domingo, maio 28, 2006

Se deixássemos de conseguir rir deixaríamos de ser humanos

Uma vez li um livro sobre o campo de Extermínio de Treblinka, escrito por um judeu. O campo de Treblinka era um campo construído pelos nazis na II Guerra Mundial, que funcionava como fábrica cujo objectivo era exterminar judeus. Faziam-no metodicamente, friamente, com eficiência (na II Guerra Mundial os nazis mataram cerca de seis milhões de judeus). No campo funcionava uma brigada de prisioneiros judeus cuja tarefa era transportar diariamente pilhas de cadáveres das câmaras de gás para os fornos crematórios, esses prisioneiros viviam em condições sub-humanas e sabiam que só estariam vivos enquanto tivessem forças para desempenhar a sua tarefa macabra. Fiquei impressionado por ler que nessas condições de vida terríveis eles contavam anedotas e brincavam sobre coisas como o peso dos cadáveres que transportavam. Depois compreendi, eles riam para continuarem humanos. Despojados de quase tudo, restavam-lhes como últimos resquícios de humanidade a esperança e o riso.
Vem isto a propósito de um incidente que me aconteceu hoje. Fui beber um café no Hotel Timor, ao lado do Bairro da Cooperação, e quando cheguei estava prestes a começar uma conferência de imprensa do Primeiro Ministro. Aproximei-me de uma amiga que comentou que o início da conferência de imprensa estava com algum atraso e eu respondi casualmente algo do género “O Primeiro Ministro ainda se deve estar a pôr bonito”. Foi um comentário completamente inocente, sem quaiquer segundas intenções, sem qualquer tom malicioso, mas uma senhora timorense que estava ali ao lado – sem dúvida perturbada pela tensão dos últimos dias – respondeu com um ar muito indignado qualquer coisa como “Não lhe admito que fale assim do Primeiro Ministro do meu país, eu também não falo assim do Primeiro Ministro do deu país”. É sabido o cuidado que o Primeiro Ministro português José Sócrates tem com a imagem (pagando até a assessores que aconselham sobre isso), pelo que um comentário desse género até lhe serviria como uma luva. Acabei por conseguir explicar à senhora que não tinha qualquer intenção de desrespeitá-la, nem desrespeitar Timor, nem desrespeitar os líderes do país, e ela aceitou as minhas desculpas por tê-la ofendido sem intenção.
Mas desse incidente sem importância pode compreender-se algo da situação actual do país, de como toda a gente anda uma pilha de nervos, da intolerância que grassa no ar, e também de como qualquer pequena faiscazinha pode despoletar situações graves. Há bandos de jovens armados com catanas, fisgas e paus, que andam de um lado para o outro, uns a deambular em busca de casas para roubar ou pessoas nascidas numa área geográfica diferente a quem bater, outros a patrulhar os seus bairros para se protegerem dos assaltantes. Não é preciso muito para que haja situações de violência. Os bandidos da cidade aproveitam para roubar o que podem. As tropas australianas já se vêem pela cidade, usando também blindados e helicópteros, mas não se fazem ainda patrulhas suficientes para sossegar completamente a população. Aguarda-se com ansiedade a chegada dos GNR, mais vocacionados para dispensar e deter bandos de malfeitores e ladrões como os que actuam pela cidade neste momento. Muita da população está refugiada em sítios como o aeroporto, recintos junto de Embaixadas, o porto, lugares da Igreja...Eu vou-me casar dentro de dias com uma moça timorense, aguardo o evoluir da situação para saber se vou fazer uma festa que dure toda a noite como é tradição em Timor ou se vou casar semi-clandestinamente com disparos como música de fundo. Já aluguei uma casa para morar com a minha mulher depois do casamento, e já me mudei para lá e levei para lá quase todos os meus pertences há umas duas semanas, mas nas últimas duas noites voltei a vir dormir ao meu quarto no Bairro da Cooperação por causa da insegurança em Díli. Agora a rotina diária inclui comprar cartões de telemóvel para telefonar a perguntar se ainda não me queimaram a casa, e para saber se os muitos amigos espalhados pela cidade, nas suas casas ou refugiados em diversos sítios (protegidos pelos australianos ou pertencentes à Igreja), estão todos bem.
Na quinta-feira antes de rebentar o tiroteio entre as FDTL e a PNTL no centro da cidade, estive na Faculdade às oito da manhã porque tinha uma aula combinada com os meus alunos. Estava lá uma dúzia deles, moços e moças. Não dei matéria, estivemos a conversar sobre a situação. Alguns tinham dormido na montanha devido aos ataques aos seus bairros e tinham vindo de longe, a pé, para as aulas, porque ter aulas ajudava a ter uma sensação de normalidade, de que ainda não estava tudo perdido. Conversámos amenamente em tétum, alguns contavam anedotas sobre as aventuras e desventuras que lhes tinham acontecido a fugir das milícias em 1999, outros gozavam com o seu próprio medo em situações perigosas que lhes tinham acontecido nos últimos dias. Mostravam um sentido de humor saudável, ao contrário da senhora do hotel. Ríamos e havia nisso um efeito de catarse, e tínhamos esperança.
Hoje de manhã, às 8 horas, tinha um exame marcado com eles. A Faculdade é aqui perto, fui lá para pôr um papel afixado na porta a dizer que o exame fica adiado para quando a situação estiver mais calma, escrevi no papel que talvez na próxima semana. Temia que houvesse alunos a aparecer para o exame e não me sentia bem por lhes gorar as expectativas sem sequer uma palavra. Havia de facto um estudante à minha espera. Enquanto conversávamos apareceu um grupo de uns vinte rapazes, todos com catanas (um trazia duas!), fisgas e paus, falando macassai entre si, alguns não teriam mais de 15 ou 16 anos. Tinham o ar de procurar casas para roubar ou incendiar, ou gente a quem bater. Não nos incomodaram, mas o moço ficou assustado. Ele é de uma região do ocidente. Acabou por me pedir que o levasse a casa, em Bebono, na minha motorizada. Fi-lo, era por causa do meu exame que ele ali estava, tinha-se arriscado corajosamente para vir fazer a prova, se lhe acontecesse alguma coisa no regresso eu ficaria com isso na consciência. No percurso pela marginal vi mesmo à minha frente dois rufias com facas a derrubarem um indivíduo de uma motorizada e a roubá-la.
Tenho ficado aqui pelo Bairro da Cooperação e Hotel Timor depois disso, se cada um de nós decidisse andar a passear por aí pela cidade isso daria um monte de trabalho extra aos senhores que andam a zelar pela nossa segurança, que têm coisas mais importantes para fazer do que servir de babysitters a “Indiana Jones de fim-de-semana” como nós. E isto leva-me de volta ao tema do humor. Todos nós fazemos figuras ridículas de vez em quando, nos últimos dias talvez com maior frequência do que o habitual. Não ter informação credível que nos permita compreender correctamente quem são “os maus” e quem são “os bons”, ou o porquê de haver timorenses activamente empenhados em destruir o país e a liberdade que foi conquistada com tanto sofrimento, leva-nos a procurar avidamente cada nova informaçãozinha e por vezes a ser inadvertidamente porta-vozes dos boatos mais mirabolantes, ou de uma das quinhentas teorias da conspiração que tentam encontrar algum sentido em tudo isto.
Independentemente de todas estas considerações parece-me que há duas coisas em que este país deveria investir: educação para a tolerância e sentido de humor. E ambas estão ligadas. Não é que não exista sentido de humor, os meus alunos que gozavam com o seu próprio medo têm-no bem apurado, mas faz falta aqui um programa televisivo como o “Contra Informação” da televisão portuguesa, no qual se usam bonecos que são caricaturas dos líderes de Portugal e onde estes são gozados pelas suas atitudes, decisões e tiques. Um líder político democrático, de qualquer país, tem muito a ganhar se o seu povo compreender que um dirigente político não tem natureza divina e portanto “pode invocar-se o nome dele em vão”. Este é um dos tijolos base da democracia. Isto promove a tolerância também. E Timor-Leste é ainda um país muito intolerante. Vivo aqui há cinco anos, e há cinco anos que ouço diariamente nos táxis, nas ruas, nas lojas, timorenses que criticam o facto de um país católico ter um Primeiro Ministro muçulmano. Aproveito sempre para dar um sermão sobre a tolerância (os meus alunos já ouviram esse sermão milhentas vezes), religiosa e não-religiosa, digo-lhes que os cidadãos devem esforçar-se por avaliar o desempenho dos seus líderes políticos pelas decisões que estes tomam, pelas políticas que seguem, e nunca pela religião que têm ou não têm. Muitos timorenses ficavam espantadíssimos por me ouvirem dizer que Presidentes da República portugueses como Mário Soares e Jorge Sampaio não eram católicos.
Mas os meus alunos sabem rir de si mesmos e isso deixa-me feliz. Amo esta terra e caminho de olhos postos no futuro, procurando também saber rir de mim mesmo, e rir da vida, que às vezes “é madrasta”. E mantenho a esperança.

Díli, 27 de Maio de 2006, 20.00h

5 comentários:

Anónimo disse...

As noticias não são simpáticas, de facto... mas acredito que tudo vai acabar em bem...
O que realmente me chocou foi a notícia do casamento!!!????????

de qualquer maneira sê feliz.

Susana

Anónimo disse...

ola espero que esse casamento com uma timorense seja bonito e feliz com uma grande festa. fui militar em timor no ano de 1964 a 1968.timor fikou no meu pensamento durante estes anos a sua independensia foi festejada em minha casa em frente ao televisor ~força na sua caminhada para ensinar esses jovens. luis marques .... costa de caparica

Anónimo disse...

ola faço votos que esse casamento seja muito animado e com votos de felicidades,com marcha nupsial e tudo. fui militar em timor noa ano de 1964 a 1968 estevive em dili mas tambem estive em basar tete onde ensinava as crianças na escola militarainda hoje me lembro desses jovens força e em 5 anos deve falar muito bem o tetun hahahah diak kalae ate uma proxima .... luis marques ...... costa de caparica

Anónimo disse...

Meu caro JP,
nao te preocupes muito com a maluca que fez o escandalo no Hotel Timor (eu vi), porque eu conheco-a e ela eh tao timorense como portuguesa, e quando estava em Portugal nao era nada meiga a mandar bocas sobre os lideres politicos portugueses. E ela eh meia louca, de vez em quando da-lhe para comecar a barafustar ah toa como uma demente...

João Paulo Esperança disse...

Sim, eu percebi que a senhora ou era ou estava mentalmente perturbada, por isso tratei de "por ägua fria na fervura" para ela parar com o escandalo. Eu nao gosto de "peixeiradas", e menos ainda em lugares publicos.