Fui acusado num blog de ser neo-colonialista e adversário do poder popular por causa desta minha frase, aí citada: “Aqueles que não vêem uma única coisa positiva na experiência colonial deverão considerar a colonização de Timor Oriental pelos portugueses como exemplar, já que primou pela ausência e pela pouca interferência nas estruturas sociais e culturais timorenses.” No mesmo blog “acusavam-me” ainda de ser um teórico da formação de elites. Analisemos então estas “acusações”, num espírito construtivo para ajudar alguns espíritos mais confundidos a verem a luz.
Quando se debate o colonialismo aparecem frequentemente os zelotes convencidos de que são donos da verdade, fanáticos dispostos a passar por cima de todos os factos que dificultem a adequação das suas teorias e grelhas de análise. Há uns de um lado a defender o nacionalismo serôdio das potências coloniais e a sua missão civilizadora atribuída directamente por Deus e “o fardo do homem branco”, e há os que estão do outro lado e que defendem a pureza igualitária imaculada dos povos oprimidos e a sua cultura superior própria de um Éden onde não havia injustiça antes da chegada do pérfido europeu. Estes são os teóricos d”o remorso do homem branco”, como explica Pascal Bruckner.
Vejamos o que dizem sobre esta questão dois académicos prestigiados da área dos estudos timorenses, Geoffrey Stephen Hull, Ph.D, da University of Western Sydney, e Adérito José Guterres Correia, M.A., da Universidade Nacional Timor Lorosa’e e sub-director do Instituto Nacional de Linguística, num livro que ambos escreveram e que recomendo a todos os cooperantes que trabalham com seriedade em Timor ou por Timor:
“Nu'udar ita hatene, prosesu istóriku ida-ne'ebé ita bolu naran kolonializmu iha aspetu barak. Ema polítiku sira temi beibeik kona-ba aspetu aat ka negativu kolonializmu nian, n.e. nasaun ida hadau nasaun seluk, hanehan populasaun mahorik hodi susu rain ne'e nia bokur no rikusoin tomak. Maibé ema matenek sira rekoñese mós kolonializmu nia aspetu di'ak ka pozitivu oioin, liuliu troka kulturál. Kontaktu ho ema raiseluk sira fó mós ba ema rai-na'in sira leet atu aprende buat barak, la'ós de'it hadi'a sira-nia teknolojia, maibé mós leet atu haluan no haburas sira-nia matenek.
Liuhosi kolonializmu portugés iha Timór, hanesan kolonializmu olandés iha rai-Indonézia, ema mahorik sira iha Nusa-Lubun Malaiu tama ba kontaktu ho kultura rai-Europa nian no mós ho matenek internasionál. Lia-tetun no lia-malaiu simu hosi lia-portugés ka lia-olandés termu tékniku, abstratu no modernu rihun ba rihun. Tan ne'e, lia-malaiu no lia-tetun hetan sorte atubele fahe lisuk rikusoin intelektuál boot ne'ebé naklekar hosi rai-Europa ba mundu tomak.” (página 95)
O livro chama-se “Kursu Gramátika Tetun – Ba Profesór, Tradutór, Jornalista no Estudante-Universidade Sira” e foi publicado em Díli, em 2005, pelo Instituto Nacional de Linguística (sairam duas edições, estou a citar a que tem prefácio do então Primeiro-Ministro, Dr. Mari Alkatiri).
Vou traduzir o excerto, para aqueles malais teóricos do poder popular que em Timor só falam com as elites e cujo contacto com o povo se limita a “Mana, kafé ida, mas tem que ser curto, escaldado e bem tirado!”.
“Como sabemos, o processo histórico a que chamamos colonialismo tem muitos aspectos. Os políticos mencionam muitas vezes os aspectos maus ou negativos do colonialismo, como a ocupação de uma nação por outra, e o espezinhamento dos seus habitantes para sugar todos os recursos e riquezas dessa terra. Mas as pessoas inteligentes também reconhecem aspectos bons ou positivos do colonialismo, principalmente ao nível das trocas culturais. Os contactos com gente de outras terras permitiram também às populações autóctones aprenderem muitas coisas, não apenas melhorando a sua tecnologia, mas dando-lhes também oportunidade de alargar os seus horizontes intelectuais e culturais.
Através do colonialismo português em Timor, bem como do colonialismo holandês na Indonésia, os habitantes do Arquipélago Malaio entraram em contacto com a cultura europeia e com a ciência internacional. A língua tétum e a língua malaia receberam do português e do holandês milhares de termos técnicos, abstractos e modernos. Por isso, o malaio e o tétum tiveram sorte em poderam partilhar riquezas intelectuais importantes que se espalharam da Europa para o mundo inteiro.” [o sublinhado é meu].
Em relação ao outro assunto, a ideia de ter algumas escolas de qualidade para formar elites não é obviamente minha, é muito antiga. Penso que a educação devia chegar a todos, mas não construo castelos no ar, porque vivo no Timor real. Ainda anteontem em Liquiçá um professor do ensino pré-secundário (7º ao 9º ano) me dizia que não tinham professores suficientes na escola dele para ensinar em português (apesar de serem essas as instruções oficiais) e que os poucos que tinha havido eram de lorosa’e e tinham fugido para as suas regiões de origem com medo de ataques. De resto, a Dona “margarida” [a tal senhora que me fez as acusações], se morar agora em Díli, ou vier a morar, vai pôr os seus filhos na Escola Portuguesa (para elites) ou continuará adepta de uma educação igual para toda a gente e de maneira coerente matriculará as suas crianças numa escola como a 28 de Novembro? E dou o exemplo da Escola 28 de Novembro por duas razões: 1) tem um nome revolucionário; 2) os seus filhos poderão talvez, com sorte, vir a ter a oportunidade de ver as massas populares em acção, e participar até nos acontecimentos, já que essa escola tem no seu palmarés ter sido o ponto de partida dos motins infanto-juvenis de 4 de Dezembro de 2002. Agora sem ironia, não há nada que distinga especialmente esta escola, e os jovens delinquentes pirómanos poderiam ter surgido de outra qualquer, como mostra a última vaga de incêndios nestes meses recentes. Timor tem uma percentagem muitíssimo grande da população constituída por crianças e jovens, que na maioria vão para a escola sem outra perspectiva que não seja vir a conseguir um “padrinho” que arranje um lugar na função pública ou então um emprego como “segurança”, eufemismo local para indivíduos contratados para dormir em frente à porta dos malais e endinheirados. Quase não há sector privado, faltam cá ainda “capitalistas”, “burgueses” e outros “inimigos das classes populares” que possam finalmente dinamizar a economia e arranjar mercado de trabalho para esta malta toda, recrutando mão-de-obra usando como critério o mérito individual do candidato. Há demasiados jovens cuja única forma de sobressair perante os seus pares é “armarem-se em galo de combate”.
Existem por outro lado muitos malais internacionalistas que ganham muito, compram nos supermercados produtos importados (até a hortaliça que comem vem da Austrália), mandam a maior do dinheiro que ganham para as suas contas bancárias nos países de origem, e são paladinos do poder popular e do anti-neo-colonialismo!
O corpo docente das escolas timorenses tem pouca formação, há grande falta de livros, a maior parte das pessoas fala ou compreende pelo menos algum português mas não o suficiente para ler nessa língua, os hábitos de leitura são de resto quase inexistentes, em qualquer idioma... O aluno médio termina a escola secundária com uma deficiente preparação de base que não lhe permite frequentar as universidades portuguesas, por exemplo. Por isso é que me parece não apenas importante, mas crucial, para o futuro do país que surjam algumas escolas de qualidade superior para a formação dos quadros que irão tomar conta do país daqui por uns anos. Neste momento há demasiadas instituições e estruturas do Estado que dependem ainda do trabalho de assessores internacionais para funcionarem, se não tivermos algumas escolas de excelência estaremos pior daqui por vinte anos.
Para as pessoas que andam à procura de cartões partidários para decidir se uma ideia é válida ou não, permito-me invocar aqui uma personalidade que certamente não irão atacar. Conheci na Guiné-Bissau quadros guineenses que deviam a sua educação e o seu sucesso como intelectuais aos esforços de Amílcar Cabral, que, há mais de três décadas, andava às vezes pelas tabancas da Guiné a procurar crianças com melhores resultados escolares para pedir aos pais delas que o deixassem mandá-las para uma escola-piloto numa base do seu movimento na Guiné-Conacri, para serem formadas e poderem servir no futuro o seu país. Alguns desses quadros eram provenientes de famílias muito humildes de camponeses ou vaqueiros (os seus irmãos continuam ainda a viver nas tabancas dos antepassados) e nunca teriam podido explorar todo o seu potencial se não tivessem tido a oportunidade de entrar numa escola de qualidade.
Não vão ser as massas de camponeses analfabetos que irão tomar conta das universidades, dos ministérios, dos bancos, das empresas, das companhias de telecomunicações, electricidade, água... Também não vão poder ser muitos dos alunos que actualmente chegam ao ensino superior em Timor. Há que deixar de ter medo das palavras, o país precisa de elites, de indivíduos bem formados – por muito que isso seja difícil de perceber para uns quantos líricos teóricos do poder das massas populares que andam por aí. No romance “Mayombe”, do escritor angolano Pepetela, há um personagem, chamado Mundo Novo, que também defende esse tipo de ideias. Diz ele:
“(...) Como se fosse possível fazer-se uma Revolução só com homens interesseiros, egoístas! Eu não sou egoísta, o marxismo-leninismo mostrou-me que o homem como indivíduo não é nada, só as massas constroem a história. Se fosse egoísta, agora estaria na Europa, como tantos outros, trabalhando e ganhando bem. Porque vim lutar? Porque sou desinteressado. Os operários e os camponeses são desinteressados, são a vanguarda do povo, vanguarda pura, que não transporta com ela o pecado original da burguesia de que os intelectuais só muito dificilmente se podem libertar. Eu libertei-me, graças ao marxismo.(...)”.
Na época os “intelectuais revolucionários desinteressados” tinham que abdicar dos empregos bem pagos na Europa, felizmente agora para os “malais desinteressados adeptos do poder das massas” existem ajudas de custo, e bar do Hotel Timor, e salários milionários na ONU ou na cooperação bilateral, e viagens a Auckland, Hong Kong, Bali, etc... Eu ganho mais do que a maior parte dos timorenses (e menos do que a grande maioria dos malais), mas não sou hipócrita. Enfim, na sequência das reflexões e debates no livro há um outro personagem, Sem Medo, que mais à frente diz:
“(...) É que, nos nossos países, tudo repousa num núcleo restrito, porque há falta de quadros, por vezes num só homem. Como contestar no interior dum grupo restrito? Porque é demagogia dizer que o proletariado tomará o poder. Quem toma o poder é um pequeno grupo de homens, na melhor das hipóteses, representando o proletariado ou querendo representá-lo. A mentira começa quando se diz que o proletariado tomou o poder. Para fazer parte da equipa dirigente, é preciso ter uma razoável formação política e cultural. O operário que a isso acede passou muitos anos ou na organização ou estudando. Deixa de ser proletário, é um intelectual. Mas nós todos temos medo de chamar as coisas pelos seus nomes e, sobretudo, esse nome de intelectual. Tu, Comissário, és um camponês? Porque o teu pai foi camponês, tu és camponês? Estudaste um pouco, leste muito, há anos que fazes um trabalho político, és um camponês? Não, és um intelectual. Negá-lo é demagogia, é populismo. (...) Mas começa-se a mentir ao povo, o qual bem vê que não controla nada o Partido nem o Estado e é o princípio da desconfiança, à qual se sucederá a desmobilização. (...) Como todos os do teu grupo, pensas que se não pode dizer a verdade ao povo, senão ele desmobiliza-se.(...)”
Sou da opinião que – enquanto o português não é dominado por muitos alunos – o romance de Pepetela “A geração da utopia” devia ser traduzido para tétum e tornado leitura obrigatória nas escolas todas do país.
Quando se debate o colonialismo aparecem frequentemente os zelotes convencidos de que são donos da verdade, fanáticos dispostos a passar por cima de todos os factos que dificultem a adequação das suas teorias e grelhas de análise. Há uns de um lado a defender o nacionalismo serôdio das potências coloniais e a sua missão civilizadora atribuída directamente por Deus e “o fardo do homem branco”, e há os que estão do outro lado e que defendem a pureza igualitária imaculada dos povos oprimidos e a sua cultura superior própria de um Éden onde não havia injustiça antes da chegada do pérfido europeu. Estes são os teóricos d”o remorso do homem branco”, como explica Pascal Bruckner.
Vejamos o que dizem sobre esta questão dois académicos prestigiados da área dos estudos timorenses, Geoffrey Stephen Hull, Ph.D, da University of Western Sydney, e Adérito José Guterres Correia, M.A., da Universidade Nacional Timor Lorosa’e e sub-director do Instituto Nacional de Linguística, num livro que ambos escreveram e que recomendo a todos os cooperantes que trabalham com seriedade em Timor ou por Timor:
“Nu'udar ita hatene, prosesu istóriku ida-ne'ebé ita bolu naran kolonializmu iha aspetu barak. Ema polítiku sira temi beibeik kona-ba aspetu aat ka negativu kolonializmu nian, n.e. nasaun ida hadau nasaun seluk, hanehan populasaun mahorik hodi susu rain ne'e nia bokur no rikusoin tomak. Maibé ema matenek sira rekoñese mós kolonializmu nia aspetu di'ak ka pozitivu oioin, liuliu troka kulturál. Kontaktu ho ema raiseluk sira fó mós ba ema rai-na'in sira leet atu aprende buat barak, la'ós de'it hadi'a sira-nia teknolojia, maibé mós leet atu haluan no haburas sira-nia matenek.
Liuhosi kolonializmu portugés iha Timór, hanesan kolonializmu olandés iha rai-Indonézia, ema mahorik sira iha Nusa-Lubun Malaiu tama ba kontaktu ho kultura rai-Europa nian no mós ho matenek internasionál. Lia-tetun no lia-malaiu simu hosi lia-portugés ka lia-olandés termu tékniku, abstratu no modernu rihun ba rihun. Tan ne'e, lia-malaiu no lia-tetun hetan sorte atubele fahe lisuk rikusoin intelektuál boot ne'ebé naklekar hosi rai-Europa ba mundu tomak.” (página 95)
O livro chama-se “Kursu Gramátika Tetun – Ba Profesór, Tradutór, Jornalista no Estudante-Universidade Sira” e foi publicado em Díli, em 2005, pelo Instituto Nacional de Linguística (sairam duas edições, estou a citar a que tem prefácio do então Primeiro-Ministro, Dr. Mari Alkatiri).
Vou traduzir o excerto, para aqueles malais teóricos do poder popular que em Timor só falam com as elites e cujo contacto com o povo se limita a “Mana, kafé ida, mas tem que ser curto, escaldado e bem tirado!”.
“Como sabemos, o processo histórico a que chamamos colonialismo tem muitos aspectos. Os políticos mencionam muitas vezes os aspectos maus ou negativos do colonialismo, como a ocupação de uma nação por outra, e o espezinhamento dos seus habitantes para sugar todos os recursos e riquezas dessa terra. Mas as pessoas inteligentes também reconhecem aspectos bons ou positivos do colonialismo, principalmente ao nível das trocas culturais. Os contactos com gente de outras terras permitiram também às populações autóctones aprenderem muitas coisas, não apenas melhorando a sua tecnologia, mas dando-lhes também oportunidade de alargar os seus horizontes intelectuais e culturais.
Através do colonialismo português em Timor, bem como do colonialismo holandês na Indonésia, os habitantes do Arquipélago Malaio entraram em contacto com a cultura europeia e com a ciência internacional. A língua tétum e a língua malaia receberam do português e do holandês milhares de termos técnicos, abstractos e modernos. Por isso, o malaio e o tétum tiveram sorte em poderam partilhar riquezas intelectuais importantes que se espalharam da Europa para o mundo inteiro.” [o sublinhado é meu].
Em relação ao outro assunto, a ideia de ter algumas escolas de qualidade para formar elites não é obviamente minha, é muito antiga. Penso que a educação devia chegar a todos, mas não construo castelos no ar, porque vivo no Timor real. Ainda anteontem em Liquiçá um professor do ensino pré-secundário (7º ao 9º ano) me dizia que não tinham professores suficientes na escola dele para ensinar em português (apesar de serem essas as instruções oficiais) e que os poucos que tinha havido eram de lorosa’e e tinham fugido para as suas regiões de origem com medo de ataques. De resto, a Dona “margarida” [a tal senhora que me fez as acusações], se morar agora em Díli, ou vier a morar, vai pôr os seus filhos na Escola Portuguesa (para elites) ou continuará adepta de uma educação igual para toda a gente e de maneira coerente matriculará as suas crianças numa escola como a 28 de Novembro? E dou o exemplo da Escola 28 de Novembro por duas razões: 1) tem um nome revolucionário; 2) os seus filhos poderão talvez, com sorte, vir a ter a oportunidade de ver as massas populares em acção, e participar até nos acontecimentos, já que essa escola tem no seu palmarés ter sido o ponto de partida dos motins infanto-juvenis de 4 de Dezembro de 2002. Agora sem ironia, não há nada que distinga especialmente esta escola, e os jovens delinquentes pirómanos poderiam ter surgido de outra qualquer, como mostra a última vaga de incêndios nestes meses recentes. Timor tem uma percentagem muitíssimo grande da população constituída por crianças e jovens, que na maioria vão para a escola sem outra perspectiva que não seja vir a conseguir um “padrinho” que arranje um lugar na função pública ou então um emprego como “segurança”, eufemismo local para indivíduos contratados para dormir em frente à porta dos malais e endinheirados. Quase não há sector privado, faltam cá ainda “capitalistas”, “burgueses” e outros “inimigos das classes populares” que possam finalmente dinamizar a economia e arranjar mercado de trabalho para esta malta toda, recrutando mão-de-obra usando como critério o mérito individual do candidato. Há demasiados jovens cuja única forma de sobressair perante os seus pares é “armarem-se em galo de combate”.
Existem por outro lado muitos malais internacionalistas que ganham muito, compram nos supermercados produtos importados (até a hortaliça que comem vem da Austrália), mandam a maior do dinheiro que ganham para as suas contas bancárias nos países de origem, e são paladinos do poder popular e do anti-neo-colonialismo!
O corpo docente das escolas timorenses tem pouca formação, há grande falta de livros, a maior parte das pessoas fala ou compreende pelo menos algum português mas não o suficiente para ler nessa língua, os hábitos de leitura são de resto quase inexistentes, em qualquer idioma... O aluno médio termina a escola secundária com uma deficiente preparação de base que não lhe permite frequentar as universidades portuguesas, por exemplo. Por isso é que me parece não apenas importante, mas crucial, para o futuro do país que surjam algumas escolas de qualidade superior para a formação dos quadros que irão tomar conta do país daqui por uns anos. Neste momento há demasiadas instituições e estruturas do Estado que dependem ainda do trabalho de assessores internacionais para funcionarem, se não tivermos algumas escolas de excelência estaremos pior daqui por vinte anos.
Para as pessoas que andam à procura de cartões partidários para decidir se uma ideia é válida ou não, permito-me invocar aqui uma personalidade que certamente não irão atacar. Conheci na Guiné-Bissau quadros guineenses que deviam a sua educação e o seu sucesso como intelectuais aos esforços de Amílcar Cabral, que, há mais de três décadas, andava às vezes pelas tabancas da Guiné a procurar crianças com melhores resultados escolares para pedir aos pais delas que o deixassem mandá-las para uma escola-piloto numa base do seu movimento na Guiné-Conacri, para serem formadas e poderem servir no futuro o seu país. Alguns desses quadros eram provenientes de famílias muito humildes de camponeses ou vaqueiros (os seus irmãos continuam ainda a viver nas tabancas dos antepassados) e nunca teriam podido explorar todo o seu potencial se não tivessem tido a oportunidade de entrar numa escola de qualidade.
Não vão ser as massas de camponeses analfabetos que irão tomar conta das universidades, dos ministérios, dos bancos, das empresas, das companhias de telecomunicações, electricidade, água... Também não vão poder ser muitos dos alunos que actualmente chegam ao ensino superior em Timor. Há que deixar de ter medo das palavras, o país precisa de elites, de indivíduos bem formados – por muito que isso seja difícil de perceber para uns quantos líricos teóricos do poder das massas populares que andam por aí. No romance “Mayombe”, do escritor angolano Pepetela, há um personagem, chamado Mundo Novo, que também defende esse tipo de ideias. Diz ele:
“(...) Como se fosse possível fazer-se uma Revolução só com homens interesseiros, egoístas! Eu não sou egoísta, o marxismo-leninismo mostrou-me que o homem como indivíduo não é nada, só as massas constroem a história. Se fosse egoísta, agora estaria na Europa, como tantos outros, trabalhando e ganhando bem. Porque vim lutar? Porque sou desinteressado. Os operários e os camponeses são desinteressados, são a vanguarda do povo, vanguarda pura, que não transporta com ela o pecado original da burguesia de que os intelectuais só muito dificilmente se podem libertar. Eu libertei-me, graças ao marxismo.(...)”.
Na época os “intelectuais revolucionários desinteressados” tinham que abdicar dos empregos bem pagos na Europa, felizmente agora para os “malais desinteressados adeptos do poder das massas” existem ajudas de custo, e bar do Hotel Timor, e salários milionários na ONU ou na cooperação bilateral, e viagens a Auckland, Hong Kong, Bali, etc... Eu ganho mais do que a maior parte dos timorenses (e menos do que a grande maioria dos malais), mas não sou hipócrita. Enfim, na sequência das reflexões e debates no livro há um outro personagem, Sem Medo, que mais à frente diz:
“(...) É que, nos nossos países, tudo repousa num núcleo restrito, porque há falta de quadros, por vezes num só homem. Como contestar no interior dum grupo restrito? Porque é demagogia dizer que o proletariado tomará o poder. Quem toma o poder é um pequeno grupo de homens, na melhor das hipóteses, representando o proletariado ou querendo representá-lo. A mentira começa quando se diz que o proletariado tomou o poder. Para fazer parte da equipa dirigente, é preciso ter uma razoável formação política e cultural. O operário que a isso acede passou muitos anos ou na organização ou estudando. Deixa de ser proletário, é um intelectual. Mas nós todos temos medo de chamar as coisas pelos seus nomes e, sobretudo, esse nome de intelectual. Tu, Comissário, és um camponês? Porque o teu pai foi camponês, tu és camponês? Estudaste um pouco, leste muito, há anos que fazes um trabalho político, és um camponês? Não, és um intelectual. Negá-lo é demagogia, é populismo. (...) Mas começa-se a mentir ao povo, o qual bem vê que não controla nada o Partido nem o Estado e é o princípio da desconfiança, à qual se sucederá a desmobilização. (...) Como todos os do teu grupo, pensas que se não pode dizer a verdade ao povo, senão ele desmobiliza-se.(...)”
Sou da opinião que – enquanto o português não é dominado por muitos alunos – o romance de Pepetela “A geração da utopia” devia ser traduzido para tétum e tornado leitura obrigatória nas escolas todas do país.
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