segunda-feira, agosto 07, 2006

Xanana há seis anos

Um texto de há seis anos que nos ajuda a perceber a raiz de alguns problemas:



Xanana, as bandeiras e o povo de Ainaro

Reportagem de Adelino Gomes publicada na revista “Pública” de 23 de Janeiro de 2000

“Ainaro arvora os de olhar vivo.”
Ruy Cinatti, “Para Uma Corografia Emotiva de Timor” (1946-1972)

Já passou mais de uma hora, mas há ainda gente a entrar no vasto salão do “pré-seminário” S. Luís Gonzaga, no centro de Ainaro. Empurradas pela multidão, as crianças sentam-se tão à frente que podem tocar-lhe, se quiserem. O ritual da recepção seguiu o esquema consagrado: honras militares prestadas pelos mais velhos, armados de catanas e flechas, os braços e os tornozelos enfeitados de colares, braceletes, adornos de prata; versos da exaltação da luta e do líder recitados por uma criança (muitas vezes, como foi o caso hoje, em uniforme de escuteiro); relatório das actividades políticas da região pelo responsável local; discurso do “Presidente do CNRT”, Xanana Gusmão.
O povo é agora convidado a falar das suas dificuldades, a levantar dúvidas, a pedir esclarecimentos. Xanana puxa de mais um cigarro. Percorre a assistência com o olhar, à espera da primeira pergunta, que tarda.
No seu longo discurso, fizera uma viagem pela história dos 24 anos de ocupação, ressaltando o papel desempenhado pelas populações na resistência. Detivera-se na transição e nos desafios da independência (“atenção que não a temos ainda. Ela paira no ar. Mas precisamos de a construir. A ocupação durou 24 anos. O CNRT [Conselho Nacional da Resistência Timorense] dá 25 anos para a reconstrução. E vai provar que pode construir um país”). Termina insistindo na supremacia do poder do povo sobre os governantes: “Não é o Presidente que vai governar; não é o ministro que vai governar. É o povo. Se o presidente roubar, vai para a cadeia. Se o ministro roubar, tiramo-lo e metemo-lo na cadeia.” Como numa espécie de preparação para o momento seguinte, explica o que quer dizer a palavra “democracia”. E acentuou a necessidade da livre crítica: “No tempo dos indonésios dizíamos que alguma coisa estava mal e eles cortavam-nos os dedos. Agora, se está mal, devemos dizer que está mal.” A primeira intervenção pertence a um homem que diz chamar-se Armando Fernandes e que se queixa da falta de comida, mas cuja maior preocupação se centra em questões políticas. Quer saber, definitivamente, que bandeira devem os timorenses respeitar mais: a da RDTL República Democrática de Timor-Leste (que a Fretilin hasteou na proclamação unilateral de independência, em 28 de Novembro de 1975) ou a do CNRT, em que os timorenses votaram no referendo de 30 de Agosto? O homem não deixa dúvidas quanto ao que pensa, ao caracterizar a bandeira da RDTL como “aquela pela qual os nossos irmãos, os nossos amigos, os nossos guerrilheiros morreram ao longo destes 24 anos”.
Xanana pede que outros façam mais perguntas. Levanta-se uma mulher, vestida de preto. Senhora de uma notável facilidade de expressão, começa por desejar Boas Festas ao líder para logo a seguir perguntar, “com todo o respeito”, qual a bandeira que o povo deve honrar: “A da RDTL, que içámos durante a luta”, ou a do CNRT?
O terceiro interveniente pergunta para onde vai Timor, “se cada um começa a puxar a brasa à sua sardinha?”. Já se adivinha mesmo o que ele pretende: ouvir de Xanana uma palavra sobre qual a bandeira que o povo deve respeitar mais...
O líder timorense, que começara há minutos a remexer-se na cadeira, levanta-se e arranca para uma resposta que durará quase uma hora. Ainda na noite anterior, em conversa informal com o PÚBLICO, a caminho precisamente desta cidade, Xanana mostrara-se convencido da insignificância do novo partido que adoptou o nome e a bandeira da efémera República Democtrática de Timor-Leste (RDTL). “É um pequeno grupo de radicais”, comentara, displicente.
Constituído por figuras conhecidas mas minoritárias da antiga Fretilin, o grupo tornou-se muito falado em Díli por ter feito uma aliança aparentemente contranatura como o PNT (Partido Nacionalista Timorense, de Abílio Araújo, o antigo presidente da Fretilin que mais tarde veio a defender a tese de uma autonomia alargada no seio da Indonésia) e por uma razão à margem do debate político: um dos seus membros esbofeteou em público o dirigente da Fretilin, Mari Alkatiri, mal este regressou a Timor-Leste.
A sucessão fulminante de perguntas sobre a bandeira parece demonstrar, contudo, uma identificação dos “radicais” com o povo e aconselha Xanana a uma resposta firme e convincente.
“Temos de voltar atrás”, começa, recordando as condições em que, pressionada pela Indonésia que já ocupava militarmente boa parte da zona fronteiriça e isolada de Portugal, que fazia orelhas moucas aos seus pedidos de negociação, a Fretilin decidiu proclamar unilateralmente a independência. “A RDTL foi uma decisão política para parar a invasão em Atabai. Tomámo-la em casa do Xavier [do Amaral, ao tempo presidente da Fretilin].”
“U-ni-la-te-ral-men-te””, martela por várias vezes. “Se a comunidade internacional a tivesse reconhecido, a ONU tinha mandado tropas [quando a Indonésia invadiu o território]. Ora o que aconteceu foi que a ONU aprovou uma resolução recomhecendo Portugal como potência administrante. Se a ONU e Portugal tivessem reconhecido a RDTL, não precisaríamos de um referendo. Por causa do referendo é que veio a Interfet. Por causa do referendo é que vem agora a força de manutenção de paz.”
Xanana detém-se no impasse a que a resistência chegou no início da década de 80, quando, do Comité Central que enfrentou as legiões de Suharto, apenas ele e Ma’Huno restavam no mato. Conta o que lhe disse em 1982 o “saudoso bispo” D. Martinho Lopes (a quem o Vaticano viria a afastar da diocese de Díli por o considerar demasiado próximo da resistência): “Filho, larga o marxismo. Temos de agarrar o povo todo.” Revela os apoios que iam surgindo à luta contra a ocupação indonésia das mais inesperadas figuras e filiações partidárias. “Os padres apoiavam; Guilherme Gonçalves, ninguém sabe, mas muitos documentos saíram de Jacarta através dele; a UDT queria ajudar”, mas o “comunismo” da Fretilin constituía um obstáculo intransponível a uma aliança. Diz que estes foram os fundamentos do processo por si liderado de despartidarização das Falintil e de criação de uma estrutura política mais abrangente – o Conselho Nacional da Resistência Maubere (CNRM). E explica que tamanha era a necessidade de alargar cada vez mais a base de apoio da resistência que rapidamente se decidiu eliminar da sigla a letra M (de maubere) substituindo-a pela letra T (de timorense).
Volta então ao tema da bandeira. “Não foi só a Fretilin que fez a guerra. Também a fizeram a Igreja, a UDT, outros partidos. Porque é que dizemos que as Falintil são do povo? Porque saíram da Fretilin e passaram a abranger toda a gente.” Por isso a sua bandeira foi adoptada pelo CNRT. Insiste que a RDTL foi uma decisão “unilateral” da Fretilin. “Muitos dizem que derramámos o sangue pela bandeira. É verdade. Mas o nosso objectivo é mais do que a bandeira: é a independência.”
Senta-se e fica a aguardar uma nova ronda de perguntas. Uma mulher e um homem levantam-se, chegam à frente e falam. A dúvida que os atormenta resume-se no essencial em saber qual das duas bandeiras (a da RDTL ou do CNRT) deve ser mais respeitada?
Xanana não se dá por achado e inicia um novo discurso explicativo, agora mais brutal. “Em 1977, a Fretilin decidiu adoptar o marxismo-leninismo. O povo não foi ouvido. Matou-se muita gente.” Bate repetidamente na mesa. “O sangue foi derramado pela bandeira ou pelo significado da bandeira? O significado é a nossa independência. Eu respeito a bandeira da RDTL. Não podemos apagar o dia 28 de Novembro da História. Mas também o 11 de Agosto [data do golpe da UDT]. E o 20 de Agosto [data do contragolpe da Fretilin]. Da História faz parte o bem e o mal. Quem quiser tem direito a continuar agarrado ao 28 de Novembro. Para mim, a data mais importante é a [do referendo] de 30 de Agosto.”
Cala-se, acende novo cigarro, dá uns goles no café que as mulheres vieram distribuir pelos convidados. Sucedem-se no uso da palavra outros elementos da assistência, todos na casa dos 40 anos. Martinho quer saber qual a bandeira mais importante; António mistura tétum com bahasa para perguntar no essencial o mesmo – RDTL ou CNRT?
Xanana parece à beira de um ataque de nervos. A bandeira da transição é a bandeira do CNRT, que é a bandeira das Falintil, que é a bandeira da unidade nacional, diz, em resumo. Mas o discurso agora desbrava outro caminho: “Não é preciso pensar já na bandeira da independência. Porque estamos ainda com fome, ainda estamos doentes.” Depois das eleições, quando houver uma Assembleia Constituinte, então haverá um concurso para a bandeira. Conta uma história passada durante o período em que as milícias quiseram obrigar toda a gente a hastear uma bandeira indonésia em casa. Para irritação dos jovens, um velho, no Oecussi, cedeu às pressões e pendurou a bandeira indonésia numa árvore sagrada. Resposta do velho aos protestos dos jovens: “Vocês são cultos mas parvos. É preciso sabermos viver. Depois, no referendo, eu vou votar na independência. E nessa altura o pano da bandeira indonésia nem para fazer cuecas me vai servir.”
O povo ri. Xanana mal goza o efeito, disparando logo outra história, de sinal contrário, mas com o mesmo objectivo táctico de desdramatizar a importância da bandeira, que ameaça transformar-se nestas quase quatro horas que leva já a sessão de esclarecimento no tema fetiche de toda a vida política de Timor. Antigo soldado de 2ª linha quando Timor era uma colónia de Portugal, um velho recusou-se a levantar a bandeira indonésia. “Porquê?”, quis saber um militar indonésio. “Porque no tempo dos portugueses ensinaram-me que nem a sombra dela nós podíamos pisar. Mas agora, com vocês, até no curral dos porcos se põem as bandeiras...”
A sessão termina com os vivas da praxe a Ka[i] Rala Xanana Gusmão e a Timor-Leste. O líder timorense sai de semblante mais carregado do que é habitual. Decide ali mesmo fazer uma visita surpresa a uma povoação das redondezas, Soro Crai, onde há dez anos o povo escavou um buraco de quatro metros e ali o manteve escondido da tropa indonésia, durante mais de um mês.
O jipe que a solidariedade japonesa lhe ofereceu e a bordo do qual tem vindo a percorrer o território toma o caminho de Maubisse. Antes do desvio para a aldeia, numa casa isolada do lado esquerdo de quem sai de Ainaro, um pano vermelho e negro flutua no topo de um comprido mastro. “Olha, olha, a bandeira da RDTL”, diz um dos membros da comitiva. Está desvendado o mistério das perguntas todas iguais de toda a gente durante toda a manhã. O pequeno grupo de radicais promete obrigar Xanana a responder ainda por muito tempo à pergunta de Armando Fernandes e de mais uma dezena de homens e mulheres de Ainaro: qual é a bandeira que os timorenses devem respeitar mais – a do CNRT, ou a da RDTL, pela qual milhares derramaram sangue ao longo de um quarto de século?

2 comentários:

Anónimo disse...

Nao morreram nem por uma nem por outra.Mas sim pela independencia para a qual todos lutaram e nao apenas a Fretilin.De resto, o proprio XG tinha proposto em Setembro de 1999, em Darwin, que a bandeira nacional seria desenhada pelos artistas timorenses e depois de discutida seria escolhida a que melhor interpretasse os simbolos do futuro pais. Mas isto era o XG de ha 7 anos.

Anónimo disse...

Sairam jah dois relatorios. Mas a paz e o entendimento entre os timorenses ainda estao muito distantes. Pessoalmente nao acredito que os nomes apontados pelos relatorios serao processados e julgados. Por isso pessoalmente acredito que so um milagre pode salvar o povo de Timor. E para que esses milagre aconteca, todos nos que constituimos o povo humilde e sofredor de Timor temos que rezar e contribuir a nossa maneira para a paz que tanto precisamos para os nossos filhos e netos!
Nossa Senhora de Aitara nos acuda!..