quarta-feira, janeiro 11, 2006

Resistência e identidade

Texto de Daniel Tércio, publicado no jornal português "Expresso" (Caderno "Actual"), Edição 1732, de 07.01.2006
A CULTURA DA INDEPENDÊNCIA

Língua e identidade cultural em Timor-Leste

O viajante que se detiver na frente da baía de Díli pode disfrutar de uma paisagem magnífica: na direcção do mar, Ataúro, a ilha que interrrompe o horizonte; na direcção oposta, o Palácio do Governo, branco e regular, com o seu jardim fechado ao público, onde existe um pequeno monumento de homenagem ao Infante Dom Henrique (uma espécie de réplica tímida do Padrão dos Descobrimentos em Lisboa).
Hoje, se se sentar alguns minutos sobre o murete da baía, o viajante terá certamente a companhia de um timorense que se aproximará com um sorriso, ensaiando algumas palavras em português. A maior parte das vezes, o timorense esperará que seja o estrangeiro (o “malai”) a falar. Para o “malai”, habituado a evitar os silêncios e os vazios, isto nem sempre será confortável.
Aqui, em Timor Lorosa’e, a língua flui de uma outra maneira, porventura com uma outra lógica, mesmo entre os mais velhos, entre aqueles que a aprenderam antes de 1974 no banco das escolas do regime colonial português. Com efeito, ainda que adoptada como uma das línguas oficiais do novo Estado (o mais jovem país do século XXI), a língua portuguesa continua a ser uma língua estrangeira. Sendo a língua do “outro”, o português é a fala de um outro especial, não do australiano ou do javanês, mas sim de alguém que veio do lado de lá do mundo e a quem muitos timorenses responsabilizam por um certo abandono precipitado em 75. Mas esta língua do “outro”, que é a nossa, tem surpreendentes semelhanças lexicais com o tétum, a primeira língua oficial, falada por 80% da população da jovem República Democrática de Timor-Leste.
O ambiente linguístico - indispensável para traçar o quadro da cultura timorense - afigura-se pois complexo. A respectiva complexidade aumenta quando se sabe que neste território, com cerca de 15000 km2, coexistem pelo menos dezasseis línguas diferentes. O tétum é uma delas, dividindo-se esta em tétum praça (que funciona como língua franca) e tétum téric (mais falado na montanha); além do tétum, fala-se também, por exemplo, o macassai (em Baucau), o mambai (na região montanhosa do centro), o fataluco (na ponta leste da ilha) e o baiqueno (no enclave de Oecussi). Quanto à língua indonésia, imposta brutalmente durante um quarto de século, ela perdura coloquialmente entre uma boa parte da juventude, atraída por uma cultura pop de origem javaneza, e contaminando lexicalmente o tétum praça. Ao mesmo tempo, as empresas com origem australiana aqui instaladas exigem o domínio do inglês ao timorense em busca de trabalho. Resta dizer que a noção de emprego (e por extensão, a noção económica de taxa de desemprego) não se aplica facilmente à situação de Timor. É possível que o trabalho, enquanto processo sistemático de transformação do mundo e de organização social, indispensável para obter regularmente um salário individual, seja um conceito ainda relativamente estranho na cultura timorense; mais de metade da população deste jovem país tem menos de 15 anos de idade, o que certamente ajuda a compreender a relação do timorense com o trabalho sistemático. Um outro aspecto importante para estabelecer o quadro cultural tem a ver com a omnipresença da natureza, uma natureza longe do estado domesticado dos países ocidentais, base de um fundo animista muito forte, que a Igreja Católica não conseguiu anular, não obstante o papel fundamental que tem tido na organização e na fixação dos valores morais da sociedade.
Para a jovem República de Timor-Leste, a escolha do português e do tétum como línguas oficiais constitui certamente uma opção política, um manifesto de independência face aos dois gigantescos Estados vizinhos – opção oficialmente consignada, mas porventura ainda sem um desfecho claro a médio e a longo prazo. Para Portugal e para o conjunto de países de língua oficial portuguesa, a opção é honrosa, porventura interessante no teatro da geopolítica – na medida em que fixa a presença do português no sudeste asiático - mas também inevitavelmente dispendiosa.
O esforço, tanto dos países da CPLP, incluindo Portugal, quanto do jovem Estado timorense, passa por fazer deslocar a língua portuguesa de uma língua do “outro”, do “malai”, para uma língua nossa. Como fazê-lo?
Os governantes que discursaram em frente ao Palácio do Governo, por ocasião da comemoração da Independência nacional, no dia 28 de Novembro, falaram em português para uma população mais interessada nos desfiles das forças militares e das “majoretes” do que propriamente no conteúdo dos discursos.
Ao mesmo tempo, um acontecimento como a Feira do Livro português, organizado pela Embaixada Portuguesa e pelo Centro Cultural Camões, com o apoio logístico de estudantes voluntários da Universidade Nacional de Timor Lorosa’e, constituiu um verdadeiro êxito. Se a colaboração das editoras portuguesas poderia e deveria ter sido mais ampliada, se os autores timorenses como Luís Cardoso e Fernando Sylvan deveriam ter as respectivas obras presentes (o que inexplicavelmente não aconteceu), os preços acessíveis das obras e a preferência concedida aos autóctones na compra dos livros possibilitaram uma interessante proximidade; proximidade que de algum modo se desenrolou também com o programa de visitas a escolas e de conferências proferidas pelos autores lusófonos convidados.
Um dos momentos altos da Feira do Livro aconteceu com o lançamento da obra do historiador José Mattoso (residente em Timor desde o ano 2000), “A Dignidade. Konis Santana e a Resistência timorense”. A obra, publicada pelo Círculo de Leitores em colaboração com a Fundação Mário Soares, constitui, a par com a abertura do Museu da Resistência, uma contribuição decisiva para a História recente do jovem país. Uma das questões mais interessantes, de resto colocada na sessão de lançamento do livro, tanto pelo autor, quanto pelo Presidente Xanana Gusmão, diz respeito à consciência da identidade nacional e ao modo como esta ganhou corpo durante a ocupação indonésia. Com efeito, é possível que a ocupação indonésia tenha jogado a favor da unificação dos antigos reinos (que passaram de uma rivalidade agressiva para a unidade contra o inimigo comum javanês); em consequência, as diferenças linguísticas tornaram-se secundárias e uma nova consciência de pátria emergiu, uma consciência apoiada num forte sentido de civilidade e de dignidade.
A questão linguística continua, porém, uma questão em aberto, que está longe de se resolver com eventos como a Feira do Livro português. Nesta matéria, pelas rotinas que proporcionam, é fundamental o papel que as Bibliotecas e as salas de leitura podem ter no mapa cultural de Timor e no processo de disseminação do português. A Biblioteca do Centro Cultural português, a Biblioteca do Instituto Camões, ou a Sala de Leitura Xanana Gusmão, instaladas em Díli, são diariamente frequentadas por dezenas de jovens que lêem sobretudo a imprensa portuguesa, por vezes com um mês de atraso; fora de Díli, surgem iniciativas verdadeiramente heróicas, como a pequena biblioteca de Manatuto, criada pelo professor Carlos Reis com o apoio das autoridades locais. Para além das bibliotecas, existem em Díli associações culturais e desportivas, que funcionam também como veículo do português. Assim acontece com o Centro Juvenil Padre António Vieira, sediado no bairro Taibesse, actualmente dirigido pela timorense Rosalina Dias.
Além disto está em curso uma importante investigação linguística sobre o tétum e sobre as respectivas relações com o português; 27000 termos constam do prontuário de língua tétum, sendo uma parte substancial de base lexical portuguesa. O Instituto Nacional de Linguística, dirigido pelo Reitor da UNTL, Benjamim de Araújo e Corte-Real, desenvolve a sua acção neste domínio. A instituição, que conta com o apoio oficial do Governo timorense, tem, entre outras, a vantagem de promover o trabalho de equipa, congregando esforços de investigadores como o australiano Geofrey Hull, uma autoridade internacionalmente reconhecida na padronização e fixação escrita da língua autóctone. Neste momento, prepara-se a edição de um dicionário monolingue e acaba de sair uma gramática de tétum escrita em tétum.
Uma outra organização, com o estatuto de ONG, a “Timor Aid”, dirigida por Maria do Céu Lopes, tem tido o papel pioneiro de editar obras em tétum, que faz distribuir pelas escolas dos Distritos. Na verdade, um dos problemas mais complexos passa pela circulação dos bens culturais; com efeito, além da escassez de materiais escritos, avolumam-se dificuldades efectivas e físicas nos indispensáveis meios de comunicação. A produção de conteúdos, em português e em tétum, deverá ser adaptada às condições efectivas no terreno: rede telefónica parcelar, internet incipiente e genericamente com uma baixa largura de banda e más (ou péssimas) estradas. Obras bilingues como “O que é a Lusofonia. Gente, culturas, terras”, preparada por um conjunto de jovens portugueses e timorenses e recentemente editada pelo Instituto Camões, constituem iniciativas meritórias que podem e devem estimular o aparecimento de outras publicações. Neste âmbito, é fundamental por exemplo que a presença da cooperação portuguesa amplie o seu conhecimento das línguas autóctones. João Paulo Esperança, docente no Departamento de Língua Portuguesa da UNTL, especialista em linguística do tétum, colaborador na imprensa local, ou Selma Silva, professora na Escola portuguesa e autora do programa “ondas Lusófonas” na Rádio e Televisão de Timor-Leste, são bons exemplos de um domínio partilhado de ambas as línguas. Já a edição de um periódico como o “Semanário”, publicado em Díli, necessita urgentemente de uma revisão cuidadosa de textos.
Sem dúvida que a identidade cultural de Timor-Leste passa em grande medida por uma independência linguística na região do sudeste asiático, o que explica a opção do português e do tétum como línguas oficiais deste jovem país. Ao mesmo tempo, a cultura da independência, forjada durante os anos da resistência, terá finalmente que respeitar as singularidades de um território surpreendentemente diverso. A cultura timorense é pois, de forma mais nítida do que em outros lugares, um processo, uma missão, um esforço que decorre entre o estado de “Babel” do território e a consciência de identidade nacional.

Daniel Tércio

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