua espada na bainha, pois todos quantos se servirem da espada morrerão à espada.»
Jezús dehan ba nia: “Hatama ó-nia surik ba nia fatin, basá ema hotu ne’ebé kaer surik, sei mate ho surik.”


Os dias vão-se sucedendo, e a violência faz agora parte da rotina. Regularmente vem ao telejornal da RTTL o director do Hospital Nacional Guido Valadares comunicar os números da semana: n crianças mortas por doenças nos campos de refugiados, n crianças internadas, n jovens que entraram nas urgências vítimas de catanadas, n feridos por pedras, n atingidos por flechas... Nos bairros todos os dias há confrontos - pedrada principalmente - entre grupos de adolescentes de lorosa’e e de loromonu, as forças internacionais – que parecem trabalhar agora em colaboração eficiente – aparecem depressa, os grupos dispersam, alguns dos vândalos são apanhados, e, na maioria, são libertados depois de identificados por serem ainda de menor idade. Há também outra modalidade que é um bandidozeco corajoso ir esconder-se perto de uma zona residencial de onde os oriundos da mesma metade do país que ele tenham sido escorraçados, e depois, à distância, com uma fisga, ir atirando pedras sobre as casas. Isto dura às vezes muito tempo, e dá cabo dos nervos de quem vive na área.
A violência de rua vem de ambos os lados. Houve o momento em que os peticionários ou os seus amigos apedrejaram e puseram fogo a carros ao pé do Palácio do Governo e a seguir queimaram casas de gente de lorosa’e em Tassitolo. Mais tarde, especialmente aquando da “caça” aos desordeiros da manifestação dos peticionários e por alturas do ataque das FDTL ao quartel da polícia, militares das FDTL entravam por bairros de maioria de loromonu aos tiros para o ar e a ameaçar os habitantes, e havia bandos de adolescentes de leste que aproveitavam a situação para espalharem o pânico, e queimarem e espancarem. Por essas alturas também havia alguns polícias de loromonu – vários deles com antecedentes de actividade em gangs no tempo indonésio e incorporados na PNTL para ver se assim os controlavam – que andavam a atacar gente de lorosa’e. Quando as FDTL voltaram para os quartéis e a polícia se entregou ou desapareceu de circulação os bandos de delinquentes do ocidente tornaram-se preponderantes nas ruas e, com excepção de alguns bairros maioritariamente habitados por gente de lorosa’e, a maior parte das pessoas de leste espalhadas por Díli teve que deixar o seu lar e ir para campos de refugiados ou para as terras dos antepassados. Hoje o ódio e a intolerância estão espalhadas no seio das comunidades como um cancro, que tudo corrói e faz apodrecer.
A propósito disto, vou contar-vos uma história. Um autocarro vinha de Manatuto com passageiros. Ao chegar a Díli encontrou uma barreira na estrada feita por jovens de loromonu que perguntaram ameaçadoramente se traziam algum “Irak”. As pessoas entreolharam-se receosas, e por fim um velhinho trémulo respondeu «Não, filho. Não nos façam mal que aqui somos todos “milisi” ».
Contaram-me a história como verdadeira, mas não sei se o é realmente. Porém, para quem não mora em Timor e não acompanhou o crescer do ódio nestes últimos meses, isto requer algumas explicações. Os soldados peticionários que acabaram por ser expulsos das FDTL consideravam-se vítimas de discriminação e diziam que por serem do ocidente (loromonu) lhes chamavam “milícias” ou “filhos de milícias”. É pena que tal questão tenha surgido, porque as FDTL deviam ser um dos garantes mais firmes da unidade nacional e da consciência patriótica. Além de que há que respeitar a memória de toda a gente de loromonu que morreu em massacres perpetrados pelas milícias, como em Liquiçá e em Suai, por exemplo. O sangue das vítimas da ocupação correu por todo o país. Por outro lado, nos cartazes das manifestações anti-Mari Alkatiri abundavam as mensagens racistas e de intolerância religiosa, demonizando o ex-Primeiro Ministro por a sua família ser proveniente do Iémen, e fazendo corresponder um nome árabe e religião muçulmana a ligações com a Al-Qaeda, Bin Laden e terroristas do Iraque. Uma interpretação simplória dos acontecimentos que prevalece entre muito povo do ocidente (loromonu) considera que as pessoas do leste (lorosa’e) são apoiantes de Mari Alkatiri (enquanto muitos deles próprios consideram os peticionários, e Alfredo Reinaldo e Rai-Loos como heróis), daí que lhes façam estender os epítetos que usam para o ex-Primeiro Ministro. Nalguns ataques feitos em Díli por jovens vândalos de ocidente a casas de famílias de leste, ouvi pessoalmente os delinquentes gritarem coisas como “komunista”, “Irak”, “terrorista”.
É caso para perguntar: para quando uma aposta séria na educação para a tolerância em todas as instituições de Timor ligadas ao ensino?

Díli, 12 de Agosto de 2006

4 comentários:

Anónimo disse...

Permanece o mistério, fica por desvendar a necessidade humana de categorizacão, de humilhar o próximo, de fazê-lo sentir-se inferior.....

Anónimo disse...

João

Fico com o coração apertadinho de ver tanta estupidez (des)humana...

Sandra

Anónimo disse...

OI JP!
Avise a querida Fernanda que fiquei muito feliz por receber noticias! Em breve escrevo novamente!!! Diga que mandei um grande beijo para ela!!1 E que desejo tmas felicidades para o casal!
Saudades...
Nerissa

Anónimo disse...

É preciso não olhar para Timor como se ele fosse Portugal. Estamos a falar de um dos países mais pobres do Mundo, e onde a miséria (falta de tudo, incluindo instrução) em que se vive é a principal responsável pela violência. Temos que ser pacientes, preservantes e dar tempo ao tempo. Nesta linha um forte abraço para todos os profs timores e lusos em Timor-Leste. O vosso trabalho vai direito ao núcleo da questão.
E quem acusa os timores de violentos é favor não esquecer a violência que varreu a França, a Irlanda, a Eta, etccc. para já não falar dos europeus balcânicos...
Augusto Lança