quinta-feira, agosto 17, 2006

Basá ema hotu ne’ebé kaer surik, sei mate ho surik

Mt, 26, 52
Jesus disse-lhe: «Mete a tua espada na bainha, pois todos quantos se servirem da espada morrerão à espada.»
Jezús dehan ba nia: “Hatama ó-nia surik ba nia fatin, basá ema hotu ne’ebé kaer surik, sei mate ho surik.”


Os dias vão-se sucedendo, e a violência faz agora parte da rotina. Regularmente vem ao telejornal da RTTL o director do Hospital Nacional Guido Valadares comunicar os números da semana: n crianças mortas por doenças nos campos de refugiados, n crianças internadas, n jovens que entraram nas urgências vítimas de catanadas, n feridos por pedras, n atingidos por flechas... Nos bairros todos os dias há confrontos - pedrada principalmente - entre grupos de adolescentes de lorosa’e e de loromonu, as forças internacionais – que parecem trabalhar agora em colaboração eficiente – aparecem depressa, os grupos dispersam, alguns dos vândalos são apanhados, e, na maioria, são libertados depois de identificados por serem ainda de menor idade. Há também outra modalidade que é um bandidozeco corajoso ir esconder-se perto de uma zona residencial de onde os oriundos da mesma metade do país que ele tenham sido escorraçados, e depois, à distância, com uma fisga, ir atirando pedras sobre as casas. Isto dura às vezes muito tempo, e dá cabo dos nervos de quem vive na área.
A violência de rua vem de ambos os lados. Houve o momento em que os peticionários ou os seus amigos apedrejaram e puseram fogo a carros ao pé do Palácio do Governo e a seguir queimaram casas de gente de lorosa’e em Tassitolo. Mais tarde, especialmente aquando da “caça” aos desordeiros da manifestação dos peticionários e por alturas do ataque das FDTL ao quartel da polícia, militares das FDTL entravam por bairros de maioria de loromonu aos tiros para o ar e a ameaçar os habitantes, e havia bandos de adolescentes de leste que aproveitavam a situação para espalharem o pânico, e queimarem e espancarem. Por essas alturas também havia alguns polícias de loromonu – vários deles com antecedentes de actividade em gangs no tempo indonésio e incorporados na PNTL para ver se assim os controlavam – que andavam a atacar gente de lorosa’e. Quando as FDTL voltaram para os quartéis e a polícia se entregou ou desapareceu de circulação os bandos de delinquentes do ocidente tornaram-se preponderantes nas ruas e, com excepção de alguns bairros maioritariamente habitados por gente de lorosa’e, a maior parte das pessoas de leste espalhadas por Díli teve que deixar o seu lar e ir para campos de refugiados ou para as terras dos antepassados. Hoje o ódio e a intolerância estão espalhadas no seio das comunidades como um cancro, que tudo corrói e faz apodrecer.
A propósito disto, vou contar-vos uma história. Um autocarro vinha de Manatuto com passageiros. Ao chegar a Díli encontrou uma barreira na estrada feita por jovens de loromonu que perguntaram ameaçadoramente se traziam algum “Irak”. As pessoas entreolharam-se receosas, e por fim um velhinho trémulo respondeu «Não, filho. Não nos façam mal que aqui somos todos “milisi” ».
Contaram-me a história como verdadeira, mas não sei se o é realmente. Porém, para quem não mora em Timor e não acompanhou o crescer do ódio nestes últimos meses, isto requer algumas explicações. Os soldados peticionários que acabaram por ser expulsos das FDTL consideravam-se vítimas de discriminação e diziam que por serem do ocidente (loromonu) lhes chamavam “milícias” ou “filhos de milícias”. É pena que tal questão tenha surgido, porque as FDTL deviam ser um dos garantes mais firmes da unidade nacional e da consciência patriótica. Além de que há que respeitar a memória de toda a gente de loromonu que morreu em massacres perpetrados pelas milícias, como em Liquiçá e em Suai, por exemplo. O sangue das vítimas da ocupação correu por todo o país. Por outro lado, nos cartazes das manifestações anti-Mari Alkatiri abundavam as mensagens racistas e de intolerância religiosa, demonizando o ex-Primeiro Ministro por a sua família ser proveniente do Iémen, e fazendo corresponder um nome árabe e religião muçulmana a ligações com a Al-Qaeda, Bin Laden e terroristas do Iraque. Uma interpretação simplória dos acontecimentos que prevalece entre muito povo do ocidente (loromonu) considera que as pessoas do leste (lorosa’e) são apoiantes de Mari Alkatiri (enquanto muitos deles próprios consideram os peticionários, e Alfredo Reinaldo e Rai-Loos como heróis), daí que lhes façam estender os epítetos que usam para o ex-Primeiro Ministro. Nalguns ataques feitos em Díli por jovens vândalos de ocidente a casas de famílias de leste, ouvi pessoalmente os delinquentes gritarem coisas como “komunista”, “Irak”, “terrorista”.
É caso para perguntar: para quando uma aposta séria na educação para a tolerância em todas as instituições de Timor ligadas ao ensino?

Díli, 12 de Agosto de 2006

terça-feira, agosto 08, 2006

GNR continua o bom trabalho

Esta noite houve problemas em frente a minha casa. Apareceram imediatamente as forcas internacionais, desta vez em colaboracao, GNR, australianos e malaios. Da-me algum conforto saber que ha quem, desempenhando um trabalho arriscado, zela pela seguranca dos cidadaos. A GNR prima pelo profissionalismo, esta aqui a pedido das autoridades timorenses legitimas para ajudar a manter A LEI E A ORDEM. Nao esta aqui para ajudar nenhuma corrente politica (nem os pro nem os contra) e nao distingue entre "bandidos bons" e "bandidos maus" nem entre "bandidos do nosso lado" e "bandidos do lado deles". Ainda no Domingo telefonamos para uma amiga nossa (natural de Baucau) para saber se estava tudo bem porque havia problemas no bairro dela, e ela atendeu em panico porque tinha bandidos bestas quadradas a atacaram-lhe a casa, mas logo a seguir disse com alivio "Espera, a GNR ja esta aqui a chegar!". A tarde telefonamos-lhe outra vez e ja estava em Baucau com familiares, tinha tido que fugir mais uma vez com medo que houvesse novos ataques. A rapariga e uma estudante da UNTL, que costuma trabalhar bastante com as freiras de uma ordem religiosa no apoio social que estas levam a cabo, ou seja, uma cidada que nada tem a ver com politica, nem com armas, nem com nada que possa fazer compreender - ainda que nao justificar - que os delinquentes piromanos a escolhessem como alvo. Os cidadaos amantes da paz ficam muito contentes por saber que a GNR esta neste momento por ai pela cidade a fazer as suas patrulhas, e natural que os criminosos fiquem desassossegados.

segunda-feira, agosto 07, 2006

Retratos do trabalho em Timor-Leste (no Abrupto)

http://abrupto.blogspot.com/2006_03_01_abrupto_archive.html#114285350314192753

Xanana há seis anos

Um texto de há seis anos que nos ajuda a perceber a raiz de alguns problemas:



Xanana, as bandeiras e o povo de Ainaro

Reportagem de Adelino Gomes publicada na revista “Pública” de 23 de Janeiro de 2000

“Ainaro arvora os de olhar vivo.”
Ruy Cinatti, “Para Uma Corografia Emotiva de Timor” (1946-1972)

Já passou mais de uma hora, mas há ainda gente a entrar no vasto salão do “pré-seminário” S. Luís Gonzaga, no centro de Ainaro. Empurradas pela multidão, as crianças sentam-se tão à frente que podem tocar-lhe, se quiserem. O ritual da recepção seguiu o esquema consagrado: honras militares prestadas pelos mais velhos, armados de catanas e flechas, os braços e os tornozelos enfeitados de colares, braceletes, adornos de prata; versos da exaltação da luta e do líder recitados por uma criança (muitas vezes, como foi o caso hoje, em uniforme de escuteiro); relatório das actividades políticas da região pelo responsável local; discurso do “Presidente do CNRT”, Xanana Gusmão.
O povo é agora convidado a falar das suas dificuldades, a levantar dúvidas, a pedir esclarecimentos. Xanana puxa de mais um cigarro. Percorre a assistência com o olhar, à espera da primeira pergunta, que tarda.
No seu longo discurso, fizera uma viagem pela história dos 24 anos de ocupação, ressaltando o papel desempenhado pelas populações na resistência. Detivera-se na transição e nos desafios da independência (“atenção que não a temos ainda. Ela paira no ar. Mas precisamos de a construir. A ocupação durou 24 anos. O CNRT [Conselho Nacional da Resistência Timorense] dá 25 anos para a reconstrução. E vai provar que pode construir um país”). Termina insistindo na supremacia do poder do povo sobre os governantes: “Não é o Presidente que vai governar; não é o ministro que vai governar. É o povo. Se o presidente roubar, vai para a cadeia. Se o ministro roubar, tiramo-lo e metemo-lo na cadeia.” Como numa espécie de preparação para o momento seguinte, explica o que quer dizer a palavra “democracia”. E acentuou a necessidade da livre crítica: “No tempo dos indonésios dizíamos que alguma coisa estava mal e eles cortavam-nos os dedos. Agora, se está mal, devemos dizer que está mal.” A primeira intervenção pertence a um homem que diz chamar-se Armando Fernandes e que se queixa da falta de comida, mas cuja maior preocupação se centra em questões políticas. Quer saber, definitivamente, que bandeira devem os timorenses respeitar mais: a da RDTL República Democrática de Timor-Leste (que a Fretilin hasteou na proclamação unilateral de independência, em 28 de Novembro de 1975) ou a do CNRT, em que os timorenses votaram no referendo de 30 de Agosto? O homem não deixa dúvidas quanto ao que pensa, ao caracterizar a bandeira da RDTL como “aquela pela qual os nossos irmãos, os nossos amigos, os nossos guerrilheiros morreram ao longo destes 24 anos”.
Xanana pede que outros façam mais perguntas. Levanta-se uma mulher, vestida de preto. Senhora de uma notável facilidade de expressão, começa por desejar Boas Festas ao líder para logo a seguir perguntar, “com todo o respeito”, qual a bandeira que o povo deve honrar: “A da RDTL, que içámos durante a luta”, ou a do CNRT?
O terceiro interveniente pergunta para onde vai Timor, “se cada um começa a puxar a brasa à sua sardinha?”. Já se adivinha mesmo o que ele pretende: ouvir de Xanana uma palavra sobre qual a bandeira que o povo deve respeitar mais...
O líder timorense, que começara há minutos a remexer-se na cadeira, levanta-se e arranca para uma resposta que durará quase uma hora. Ainda na noite anterior, em conversa informal com o PÚBLICO, a caminho precisamente desta cidade, Xanana mostrara-se convencido da insignificância do novo partido que adoptou o nome e a bandeira da efémera República Democtrática de Timor-Leste (RDTL). “É um pequeno grupo de radicais”, comentara, displicente.
Constituído por figuras conhecidas mas minoritárias da antiga Fretilin, o grupo tornou-se muito falado em Díli por ter feito uma aliança aparentemente contranatura como o PNT (Partido Nacionalista Timorense, de Abílio Araújo, o antigo presidente da Fretilin que mais tarde veio a defender a tese de uma autonomia alargada no seio da Indonésia) e por uma razão à margem do debate político: um dos seus membros esbofeteou em público o dirigente da Fretilin, Mari Alkatiri, mal este regressou a Timor-Leste.
A sucessão fulminante de perguntas sobre a bandeira parece demonstrar, contudo, uma identificação dos “radicais” com o povo e aconselha Xanana a uma resposta firme e convincente.
“Temos de voltar atrás”, começa, recordando as condições em que, pressionada pela Indonésia que já ocupava militarmente boa parte da zona fronteiriça e isolada de Portugal, que fazia orelhas moucas aos seus pedidos de negociação, a Fretilin decidiu proclamar unilateralmente a independência. “A RDTL foi uma decisão política para parar a invasão em Atabai. Tomámo-la em casa do Xavier [do Amaral, ao tempo presidente da Fretilin].”
“U-ni-la-te-ral-men-te””, martela por várias vezes. “Se a comunidade internacional a tivesse reconhecido, a ONU tinha mandado tropas [quando a Indonésia invadiu o território]. Ora o que aconteceu foi que a ONU aprovou uma resolução recomhecendo Portugal como potência administrante. Se a ONU e Portugal tivessem reconhecido a RDTL, não precisaríamos de um referendo. Por causa do referendo é que veio a Interfet. Por causa do referendo é que vem agora a força de manutenção de paz.”
Xanana detém-se no impasse a que a resistência chegou no início da década de 80, quando, do Comité Central que enfrentou as legiões de Suharto, apenas ele e Ma’Huno restavam no mato. Conta o que lhe disse em 1982 o “saudoso bispo” D. Martinho Lopes (a quem o Vaticano viria a afastar da diocese de Díli por o considerar demasiado próximo da resistência): “Filho, larga o marxismo. Temos de agarrar o povo todo.” Revela os apoios que iam surgindo à luta contra a ocupação indonésia das mais inesperadas figuras e filiações partidárias. “Os padres apoiavam; Guilherme Gonçalves, ninguém sabe, mas muitos documentos saíram de Jacarta através dele; a UDT queria ajudar”, mas o “comunismo” da Fretilin constituía um obstáculo intransponível a uma aliança. Diz que estes foram os fundamentos do processo por si liderado de despartidarização das Falintil e de criação de uma estrutura política mais abrangente – o Conselho Nacional da Resistência Maubere (CNRM). E explica que tamanha era a necessidade de alargar cada vez mais a base de apoio da resistência que rapidamente se decidiu eliminar da sigla a letra M (de maubere) substituindo-a pela letra T (de timorense).
Volta então ao tema da bandeira. “Não foi só a Fretilin que fez a guerra. Também a fizeram a Igreja, a UDT, outros partidos. Porque é que dizemos que as Falintil são do povo? Porque saíram da Fretilin e passaram a abranger toda a gente.” Por isso a sua bandeira foi adoptada pelo CNRT. Insiste que a RDTL foi uma decisão “unilateral” da Fretilin. “Muitos dizem que derramámos o sangue pela bandeira. É verdade. Mas o nosso objectivo é mais do que a bandeira: é a independência.”
Senta-se e fica a aguardar uma nova ronda de perguntas. Uma mulher e um homem levantam-se, chegam à frente e falam. A dúvida que os atormenta resume-se no essencial em saber qual das duas bandeiras (a da RDTL ou do CNRT) deve ser mais respeitada?
Xanana não se dá por achado e inicia um novo discurso explicativo, agora mais brutal. “Em 1977, a Fretilin decidiu adoptar o marxismo-leninismo. O povo não foi ouvido. Matou-se muita gente.” Bate repetidamente na mesa. “O sangue foi derramado pela bandeira ou pelo significado da bandeira? O significado é a nossa independência. Eu respeito a bandeira da RDTL. Não podemos apagar o dia 28 de Novembro da História. Mas também o 11 de Agosto [data do golpe da UDT]. E o 20 de Agosto [data do contragolpe da Fretilin]. Da História faz parte o bem e o mal. Quem quiser tem direito a continuar agarrado ao 28 de Novembro. Para mim, a data mais importante é a [do referendo] de 30 de Agosto.”
Cala-se, acende novo cigarro, dá uns goles no café que as mulheres vieram distribuir pelos convidados. Sucedem-se no uso da palavra outros elementos da assistência, todos na casa dos 40 anos. Martinho quer saber qual a bandeira mais importante; António mistura tétum com bahasa para perguntar no essencial o mesmo – RDTL ou CNRT?
Xanana parece à beira de um ataque de nervos. A bandeira da transição é a bandeira do CNRT, que é a bandeira das Falintil, que é a bandeira da unidade nacional, diz, em resumo. Mas o discurso agora desbrava outro caminho: “Não é preciso pensar já na bandeira da independência. Porque estamos ainda com fome, ainda estamos doentes.” Depois das eleições, quando houver uma Assembleia Constituinte, então haverá um concurso para a bandeira. Conta uma história passada durante o período em que as milícias quiseram obrigar toda a gente a hastear uma bandeira indonésia em casa. Para irritação dos jovens, um velho, no Oecussi, cedeu às pressões e pendurou a bandeira indonésia numa árvore sagrada. Resposta do velho aos protestos dos jovens: “Vocês são cultos mas parvos. É preciso sabermos viver. Depois, no referendo, eu vou votar na independência. E nessa altura o pano da bandeira indonésia nem para fazer cuecas me vai servir.”
O povo ri. Xanana mal goza o efeito, disparando logo outra história, de sinal contrário, mas com o mesmo objectivo táctico de desdramatizar a importância da bandeira, que ameaça transformar-se nestas quase quatro horas que leva já a sessão de esclarecimento no tema fetiche de toda a vida política de Timor. Antigo soldado de 2ª linha quando Timor era uma colónia de Portugal, um velho recusou-se a levantar a bandeira indonésia. “Porquê?”, quis saber um militar indonésio. “Porque no tempo dos portugueses ensinaram-me que nem a sombra dela nós podíamos pisar. Mas agora, com vocês, até no curral dos porcos se põem as bandeiras...”
A sessão termina com os vivas da praxe a Ka[i] Rala Xanana Gusmão e a Timor-Leste. O líder timorense sai de semblante mais carregado do que é habitual. Decide ali mesmo fazer uma visita surpresa a uma povoação das redondezas, Soro Crai, onde há dez anos o povo escavou um buraco de quatro metros e ali o manteve escondido da tropa indonésia, durante mais de um mês.
O jipe que a solidariedade japonesa lhe ofereceu e a bordo do qual tem vindo a percorrer o território toma o caminho de Maubisse. Antes do desvio para a aldeia, numa casa isolada do lado esquerdo de quem sai de Ainaro, um pano vermelho e negro flutua no topo de um comprido mastro. “Olha, olha, a bandeira da RDTL”, diz um dos membros da comitiva. Está desvendado o mistério das perguntas todas iguais de toda a gente durante toda a manhã. O pequeno grupo de radicais promete obrigar Xanana a responder ainda por muito tempo à pergunta de Armando Fernandes e de mais uma dezena de homens e mulheres de Ainaro: qual é a bandeira que os timorenses devem respeitar mais – a do CNRT, ou a da RDTL, pela qual milhares derramaram sangue ao longo de um quarto de século?

Há medos e medos

Há medos e medos

as bocas

As bocas da Dona “Margarida” estao aqui e noutros comentarios do mesmo blog...

domingo, agosto 06, 2006

Os cães ladram mas a caravana passa

Fui acusado num blog de ser neo-colonialista e adversário do poder popular por causa desta minha frase, aí citada: “Aqueles que não vêem uma única coisa positiva na experiência colonial deverão considerar a colonização de Timor Oriental pelos portugueses como exemplar, já que primou pela ausência e pela pouca interferência nas estruturas sociais e culturais timorenses.” No mesmo blog “acusavam-me” ainda de ser um teórico da formação de elites. Analisemos então estas “acusações”, num espírito construtivo para ajudar alguns espíritos mais confundidos a verem a luz.
Quando se debate o colonialismo aparecem frequentemente os zelotes convencidos de que são donos da verdade, fanáticos dispostos a passar por cima de todos os factos que dificultem a adequação das suas teorias e grelhas de análise. Há uns de um lado a defender o nacionalismo serôdio das potências coloniais e a sua missão civilizadora atribuída directamente por Deus e “o fardo do homem branco”, e há os que estão do outro lado e que defendem a pureza igualitária imaculada dos povos oprimidos e a sua cultura superior própria de um Éden onde não havia injustiça antes da chegada do pérfido europeu. Estes são os teóricos d”o remorso do homem branco”, como explica Pascal Bruckner.
Vejamos o que dizem sobre esta questão dois académicos prestigiados da área dos estudos timorenses, Geoffrey Stephen Hull, Ph.D, da University of Western Sydney, e Adérito José Guterres Correia, M.A., da Universidade Nacional Timor Lorosa’e e sub-director do Instituto Nacional de Linguística, num livro que ambos escreveram e que recomendo a todos os cooperantes que trabalham com seriedade em Timor ou por Timor:

Nu'udar ita hatene, prosesu istóriku ida-ne'ebé ita bolu naran kolonializmu iha aspetu barak. Ema polítiku sira temi beibeik kona-ba aspetu aat ka negativu kolonializmu nian, n.e. nasaun ida hadau nasaun seluk, hanehan populasaun mahorik hodi susu rain ne'e nia bokur no rikusoin tomak. Maibé ema matenek sira rekoñese mós kolonializmu nia aspetu di'ak ka pozitivu oioin, liuliu troka kulturál. Kontaktu ho ema raiseluk sira fó mós ba ema rai-na'in sira leet atu aprende buat barak, la'ós de'it hadi'a sira-nia teknolojia, maibé mós leet atu haluan no haburas sira-nia matenek.
Liuhosi kolonializmu portugés iha Timór, hanesan kolonializmu olandés iha rai-Indonézia, ema mahorik sira iha Nusa-Lubun Malaiu tama ba kontaktu ho kultura rai-Europa nian no mós ho matenek internasionál. Lia-tetun no lia-malaiu simu hosi lia-portugés ka lia-olandés termu tékniku, abstratu no modernu rihun ba rihun. Tan ne'e, lia-malaiu no lia-tetun hetan sorte atubele fahe lisuk rikusoin intelektuál boot ne'ebé naklekar hosi rai-Europa ba mundu tomak.
” (página 95)

O livro chama-se “Kursu Gramátika Tetun – Ba Profesór, Tradutór, Jornalista no Estudante-Universidade Sira” e foi publicado em Díli, em 2005, pelo Instituto Nacional de Linguística (sairam duas edições, estou a citar a que tem prefácio do então Primeiro-Ministro, Dr. Mari Alkatiri).
Vou traduzir o excerto, para aqueles malais teóricos do poder popular que em Timor só falam com as elites e cujo contacto com o povo se limita a “Mana, kafé ida, mas tem que ser curto, escaldado e bem tirado!”.

Como sabemos, o processo histórico a que chamamos colonialismo tem muitos aspectos. Os políticos mencionam muitas vezes os aspectos maus ou negativos do colonialismo, como a ocupação de uma nação por outra, e o espezinhamento dos seus habitantes para sugar todos os recursos e riquezas dessa terra. Mas as pessoas inteligentes também reconhecem aspectos bons ou positivos do colonialismo, principalmente ao nível das trocas culturais. Os contactos com gente de outras terras permitiram também às populações autóctones aprenderem muitas coisas, não apenas melhorando a sua tecnologia, mas dando-lhes também oportunidade de alargar os seus horizontes intelectuais e culturais.
Através do colonialismo português em Timor, bem como do colonialismo holandês na Indonésia, os habitantes do Arquipélago Malaio entraram em contacto com a cultura europeia e com a ciência internacional. A língua tétum e a língua malaia receberam do português e do holandês milhares de termos técnicos, abstractos e modernos. Por isso, o malaio e o tétum tiveram sorte em poderam partilhar riquezas intelectuais importantes que se espalharam da Europa para o mundo inteiro.
” [o sublinhado é meu].

Em relação ao outro assunto, a ideia de ter algumas escolas de qualidade para formar elites não é obviamente minha, é muito antiga. Penso que a educação devia chegar a todos, mas não construo castelos no ar, porque vivo no Timor real. Ainda anteontem em Liquiçá um professor do ensino pré-secundário (7º ao 9º ano) me dizia que não tinham professores suficientes na escola dele para ensinar em português (apesar de serem essas as instruções oficiais) e que os poucos que tinha havido eram de lorosa’e e tinham fugido para as suas regiões de origem com medo de ataques. De resto, a Dona “margarida” [a tal senhora que me fez as acusações], se morar agora em Díli, ou vier a morar, vai pôr os seus filhos na Escola Portuguesa (para elites) ou continuará adepta de uma educação igual para toda a gente e de maneira coerente matriculará as suas crianças numa escola como a 28 de Novembro? E dou o exemplo da Escola 28 de Novembro por duas razões: 1) tem um nome revolucionário; 2) os seus filhos poderão talvez, com sorte, vir a ter a oportunidade de ver as massas populares em acção, e participar até nos acontecimentos, já que essa escola tem no seu palmarés ter sido o ponto de partida dos motins infanto-juvenis de 4 de Dezembro de 2002. Agora sem ironia, não há nada que distinga especialmente esta escola, e os jovens delinquentes pirómanos poderiam ter surgido de outra qualquer, como mostra a última vaga de incêndios nestes meses recentes. Timor tem uma percentagem muitíssimo grande da população constituída por crianças e jovens, que na maioria vão para a escola sem outra perspectiva que não seja vir a conseguir um “padrinho” que arranje um lugar na função pública ou então um emprego como “segurança”, eufemismo local para indivíduos contratados para dormir em frente à porta dos malais e endinheirados. Quase não há sector privado, faltam cá ainda “capitalistas”, “burgueses” e outros “inimigos das classes populares” que possam finalmente dinamizar a economia e arranjar mercado de trabalho para esta malta toda, recrutando mão-de-obra usando como critério o mérito individual do candidato. Há demasiados jovens cuja única forma de sobressair perante os seus pares é “armarem-se em galo de combate”.
Existem por outro lado muitos malais internacionalistas que ganham muito, compram nos supermercados produtos importados (até a hortaliça que comem vem da Austrália), mandam a maior do dinheiro que ganham para as suas contas bancárias nos países de origem, e são paladinos do poder popular e do anti-neo-colonialismo!
O corpo docente das escolas timorenses tem pouca formação, há grande falta de livros, a maior parte das pessoas fala ou compreende pelo menos algum português mas não o suficiente para ler nessa língua, os hábitos de leitura são de resto quase inexistentes, em qualquer idioma... O aluno médio termina a escola secundária com uma deficiente preparação de base que não lhe permite frequentar as universidades portuguesas, por exemplo. Por isso é que me parece não apenas importante, mas crucial, para o futuro do país que surjam algumas escolas de qualidade superior para a formação dos quadros que irão tomar conta do país daqui por uns anos. Neste momento há demasiadas instituições e estruturas do Estado que dependem ainda do trabalho de assessores internacionais para funcionarem, se não tivermos algumas escolas de excelência estaremos pior daqui por vinte anos.
Para as pessoas que andam à procura de cartões partidários para decidir se uma ideia é válida ou não, permito-me invocar aqui uma personalidade que certamente não irão atacar. Conheci na Guiné-Bissau quadros guineenses que deviam a sua educação e o seu sucesso como intelectuais aos esforços de Amílcar Cabral, que, há mais de três décadas, andava às vezes pelas tabancas da Guiné a procurar crianças com melhores resultados escolares para pedir aos pais delas que o deixassem mandá-las para uma escola-piloto numa base do seu movimento na Guiné-Conacri, para serem formadas e poderem servir no futuro o seu país. Alguns desses quadros eram provenientes de famílias muito humildes de camponeses ou vaqueiros (os seus irmãos continuam ainda a viver nas tabancas dos antepassados) e nunca teriam podido explorar todo o seu potencial se não tivessem tido a oportunidade de entrar numa escola de qualidade.
Não vão ser as massas de camponeses analfabetos que irão tomar conta das universidades, dos ministérios, dos bancos, das empresas, das companhias de telecomunicações, electricidade, água... Também não vão poder ser muitos dos alunos que actualmente chegam ao ensino superior em Timor. Há que deixar de ter medo das palavras, o país precisa de elites, de indivíduos bem formados – por muito que isso seja difícil de perceber para uns quantos líricos teóricos do poder das massas populares que andam por aí. No romance “Mayombe”, do escritor angolano Pepetela, há um personagem, chamado Mundo Novo, que também defende esse tipo de ideias. Diz ele:

“(...) Como se fosse possível fazer-se uma Revolução só com homens interesseiros, egoístas! Eu não sou egoísta, o marxismo-leninismo mostrou-me que o homem como indivíduo não é nada, só as massas constroem a história. Se fosse egoísta, agora estaria na Europa, como tantos outros, trabalhando e ganhando bem. Porque vim lutar? Porque sou desinteressado. Os operários e os camponeses são desinteressados, são a vanguarda do povo, vanguarda pura, que não transporta com ela o pecado original da burguesia de que os intelectuais só muito dificilmente se podem libertar. Eu libertei-me, graças ao marxismo.(...)”.

Na época os “intelectuais revolucionários desinteressados” tinham que abdicar dos empregos bem pagos na Europa, felizmente agora para os “malais desinteressados adeptos do poder das massas” existem ajudas de custo, e bar do Hotel Timor, e salários milionários na ONU ou na cooperação bilateral, e viagens a Auckland, Hong Kong, Bali, etc... Eu ganho mais do que a maior parte dos timorenses (e menos do que a grande maioria dos malais), mas não sou hipócrita. Enfim, na sequência das reflexões e debates no livro há um outro personagem, Sem Medo, que mais à frente diz:

“(...) É que, nos nossos países, tudo repousa num núcleo restrito, porque há falta de quadros, por vezes num só homem. Como contestar no interior dum grupo restrito? Porque é demagogia dizer que o proletariado tomará o poder. Quem toma o poder é um pequeno grupo de homens, na melhor das hipóteses, representando o proletariado ou querendo representá-lo. A mentira começa quando se diz que o proletariado tomou o poder. Para fazer parte da equipa dirigente, é preciso ter uma razoável formação política e cultural. O operário que a isso acede passou muitos anos ou na organização ou estudando. Deixa de ser proletário, é um intelectual. Mas nós todos temos medo de chamar as coisas pelos seus nomes e, sobretudo, esse nome de intelectual. Tu, Comissário, és um camponês? Porque o teu pai foi camponês, tu és camponês? Estudaste um pouco, leste muito, há anos que fazes um trabalho político, és um camponês? Não, és um intelectual. Negá-lo é demagogia, é populismo. (...) Mas começa-se a mentir ao povo, o qual bem vê que não controla nada o Partido nem o Estado e é o princípio da desconfiança, à qual se sucederá a desmobilização. (...) Como todos os do teu grupo, pensas que se não pode dizer a verdade ao povo, senão ele desmobiliza-se.(...)”

Sou da opinião que – enquanto o português não é dominado por muitos alunos – o romance de Pepetela “A geração da utopia” devia ser traduzido para tétum e tornado leitura obrigatória nas escolas todas do país.