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hanoin oin-oin
Um blog em português - e de vez em quando em tétum e em tocodede - sobre os devaneios de um professor e tradutor ilhavense a morar em Timor. Sobre temas timorenses e do Oriente em geral, e sobre outras coisas de vez em quando...
terça-feira, fevereiro 14, 2017
sexta-feira, setembro 25, 2015
Refugiados e emigrantes (ou imigrantes, dependendo do ponto de vista)
Na década de 70 os portugueses que fugiram, na maioria com pouco mais do que a roupa no corpo, das ex-colónias em África eram refugiados com medo da guerra civil ou de regimes ditatoriais marxistas de partido único em que não se sentiam seguros. Chamaram-lhes "retornados", mas havia muitos que eram africanos, tinham lá nascido, e não estavam a "retornar" coisa nenhuma.
Os portugueses que iam em massa para a França, para a Alemanha, e para outras paragens, já antes do 25 de Abril (hoje estão a ir outra vez!), eram na maioria emigrantes, muitos clandestinos. Juntavam algum dinheiro para a viagem e iam tentar a sorte, procurando ganhar a vida em lugares onde se vivesse melhor. Esses eram os que se ficassem em Portugal não corriam à partida grande risco de serem assassinados ou torturados (também havia os que fugiam à tropa e à guerra colonial, mas muitos partiam - clandestinos ou não - já depois de terem feito a tropa e andado na guerra).
Os timorenses que fugiram para Atambua em 1975, quando as forças políticas a que estavam ligados perderam a guerra civil, eram refugiados. Fugiam com medo de serem torturados ou mortos.
As famílias timorenses de que ao longo da década de 90 costumávamos ir despedir-nos ao aeroporto da Portela, quando arrancavam para a Austrália, eram emigrantes - não corriam qualquer perigo em Portugal, mas iam tentar a vida num país com um nível de vida melhor.
Os milhares de timorenses-portugueses, portadores de passaporte português, que continuam a ir para a Inglaterra e Irlanda do Norte também são emigrantes. Ninguém os persegue aqui, partem por razões económicas.
Os timorenses que, acossados pelos militares indonésios e pelas milícias, se abrigaram no recinto da UNAMET em 99, e foram depois evacuados para a Austrália, eram refugiados. Os milhares e milhares que os tentaras e as milícias levaram para Atambua à força após o resultado do referendo ser anunciado eram uma espécie de reféns - quase todos estavam aterrorizados, mas o terror deles era causado precisamente pelos que os levaram para lá.
Os portugueses que iam em massa para a França, para a Alemanha, e para outras paragens, já antes do 25 de Abril (hoje estão a ir outra vez!), eram na maioria emigrantes, muitos clandestinos. Juntavam algum dinheiro para a viagem e iam tentar a sorte, procurando ganhar a vida em lugares onde se vivesse melhor. Esses eram os que se ficassem em Portugal não corriam à partida grande risco de serem assassinados ou torturados (também havia os que fugiam à tropa e à guerra colonial, mas muitos partiam - clandestinos ou não - já depois de terem feito a tropa e andado na guerra).
Os timorenses que fugiram para Atambua em 1975, quando as forças políticas a que estavam ligados perderam a guerra civil, eram refugiados. Fugiam com medo de serem torturados ou mortos.
As famílias timorenses de que ao longo da década de 90 costumávamos ir despedir-nos ao aeroporto da Portela, quando arrancavam para a Austrália, eram emigrantes - não corriam qualquer perigo em Portugal, mas iam tentar a vida num país com um nível de vida melhor.
Os milhares de timorenses-portugueses, portadores de passaporte português, que continuam a ir para a Inglaterra e Irlanda do Norte também são emigrantes. Ninguém os persegue aqui, partem por razões económicas.
Os timorenses que, acossados pelos militares indonésios e pelas milícias, se abrigaram no recinto da UNAMET em 99, e foram depois evacuados para a Austrália, eram refugiados. Os milhares e milhares que os tentaras e as milícias levaram para Atambua à força após o resultado do referendo ser anunciado eram uma espécie de reféns - quase todos estavam aterrorizados, mas o terror deles era causado precisamente pelos que os levaram para lá.
A distinção entre refugiados e emigrantes clandestinos é importante. Dizia-se há umas décadas que havia um milhão de portugueses na França, não se podia esperar que o Estado francês lhes desse a todos os apoios que se devem dar aos refugiados, mas podia-se fazer campanha pela concessão do estatuto de refugiado àqueles que fugiam para lá para não serem presos pelas suas atividades políticas contra a ditadura em Portugal.
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quarta-feira, agosto 05, 2015
A espera
A data prevista está ultrapassada. Vamos à consulta já com a
tralha toda no carro, para o caso de ser necessário ficar já internada. É de
facto assim, e dirigimo-nos então para a maternidade, na outra ponta do
hospital. A Mana Di vai depois lá ter. De ambos os lados da sala de partos, a
todo o comprimento, há divisões, feitas com cortinas, onde acontecem os partos,
com duas parturientes por divisão. Eu fico fora da sala de partos, os homens não
podem permanecer, só podem entrar e sair, para verem o seu filho e mulher
depois do nascimento. As parturientes levam uma familiar ou amiga para as
acompanhar durante a sua provação. Cá fora famílias sentam-se no relvado, como
nos piqueniques do 1º de maio da minha infância, mas aqui não há risadas e animação.
As mulheres sentam-se juntas, falam em sussurros com o ar entendido de
veteranas, com o respeito solidário de quem já lutou muitas batalhas, algumas
terão talvez já perdido algumas. Os homens, de aspeto esgazeado, ficam na
maioria calados. Há um grupo de militares das FDTL, vários de camuflado, outros
à paisana, provavelmente um terá a mulher lá dentro e os restantes fazem
companhia ao camarada. Os homens, em geral, parecem perdidos ali, soldados de
retaguarda que da janela do seu escritório veem partir para uma incursão perigosa
atrás das linhas inimigas um pelotão de tropas especiais, admirando de longe com
apreensão um tipo de heroísmo que lhes está vedado. É só para mulheres, que são
o sexo forte. Há uma estátua da Nossa Senhora de Fátima no hall de entrada, de
vez em quando vai alguém lá que lhe toca e se persigna, em oração silenciosa. De
resto, independentemente das religiões ou falta delas, todos compreendem
intuitivamente que aqui é território sagrado, um espaço onde é mais fina a
linha que divide a vida da tragédia. Timor-Leste conseguiu progressos
importantes nos últimos anos nesta área, mas ainda é altíssima a taxa de
mortalidade de mães e bebés. Só as crianças que por ali brincam permanecem
alheadas do drama – a maravilhosa inocência da infância.
Há um telheiro cá fora, à porta da maternidade, com
bastantes cadeiras, é a sala de espera. Tento concentrar-me nos passarinhos que
cantam nas árvores que rodeiam o edifício e ignorar os lamentos de dor que
chegam lá de dentro e os gritos estridentes de um grupo de equivalentes
indonésios do João Paião na televisão da sala de espera. Vejo famílias que partem,
passam com um recém-nascido nos braços, as suas trouxas e um balde (que pode
ter roupas sujas, ou a placenta para enterrar ou pendurar numa árvore, conforme
os costumes). A mulher combalida, de sorriso cansado, anda devagar. Em muitos
casos, as suas provações não terminaram. A tradição manda que a mulher que deu
à luz seja escaldada frequentemente no corpo com água quentíssima e que não
lave a cabeça durante quarenta dias, sofrendo estoicamente a caspa e a gordura
e os piolhos. Para boa parte das famílias a tradição ainda é o que era.
De vez em quando uma maca de rodas transportando uma mulher
sai da maternidade e entra pelos corredores resguardados com telheiros que, por
entre as zonas de relva, levam a outros edifícios. Creio que vão para as
cesarianas, realizadas noutro local. Um jardineiro desenrolou uma mangueira que
atravessa o primeiro destes corredores e todas as macas têm de dar um saltinho à
força de braços.
Minutos depois das duas da tarde, a Mana Di vem-me chamar. A
minha filha nasceu. Ela e a mãe estão bem. Correu tudo bem, parto normal como os dois mais velhos, por baixo do seu ar pequenino e meigo a minha mulher é uma Super-Mulher discreta. Agora já posso entrar. Vou pegar na
minha menina ao colo, falar com a minha mulher. O alívio e a felicidade
misturam-se, é como se me tirassem um peso de cima. Entretanto é preciso sair
dali, há outra senhora no mesmo cubículo à espera de dar à luz, fico a aguardar
no hall que elas sejam transferidas para um dos quartos de permanência
pós-parto.
Enquanto por ali espero, um segurança aparece a berrar lá
fora por um altifalante que a hora da visita já acabou. A sério! Com um
altifalante! Com apenas uma parede a separá-lo de umas duas dúzias de mulheres
em pleno trabalho de parto! Repetiu a sua cantilena sem parar durante uns dez
minutos: “a visita já acabou, as pessoas que vieram de visita têm que
desaparecer da sala de espera, há gente que anda aqui a fumar, até há mulheres
que andam aqui a fumar, a visita já acabou, etc, etc.”
No quarto do pós-parto o ambiente é muito mais descontraído.
Mães e parentes conversam comparando experiências, umas tiveram uma boa hora,
outras tiveram uma hora não tão boa, mas o pior já passou. A Fernanda e a
Cármina dormem lá a primeira noite, acompanhadas pela Mana Di. No dia seguinte
de manhã ainda tenho oportunidade de ouvir, da porta, parte do sermão da
profissional de saúde que prega – sabendo que em muitos casos é em vão – contra
os aspetos mais nefastos da tradição, dando bons conselhos às mães. A minha
mulher e filha têm alta pelas dez da manhã.
É a nossa vez de partir, fazendo o cortejo feliz de
celebração da vida.
quinta-feira, maio 07, 2015
Um comentário sobre a variedade timorense da língua portuguesa
Acabo de ler um texto que falava sobre as possibilidades de desenvolvimento de uma norma própria para a variedade timorense da língua de Luís Cardoso, Jorge Amado e Saramago. Acho que, mesmo nos PALOP, a afirmação de uma norma própria não é tão pacífica como às vezes se pensa... Parece-me que Moçambique é onde foram dados mais passos nessa direção. Há recetividade em relação à incorporação de itens lexicais específicos de cada um dos países, mas muito mais reticências em relação a outros aspetos. Aqui alguns dos traços da variedade timorense do português que eu observava quando cheguei, em 2001, mantém-se. Por exemplo, construções do tipo "Escreve ainda" (transferência do "Hakerek lai") são quase omnipresentes nas várias gerações de falantes, incluindo as crianças, e parece-me que estão cá para ficar. Uma frase como "Deixa ele comer ainda" já me parece menos estável, porque pode ser simplesmente uma realização própria de interlíngua substituída por "Deixa-o comer ainda" quando o falante tiver um domínio melhor da língua. No léxico, palavras como "liurai" estão perfeitamente incorporadas na variedade local do português, mas vejo que há vocábulos do português como "néli" que foram usados - em português - por muitas gerações de timorenses, e que parecem de utilização menos comum pela mocidade; creio que a razão é que os inputs são diversos, e muitos deles vêm de falantes de outras variedades do português (não a variedade timorense). Os bordões linguísticos são uma área particularmente gira. Se prestarem atenção às cachopas e garotos timorenses a falar português vão ouvir coisas como "Foi ele sá!" ou "É este tó!"
Como dizia o Bruce Lee: "“Absorb what is useful, discard what is not". A propósito do português língua do ensino em Timor...
Num congresso em Díli, há alguns anos, em que se falou sobre o uso das línguas maternas como línguas do ensino (=línguas de instrução), um dos oradores convidados foi um maori que falou sobre o sucesso das Kōhanga Reo. Parece-me um modelo que Timor poderia analisar para ver o que pode ser útil para cá:
- os maoris perceberam que menos de 20% dos maoris falavam bem maori,
- a sua liderança definiu um projeto político em que falar bem maori era um objetivo político e identitário claro,
- criaram uma rede de pré-escolas em que crianças cuja língua materna era o inglês (filhos de pais que falavam inglês e não maori em casa) aprendiam maori e em maori.
Por cá os líderes políticos timorenses eleitos pelo povo é que têm de decidir se a língua portuguesa faz realmente parte do seu projeto político e identitário ou não...
Interação da língua portuguesa, do tétum e da fé criou nação timorense - Ex-PM Alkatiri
07 de Maio de 2015, 10:10
Foto: Pedro Sá de Bandeira/EPA
Trata-se, disse, de elementos que servem como "oxigénio" para a reafirmação da identidade timorense, "em todo o seu mosaico" socio cultural pelo que questionar qualquer desses elementos coloca em risco essa identidade.
Mari Alkatiri falava num colóquio em Díli subordinado ao tema "Uma língua - Várias identidades", inserido nos eventos da Semana da Língua Portuguesa do Parlamento Nacional.
Em resposta a perguntas da plateia, Mari Alkatiri criticou o que disse ser a má política adotada nos últimos anos no ensino da língua, com comunicações no setor público em inglês ou indonésio.
Como exemplo do que diz serem erros políticos sobre esta matéria, recorda que quando a troika chegou a Portugal foi convidado pelos então chefe de Estado, José Ramos-Horta e primeiro-ministro, Xanana Gusmão, para os acompanhar a Portugal "comprar dívida pública portuguesa".
"Tínhamos 6 mil milhões de dólares no fundo petrolífero e queriam comprar dívida pública. Isso nem dá para fazer cantar um cego. Eu disse que preferia ir lá, mas era para contratar professores portugueses", afirmou.
Alkaiti insistiu que esta política é essencial para defender a soberania timorense no contexto regional e sub-regional, e para defender o tétum que só se reforçará com o português e que, se se tentar desenvolver com o inglês ou indonésio "simplesmente desaparece".
"A política nacional tem que ser muito clara. Se não o for seremos mais um país no lago australiano ou um meio Estado na extensão da Indonésia. Essa é a realidade", afirmou.
"Fomos tão determinados a fazer a luta pela independência e estamos a perder a determinação de defender esta independência, os elementos que garantem a defesa desta independência", disse, criticando os que defendem o uso das línguas maternas que contribuem para "balcanizar" o país.
Numa intervenção em que recordou o papel da língua portuguesa em Timor-Leste, "da colonização à libertação", Alkatiri disse que o português começou como uma "língua política e sociocultural de dominação", algo que se foi diluindo ao longo dos séculos.
Um processo que ocorreu sem que o português tenha, em qualquer momento, deixado de ter interação com a sociedade timorense que o procurava sempre como aliado", especialmente nas duas ocupações, a japonesa e a indonésia.
"Os timorenses intuitivamente ou empiricamente sabiam que a melhor forma de afirmar a sua diferença era manter esse vínculo à identidade lusófona", algo que os ajudava a defender-se das presenças invasoras "mais perigosas e dominadores".
@Lusa
terça-feira, abril 21, 2015
O tétum não é um crioulo de base lexical portuguesa
Volta e meia surge um texto de algum estudante das coisas das
línguas em Timor a dizer que o tétum é um crioulo de base lexical portuguesa, o
que é tão correto como dizer que o inglês é, na verdade, um crioulo de base
lexical francesa.
Este livro (“Ordered Profusion
– Studies in Dictionaries and the English Lexicon”), por exemplo, diz que no
“Shorter Oxford English Dictionary”
28,30% das palavras têm origem no francês antigo, incluindo o anglo-francês, ou
no francês; 28,24% são de proveniência latina; e apenas 25% do vocabulário é de
origem germânica (juntando aqui também o inglês antigo, o inglês médio, o nórdico
antigo e o holandês.
O tétum não é um crioulo de base lexical portuguesa; podemos
considerar que o tétum-praça é um crioulo cuja base lexical é o tétum-téric, o
português surge só como um superestrato posterior. A zona de Díli era originalmente
de língua mambai. É possível que muitos dos cerca de 1200 indivíduos (dos quais
15 eram brancos) que para cá vieram aquando da transferência da capital de
Lifau para aqui falassem um crioulo de base lexical portuguesa semelhante ao
crioulo de Malaca (ainda conhecido por alguns habitantes do antigo bairro de Bidau
na década de 50 do séc. XX), mas não falavam tétum (língua pouco relevante na
parte ocidental da ilha). O afluxo de gentes de vários lugares à capital provavelmente
levou a que o tétum, que na parte oriental da ilha já funcionava como língua
franca entre os vários reinos, se tornasse a língua de Díli. As línguas francas
tornam-se muitas vezes o idioma da população do centro urbano mais importante da
sua região; veja-se os casos do malaio Betawi que se tornou a língua de Batávia
(atual Jacarta), o crioulo malaio em Cupão e o crioulo guineense em Bissau. O
uso do tétum como língua segunda por uma grande quantidade de falantes de outros
idiomas, com destaque para os mambais, levou a que passasse por um processo de
simplificação, a que podemos chamar crioulização, mas continuando a ser de
origem tétum boa parte do léxico básico deste tétum-praça. Numa primeira fase
absorveu também muitos termos do malaio, língua franca do comércio entre ilhas,
depois passou por um processo de relexificação parcial com vocabulário do
português (daí que o tétum-praça atual – e não obstante algumas propostas
puristas recentes – inclua grande percentagem de léxico de origem portuguesa,
não apenas para os registos mais elevados e os domínios mais técnicos, mas
também para coisas do dia a dia como a fauna e flora locais, as saudações entre
as pessoas e os termos de parentesco). Mas continua a ser suficiente comparar
uma lista de Swadesh para o tétum-praça e para um crioulo de base lexical
portuguesa para ver as diferenças…
Outra coisa que se lê de vez em quando é que o tétum-praça se
chamaria assim por ser a língua do mercado. Devem pensar que estão da praça do
peixe de alguma vila piscatória portuguesa… A praça de armas era onde residia o
governador e a sua guarnição, era o centro urbano. O tétum-praça era portanto o
tétum da cidade (por modesta que fosse a cidade).
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segunda-feira, abril 13, 2015
Línguas de ensino
Há dias participei num debate no Facebook com uns colegas da
área da linguística e ensino sobre o significado do Artigo 8.º da Lei de
Bases da Educação (“Línguas do sistema educativo”), que diz que: ”As línguas de
ensino do sistema educativo timorense são o tétum e o português.” Creio que é
óbvio para quem saiba ler português que a intenção do legislador era dizer que
as escolas do sistema de ensino timorense têm que ensinar os diversos conteúdos
(matemática, ciências, etc) nas línguas oficiais, até porque a LBE foi aprovada
em 2008 e na legislatura de 2007-2012 o Parlamento Nacional também aprovou a
Resolução nº 20/2011. Mas, como houve uma colega que defendeu uma
interpretação diferente, a de que a referência a “línguas de ensino” no artigo
8º significa que “no sistema educativo timorense o tétum e o português são disciplinas
ou componentes curriculares“, fiz uma pesquisa rápida na Internet para ver com
que significado é que a expressão “línguas de ensino” é usada pelos especialistas
no ensino de língua segunda e língua estrangeira.
Eis alguns excertos de documentos que encontrei:
Da Professora Doutora Maria José Grosso:
"Os que são oriundos de países africanos e que têm o
português como língua segunda, (acepção de língua
de ensino com estatuto oficial, ensinada nas escolas e que participa também na
socialização da criança e no seu desenvolvimento cognitivo); estudam
português por razões académicas ou profissionais (ou os que em idade escolar
estão inseridos no Sistema do Ensino em Portugal). http://mha.home.sapo.pt/imagens/t4.pdf
Ainda segundo Maria José Grosso (et al) no QuaREPE:
“Os conceitos de língua materna, língua estrangeira, língua
segunda são conceitos polissémicos que não correspondem a uma definição linear.
O conceito de Língua Materna apela ao de língua da socialização, que, por
definição, transmite à criança a mundividência de uma determinada sociedade,
cujo principal transmissor é geralmente a família. O conceito de Língua
Estrangeira facilmente se define como a língua que não faz parte dessa
socialização primária, estando subjacente uma série de princípios
metodológicos. Na tradição da didáctica
das línguas, o conceito de Língua Segunda ocorre frequentemente como a língua
que, não sendo materna, é oficial (ou tem um estatuto especial) sendo também a
língua de ensino e da socialização secundária. Há, no entanto, alguns
autores que consideram que é Língua Segunda desde que os aprendentes estejam em
imersão linguística, num contexto em contacto com os falantes nativos da língua
que aprendem. Cf. Grosso (2005: 608).”
Diz-nos Marie Quinn num texto de 2008 (Choosing Languages for
Teaching in Primary School Classrooms):
“In
relation to the Portuguese, this position has been further strengthened by the
recent educational directive from the MEC. In this, Portuguese is identified to
take precedence as the language of
education, while Tetum, seen predominantly as an oral language, will serve
as an auxiliary language together with mother tongues:
… dado que o Tétum ainda está em processo de desenvolvimento
e sendo uma língua predominantemente oral, o Português terá preferência como língua de instrução ou ensino. O
Tétum, particularmente, e as demais línguas maternas serão usadas como línguas
auxiliares pedagógicas, quando necessário, particularmente nos primeiro anos.
… given
that Tetum is still in the process of development and being a predominantly
oral language, Portuguese will have preference as a language of instruction or teaching language. Tetum, particularly,
and the other maternal languages will be used as auxiliary pedagogical
languages, when necessary, particularly in the first years.
MEC 2006“
Do Quadro Europeu Comum de Referência para as Línguas:
"No exemplo sumário que se apresenta de seguida, que
trata daquilo que pode ser pensado pelas opções ou variações de cenário, são
delineados dois tipos de organização e de decisões curriculares para um
determinado sistema escolar, de forma a incluir, como acima foi sugerido, duas
línguas modernas para além da língua de
instrução (convencionalmente, mas de forma errada, referida abaixo como língua
nativa, uma vez que todos sabem que a língua do ensino, até na Europa, não é,
frequentemente, a língua materna dos alunos): uma língua iniciada na escola
primária (língua estrangeira 1, daqui por diante LE1), outra no nível
secundário inferior (língua estrangeira 2, daqui por diante LE2) e ainda outra
(LE3) como disciplina opcional, no ensino secundário de nível mais
avançado."
De Isabel
Leiria:
“Não
se pense, contudo, que a unanimidade tem sido absoluta entre os africanos (do
mesmo modo que não tem sido entre os portugueses), não quanto à opção do
português como língua oficial, mas como primeira
e única língua de ensino e de alfabetização. (...) Experiências de ensino
bilingue têm sido ensaiadas, mas sem grande sucesso. Na Guiné-Bissau, por
exemplo, no ano lectivo de 1977/78, com o apoio de Paulo Freire, foram criados
Centros de Educação Popular Integrada (CEPI). Foi decidido utilizar "a
língua comunitária, o crioulo, como língua de ensino para melhor facilitar a
aprendizagem dos conteúdos e a inserção das crianças na escola." Os
resultados não foram muito visíveis, porque nas zonas de implantação dos CEPI
(manjaca, balanta e bijago) o crioulo não era língua veicular para estas
populações, porque se continuava a fazer sentir a influência dos ensinamentos
de Amílcar Cabral (a língua oficial é o português) e porque "a população
tem uma atitude passiva e às vezes mesmo negativa quanto à introdução do
crioulo" (Barreto 2005).”
No documento “Diversidade Linguística na Escola Portuguesa”
do ILTEC:
“Por enquanto, em Portugal, todas as aprendizagens (para
além das línguas estrangeiras) são feitas em língua portuguesa, mesmo que,
através das equivalências, os alunos originários de outros países se possam
integrar num qualquer ano do ensino básico sem dominarem, ou dominando mal, a língua de ensino que para eles é língua
segunda.”
Portanto, está demonstrado que muitos importantes
especialistas usam os termos “língua de ensino” e “língua de instrução” como
sinónimos, com o significado de língua em que funciona o sistema educativo. E,
de resto, não é apropriado para estudantes destas coisas usar malabarismos
terminológicos para tentar convencer os outros das suas opiniões; a pedagogia e
a linguística não são como na matemática, em que 2+2 são sempre 4, e basta ler
autores como Skinner, Lado, Chomsky, Bley-Vroman, Krashen, Zobl, Schwartz, White,
etc, para perceber que há distintas formas de definir os conceitos e muitas
teorias diferentes sobre como funciona a aprendizagem da língua segunda (ou
aquisição da língua segunda – nem sobre isto os especialistas se entendem).
A política linguística de um país é definida pelos
representantes democraticamente eleitos do povo desse país, não por técnicos. O
papel dos técnicos é implementar a decisão política.
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sexta-feira, abril 03, 2015
Saber ler é importante, e mais ainda quando se sabe ler numa língua em que há livros...
Quando parecia que as línguas oficiais consagradas na Constituição já não eram motivo de polémica, e que o aparelho do Estado estava mobilizado para a implementação de uma política linguística comum, o recente debate público sobre a introdução das línguas regionais como línguas de instrução no sistema educativo veio dar uma nova visibilidade a algumas vozes que rejeitam o português como língua oficial, com o argumento de que usar o português “é ser colonizado”. Um dos fóruns onde defendem essa posição é o Facebook. Um alucinado qualquer partilhou um “post” meu [https://www.facebook.com/ jpesperanca.timor/posts/ 1039876492706556] num grupo timorense do Facebook chamando-me “fascista” e “colonialista” por causa do que digo sobre a língua de alta cultura.
Respondi-lhe com links para os livros traduzidos para tétum registados no Index Translationum da UNESCO, que são 3:
http://www.unesco.org/ xtrans/bsresult.aspx?a=&stxt=& sl=...
e os traduzidos para português registados na mesma lista, que são 80602:
http://www.unesco.org/ xtrans/bsresult.aspx?a=&stxt=& sl=...
Sei que ambas as listas estão incompletas, mas já dá para ter uma ideia do que eu queria dizer. :-)
Respondi-lhe com links para os livros traduzidos para tétum registados no Index Translationum da UNESCO, que são 3:
http://www.unesco.org/
e os traduzidos para português registados na mesma lista, que são 80602:
http://www.unesco.org/
Sei que ambas as listas estão incompletas, mas já dá para ter uma ideia do que eu queria dizer. :-)
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"Pedagogos" pobres de espírito
Há um discurso preocupante em certos círculos pedagógicos que se movem por cá, o de que é “ser colonizado” poder ler como estas crianças* leem e que os alunos das escolas rurais só podem ler meia dúzia de livrinhos “sobre a realidade da sua aldeia”. Como na aldeia não há astronautas, nem comboios, nem girafas e leões, nem pinguins, nem mulheres arqueólogas ou cirurgiãs, nem tantas outras coisas, os miúdos não podem ler sobre essas coisas. Esses “pedagogos” parecem querer impedir as crianças de sonhar… Cria-se assim um fosso entre as crianças educadas em escolas que os preparam para ser futuros cidadãos do seu país e cidadãos do mundo (mesmo que morem na aldeia), e as que são preparadas para terem horizontes curtos que não vão além do seu knua…
Haver contextualização de materiais não significa fechar as janelas!
* que são os meus meninos.
Haver contextualização de materiais não significa fechar as janelas!
* que são os meus meninos.
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sábado, março 21, 2015
Ainda a polémica das línguas maternas no sistema educativo timorense:
(1) - Deve haver poucos educadores de infância ou professores primários em Timor que não falem tétum (e suponho que seja procedimento padrão no Ministério da Educação não contratar professores que não saibam tétum).
(2) – As crianças, mesmo aquelas que não têm o tétum como uma das suas línguas maternas, tornam-se na maior parte das comunidades rapidamente bilingues assim que entram na escola, de forma natural, ao brincar e conviver no recreio com crianças provenientes de famílias com línguas maternas diversas. O tétum tornou-se língua franca de Timor de forma natural, como uma maneira prática de as comunidades se entenderem, mesmo antes de o tétum ser língua oficial e uma das línguas da escola. Qualquer fataluco ou baiqueno que venha morar para Díli vê os seus filhos (antes monolingues na língua regional) a falar tétum com os vizinhos poucos meses depois de chegarem, de forma natural, sem ser sequer preciso ensiná-los.
(3) – O tétum é em Timor-Leste a língua de unidade nacional, a língua em que toda a gente se pode entender, em que o povo (mesmo as crianças da escola primária) pode ver as notícias na televisão nacional. O português é a língua oficial que dá acesso à alta cultura, ciência, etc (não porque o tétum não pudesse ser língua de ciência, mas porque as condições sócio-económicas e demográficas não o permitem: o mercado leitor timorense é reduzido, os produtores de conhecimento e bens culturais de alta cultura em tétum são muito poucos).
(4) – Uma criança leitora é um professor de si mesmo. Desde que tenha aprendido a ler numa língua em que há livros.
(5) – Uma criança aprende mais facilmente línguas quando é pequenina.
(6) – As pré-escolas e escolas primárias timorenses podem ser facilmente lugares de imersão em tétum, já que todos os professores, e muitos dos alunos, falam esta língua. A questão depois seria planificar o ensino do português, logo desde a chegada à pré-escola, e dar aos professores que ainda não dominam este idioma as aulas planificadas que os ajudem no seu trabalho. Será que se justifica trazer as línguas regionais para a equação?
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domingo, janeiro 05, 2014
Ainda o jogo do pau - Resposta a Frederico Martins
O meu texto
partilhando algumas das minhas inquietações sobre os rumos atuais do jogo do
pau motivou uma resposta interessante de Frederico Martins, à qual vou tentar
responder aqui:
Olá João,
Não sou um erudito do jogo do pau nem da cultura portuguesa. Tenho feito um esforço de investigação, dentro dos limites do meu conhecimento, e partilho do desejo de ver o jogo do pau a ser estudado mais profundamente por alguém mais capaz. Darei as minhas opiniões como o meu ponto de vista, que não pretende ser uma verdade absoluta, mas sim a minha interpretação actual, que face à escassez de fontes, nunca posso afirmar com grandes certezas.
Não vejas isto como uma oposição aos teus argumentos, pois concordo pelo menos com a grande parte destes, e até apresento mais alguns pontos a favor, no entanto esta é a forma como vejo estas questões do ponto de vista de um praticante de Esgrima Lusitana e amante do Jogo do Pau.
Também não sou um
erudito do jogo do pau ou da cultura portuguesa e, como tu, tenho mais
perguntas do que respostas... E de resto uma abordagem científica não significa
apresentar-se como detentor da verdade, mas sim como alguém que tem opiniões
fundamentadas, que podem ser invalidadas por novos dados.
1- “Jogo” e “pau” //Acho o problema não só na palavra jogo mas também na palavra “pau” não desgosto da expressão, de forma alguma, mas vejo na população em geral o torcer do nariz à apresentação da mesma. E foi nesse sentido que se tentou aplicar o nome de Esgrima Lusitana.
Para suportar o nome de jogo do pau, poderia acrescentar que já vi em alguns textos antigos portugueses a expressão “mestre no jogo das armas” ou “jogar às armas” o que indica que na cultura portuguesa o “jogo” significava também treino militar.
Vários outros tratados de armas Italianos pelo menos também se referem a treino militar como “jogo”, como Achille Marozzo (1484-1553), Antonio Manciolino Séc. XVI, entre outros. Por exemplo, fazendo distinção entre “gioco stretto” e “gioco largo” referindo-se a diferentes distâncias. Estes tratados falam geralmente de vários tipos de armas e não de uma espada especifica.
Nessa altura não creio que fizesse confusão a ninguém. No entanto a esgrima olímpica não se chama jogo de espada, mas sim esgrima, e hoje em dia, na população em geral, jogo já não tem nenhuma conotação marcial e como já referi anteriormente, é mal interpretado por quem não conhece, por isso o mestre Nuno Russo está a tentar aplicar o nome de Esgrima Lusitana.
Este nome, não é no entanto uma invenção totalmente moderna. Já Zacharias d’Aça em 1883 se referia ao jogo do pau como a Esgrima Nacional, assim como António Caçador (1963) sub-titula o seu livro sobre jogo do pau. Creio que já dai advêm a necessidade de demonstrar que se trata de uma esgrima ou de uma actividade marcial(de combate) e não de um jogo, como tem sido vista a expressão mais recentemente.
Eu sinceramente preferia ver o nome Jogo do pau a ser utilizado, mas percebo e suporto a utilização de Esgrima Lusitana, que faz sentido no mundo em que vivemos e é mais rapidamente compreendido pelo publico em geral. Também podes ver o nome Esgrima Lusitana, como sendo a escola do mestre Nuno Russo, que inclui o varapau e o bastão e segue um programa técnico especifico.
Para te dizer a
verdade até preferia que o problema dos “lusitanos esgrimistas” fosse com a
palavra “jogo” e não com a palavra “pau”. Não tenho nada contra os esforços de
utilização da técnica do jogo do pau nas modalidades de esgrima histórica
reconstituída levados a cabo pelo mestre Luís Preto, mas o jogo do pau têm uma
veneranda tradição e história por si mesmo, independente de hipotéticas origens
em esgrimas de armas de corte, e não deve envergonhar-se de ser uma arte
marcial de uso do pau para combate. Neste texto podem encontrar-se alguns dados
interessantes sobre essa tradição: http://www.freewebs.com/pontuada/O_jogo_do_pau_em_Portugal.pdf.
Além das
referências que mencionas também esta enciclopédia http://www.freewebs.com/pontuada/Enciclopedia_1949-imprimir.pdf (não sei qual, tirei as fotocópias
de uma que havia na biblioteca da minha escola quando era puto – mas no texto
diz-se que 1949 é a “actualidade”) define o jogo do pau como “esgrima
característica portuguesa”. Parece-me
que a designação de “esgrima portuguesa” ou “esgrima nacional” foi sendo
associada ao jogo do pau em diversas fontes eruditas, normalmente escritas, mas
o povo e os praticantes continuaram a usar normalmente a designação tradicional
de “jogo do pau”. Dizes tu que “no
entanto a esgrima olímpica não se chama jogo de espada, mas sim esgrima, e hoje
em dia, na população em geral, jogo já não tem nenhuma conotação marcial”.
Penso que os praticantes de jogo do pau não deviam ter a atitude de uma marca
de refrigerantes que se preocupa com a escolha de um nome que permita uma maior
penetração no mercado, se os mestres que nos ensinaram uma arte marcial, que
receberam por sua vez de outros mestres, sempre lhe chamaram jogo do pau,
porque é que temos de lhe mudar agora o nome? E se o problema é marketing
porque é que não lhe chamam algo como “PSJ
- Portuguese Staff Jitsu” ou “MMA com
um Grande Cacete” – provavelmente iam atrair imensos malucos pagantes... E
já agora, para ilustrar como a “população em geral” pode estar errada a
propósito de conotações marciais, eis o que John Clements diz a propósito da
esgrima olímpica: “Yet some say modern
sport fencing (particularly foil fencing) is so far removed from its martial
origins as to barely qualify as swormanship“ (em “Renaissance Swordmanship –
The Illustrated Use of Rapiers and Cut-and-Thrust Swords”, p. 14)
2- Nunca vi preconceito em relação aos nomes das pancadas. A única pessoa que vi utilizar nomes diferentes foi o Luis Preto quanto ensina estrangeiros. Mas isso advêm da ideia dele de que ao ensinar-se qualquer actividade, se deve utilizar palavras que as pessoas compreendam. Assim, em inglês faz sentido utilizar nomes ingleses para as pancadas, apesar das outras artes marciais todas fazerem o contrário. Não discordo que isso seja mais eficaz na aprendizagem, no entanto gosto bastante da ideia de utilizar os nomes em Português por uma questão de manter uma ligação cultural à arte praticada. Quanto à utilização desses nomes “arcaicos” em português, em em vez de nomes mais compreensíveis, como “Obliqua” ou “ascendente”, não creio que seja necessário, pois não custa assim tanto a um português aprender um termo da própria língua, e em todas as aulas que tive sempre foram os termos utilizados.
Acho que isso tem
a ver com a atitude de quem ensina e quem aprende, em relação ao que é
ensinado. Nas escolas de MMA (artes marciais misturadas?) ensinam-se técnicas,
competências motoras, formas de movimentar o corpo com objetivos ofensivos ou
defensivos. Se um determinado pontapé veio da Tailândia ou um estrangulamento
chegou do Brasil, depois de ter tido origem no Japão, isso pouco interessa aos
envolvidos, a não ser como curiosidade. Porém na maior parte das artes
marciais, sejam antigas ou reformulações mais recentes, os mestres são
portadores de uma cultura que transmitem junto com as técnicas, e os alunos
querem normalmente sentir algum tipo de comunhão com essa cultura. No dojo de
judo temos a etiqueta japonesa e as ideias de Jigoro Kano sobre pedagogia, nos
de aikido ou shorinji kempo temos um pacote cultural que inclui até muito de
religião, nas rodas de capoeira do mundo inteiro gringos e malais de todas as
cores e línguas cantam em português sobre o Senhor do Bonfim e Besouro Mangagá.
Não sei o suficiente sobre os alunos de esgrima histórica aí pelas europas,
posso acreditar que um grupo que se especialize em estudar, por exemplo, “La
Verdadera Destreza” tenha algum apreço pela cultura espanhola (e pela história
de Espanha da época), mas suponho que em geral os entusiastas da esgrima
marcial antiga europeia não estejam interessados em aprender jogo do pau
enquanto arte marcial portuguesa de combate com vara, nem lhes interesse a cultura
portuguesa, e que só queiram do jogo do pau as técnicas que possam ser aplicáveis
ao seu passatempo. Se este for o caso, a posição do mestre Luís Preto será
semelhante à de um mestre de Muay Thai num ginásio de MMA, onde as pessoas só
querem aprender os pontapés que ele traz e não teriam paciência para o “Wai
khru ram muay”, por exemplo. Nesse contexto, faz todo o sentido que ele dê
nomes ingleses às técnicas.
3- Se o caso a favor da ligação do jogo do pau com a esgrima de armas antigas fosse apenas os nomes dos ataques, como referidos no livro do rei D. Duarte I (1391-1438), eu veria isso como uma mera curiosidade, e não como um argumento histórico de referência. Quase como um mito.
E foi assim que vi essa ligação durante muito tempo. No entanto, para uma análise mais séria da ligação creio que é essencial a análise de dois documentos “descobertos” mais recentemente. Falo do “Memorial Da Prattica do Montante” de D. Diogo Gomes de Figueiredo (1651) e “Do Arte de Esgrima” de Domingos Luis Godinho (1599). Quem é conhecedor de jogo do pau, sabe que no norte sempre se praticou o combate contra vários adversários, ainda hoje há grupos muito tradicionais a praticarem o jogo contra dois e o jogo do meio. Está prática bem documentada em vídeo e presente também no programa técnico do mestre Nuno Russo, está também descrita no mais antigo manual de jogo do pau que conheço, “A arte do Jogo do Pau” Joaquim António Ferreira (1886).
Estes textos podem ser analisados mais profundamente para uma melhor compreensão dos mesmos, no entanto deixo aqui a primeira linha de algumas das chamadas “regras” ou situações que estes 3 autores descrevem.
"Memorial Da Prattica do Montante" Mestre de Campo Diogo Gomes de Figueyredo (1651):
-“Regra para brigar com gente por detraz e por diante”
-"Serve esta regra para brigar em hũa rua larga com gente por detras o por diante”
"Do Arte de Esgrima" - Domingo Luis Godinho (1599)
Autor portugues mas o texto está em espanhol, traduzi aqui para simplificar.
- "sercado em plasa campo o calhe”
- ”sercado en calhe mea angosta de atras e adelante”
“A arte do Jogo do Pau” Joaquim António Ferreira (1886)
-“Quando eu seguir por uma estrada e me apareça um inimigo pela frente e outro pela retaguarda”
-"Quando me encontrar cercado de inimigos devo (…)"
São apenas dois exemplos de cada autor, mas cada um tem muitos mais exemplos, sendo que a grande parte das regras que ensinam são mesmo contra vários adversários em várias situações.
Cada manual, de diferentes mestres e de séculos diferente, apresenta soluções ligeiramente diferentes, o que creio ser natural. Pode-se até dizer que isto é o comum em todas as artes marciais e que não evidencia nenhuma ligação especial ao jogo do pau. No entanto, há que reparar, dos vários autores europeus de tratados de esgrima antiga com as mais variadas armas, e de várias nacionalidades, Alemães, Italianos, Ingleses, e de vários séculos, apesar de um ou outro mencionarem ocasionalmente o combate contra vários adversários, nenhum deles trata tão profundamente do assunto, como o Figueiredo, Godinho ou Ferreira tratam nos seus manuais. E isto é quase único na tradição portuguesa. Autores como George Silver (ca. 1560s–1620s) e Giacomo di Grassi(Séc. XVI) dedicam um ou outro paragrafo a combate contra vários adversários, enquanto que dos 3 autores portugueses, cada um tem pelo menos 10 regras especificas contra vários adversários. Dos autores antigos não só com o montante mas Godinho refere o mesmo com qualquer tipo de espada. Isto, sendo que não há muitos mais manuais de esgrima de autores portugueses deste tempo, é grande parto do que conhecemos da nossa esgrima.
Para quem conhecer o jogo do pau, deixo aqui uma regra de Godinho: http://jogodopau.tumblr.com/post/43481457974/cercado-numa-praca-campo-ou-rua
Esta descrição quase que se podia pôr lado a lado, e adaptar passo a passo ao jogo do pau, ainda hoje praticado por muitos grupos de jogo do pau e presente no programa técnico de Esgrima Lusitana. como diria o Carlos do Carmo, se isto não é jogo do pau, eu sou chinês(com a devida ressalva de que com certeza, gostava que existisse um estudo mais profundo do tema, do que aquele que eu consigo fazer).
Não conhecia
estes autores portugueses, obrigado pelas referências. Entretanto encontrei a
página da AGEA Editora (http://www.ageaeditora.com/), vou tentar adquirir algum
do material publicado por eles.
Como eu disse no
meu outro texto, acho que é possível uma ligação. Duvido é que seja uma ligação
direta, como aquela em que o mestre Luís Preto acredita: “Jogo do Pau is Historical Fencing and Historical Fencing is Jogo do Pau”
e <<Regarding Jogo do Pau as “Portuguese
staff fencing” is not correct, since it actually is a medieval fencing skill,
with either long sword or staffs, depending on the social conditioning factors
that determine which weapons are at hand.>> (in “Combat in
Outnumbered scenarios – The origin of historical fencing”). Eu acho que é
errado declarar que “o jogo do pau não é esgrima de pau portuguesa porque é uma
técnica medieval de esgrima com espadas ou paus”, o que estiver mais a jeito.
Basta ir reler o texto que mencionei, ou perguntar ao mestre Nuno Russo (que
foi o mestre de Luís Preto) o que lhe ensinaram os seus próprios mestres, para
ver que o que o jogo do pau é. O jogo do pau é um sistema de combate tradicional (“arte marcial”)
português com pau longo, contra um ou vários adversários; o jogo do pau pode ter sido influenciado na
sua génese pela esgrima do montante adaptada pelos instrutores militares medievais
para ensinar aos membros da plebe arrebanhados para servir como peões na infantaria
dos senhores feudais uma forma mais eficaz de usarem os seus chuços. As tuas
citações sobre o combate contra vários adversários, ou o facto de a vara ser normalmente
agarrada numa das extremidades, podem ser argumentos que apoiam esta hipotética
influência. Parece-me correta esta análise do mestre Luís Preto no seu blog: “Defensively,
it is an art in which, regardless of the weapon being handled, the parries are
executed with the part of the weapon that corresponds to the edge of a bladed
weapon. As can be seen in the images below, the nuckles are always directed
outwards and, thus, the parry being shown is intercepting the incoming strike
with the same area of the defender's weapon, regardless of it being bladed or
round.” (in http://jogodopau.blogspot.pt/2013/12/jogo-do-pau-stick-or-sword-art.html).
Mas parece-me que cria confusão desnecessária a colocação de fotografias do uso
da bengala neste texto, uma vez que, como dizes, o “bastão português” ou “bengala
portuguesa” é uma modalidade desenvolvida pelo mestre Nuno Russo. Portanto não
pode ser “a medieval fencing skill, with either long sword or staffs”. Aliás, o
tamanho é mais próximo do da falcata lusitana do que do montante medieval...
Por outro lado, poderia ser interessante ver a execução dos sarilhos do jogo do pau com uma espada longa, como um montante.
Parece-me também que
uma coisa importante a ter em conta nestas análises é que a motricidade humana
não é apenas biológica, mas também culturalmente marcada. As pessoas andam,
dançam, sentam-se, gesticulam... e usam sistemas complexos de combate desarmado,
ou com armas tradicionais, de formas diferentes em diferentes culturas e
sociedades. Há muito em comum se compararmos os deslocamentos de um japonês com
uma katana ou com um jo, como há muito em comum se observarmos os movimentos de
um praticante de kalaripayattu com um pau ou com uma espada, é apenas natural
que haja coisas semelhantes em artes marciais desenvolvidas no extremo
ocidental da Europa, em que uma pode ter influenciado a outra, e que tenham
ataques de uma “wide-motion, bashing, power-oriented striking art“ como
acontece no jogo do pau e acontecia na esgrima de montante.
4- Lusitana refere-se neste caso de uma forma geral ao povo português, tal como “Os Lusiadas”, não se tenta limitar a um grupo de portugueses de um local especifico, mas de forma generalizada. Tal como Luso-Americano, refere-se a um Portugal e América e não a Entre Douro e Tejo e América.
Prefiro “portuguesa”
ou “lusa”, como em “equipa lusa”, por exemplo. Não gosto da designação de “lusitanos”
para os portugueses por várias razões. Uma é que é uma designação errada, na
época das invasões romanas os lusitanos coexistiam com outros povos nativos na
Península Ibérica e a sua área incluía uma parte do que agora é Portugal mais
ou menos entre o Douro e o Tejo e uma parte do que agora é a Espanha. Outra
razão é que me faz lembrar idiotices do tempo da historiografia salazarista,
como dias da raça e coisas assim. Carlos Consiglieri em “Os lusitanos e a
historiografia” fala das “ideias
ultra-românticas de historiadores que tentaram construir uma identidade
nacional a partir dos Lusitanos”, mas Portugal é um país de mestiçagens
várias, e a hipervalorização dos lusitanos faz-se à custa de desvalorizar as contribuições de outros povos que para cá vieram, incluindo os próprios
romanos. Diz-nos também a “História de Portugal” coordenada por Rui Ramos: “Como os estudos genéticos revelaram
recentemente, esta História deixou marcas na composição da população. Na
Península Ibérica, os portugueses são aqueles em cujos genes mais vestígios se
encontram de duas das mais importantes migrações para a Península desde o
século I: os judeus sefarditas, chegados do Médio Oriente no início da era
cristã, e os berberes muçulmanos, vindos do Norte de África no século VIII.”
E esta miscigenação é ainda mais acentuada no sul do país. Uma terceira razão é
que os espanhóis também têm invocado ao longo dos séculos o título de
descendentes dos lusitanos. Mauricio Pastor Muñoz, no seu livro “Viriato”
conta-nos sobre como a partir do século XVII se publicaram em Espanha livros
com Viriato como protagonista. P.ex.: “Assim,
A. González Bustos publica a sua comédia intitulada O Espanhol Viriato, onde enaltece a figura de Viriato.”
Depois, já no séc. XX: “Pouco depois,
Viriato, a quem o padre Mariana chama “libertador quase de Espanha”, passou a
denominar-se “caudilho Viriato” e é comparado a Francisco Franco. Em todos os
trabalhos que fazem referência a Viriato, principalmente nos manuais de
História de Espanha, insiste-se na imagem de Viriato como “caudilho” de Espanha”
(p. 263). E etc, etc. Mais recentemente a série de televisão espanhola “Hispania– La Leyenda” também faz equivaler as designações “lusitanos” e “espanhóis”.
5- Quase todas a técnicas de varapau europeias, Sejam italianas, francesas etc, utilizam o varapau de forma semelhante, isto é, em rotação completa, segurando numa das pontas. No entanto, práticamente só em Portugal se vê ainda a pratica de jogo do pau contra vários adversários. Não digo que seja tudo a mesma coisa, e creio que em Portugal, por alguma razão esta prática se preservou em excelente forma, mas não me surpreende existirem formas bastante similares por toda a Europa. O Garrote canário que vi e já experimentei com um mestre que nos visitou é substancialmente diferente do jogo do pau português.
O quarterstaff
inglês não é propriamente segurado pela ponta. Nem o maide ceathrún irlandês, a
acreditar em John W. Hurley (“Shillelagh – The Irish Fighting Stick”). Tenho o “TheMartial Arts of Renaissance Europe”, de Sydney Anglo, e logo na capa vê-se uma
imagem antiga de lutadores europeus a agarrarem o pau pelo meio. Nem a vara do
jogo do pau açoriano, de acordo com Luís Preto: “consists exclusively of single
combat, using the stick primarily at short distance by holding the stick in the
middle” (“Jogo do Pau – The Ancient Art and Modern Science of Portuguese Stick
Fighting”, p. 17). Mas concordo que haja uma tendência europeia para pegar no
pau pela ponta e bater em rotação.
6- O bastão português é de facto uma adaptação recente, e como é praticado hoje, é um aperfeiçoamento tomado a cabo pelo mestre Nuno Russo, o qual tem todo e quase exclusivo mérito por isso. As menções de utilização de bengala tradicionalmente são realmente muito esporádicas e não creio que nunca tenha sido uma pratica corrente. No entanto creio que a adaptação da técnica do varapau a bastões de um certo peso, é excelente e extremamente eficaz, refletindo todos os conceitos e princípios do varapau, inclusive o tal combate contra vários adversários, que é para mim, a melhor aplicação de armas para defesa pessoal que alguma vez vi.
Nada a dizer. O
mérito deve ser reconhecido, e a modalidade de bastão criada pelo mestre Nuno
Russo parece-me muito interessante como complemento ao jogo do pau tradicional.
Alonguei-me tanto que tive que dividir isto. São questões que requerem de facto discussão e agradeço o teu post por isso. Abraço.
Já agora, sabes
se há alguns livros sobre esgrima histórica em Portugal? Não as reedições dos
escritos na época em que ela ainda não era “histórica”, que mencionaste, mas
alguma coisa escrita nos últimos anos?
Um abraço,
Etiquetas:
artes marciais,
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jogo do pau,
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