Um blog em português - e de vez em quando em tétum e em tocodede - sobre os devaneios de um professor e tradutor ilhavense a morar em Timor. Sobre temas timorenses e do Oriente em geral, e sobre outras coisas de vez em quando...
sábado, março 21, 2015
Ainda a polémica das línguas maternas no sistema educativo timorense:
(1) - Deve haver poucos educadores de infância ou professores primários em Timor que não falem tétum (e suponho que seja procedimento padrão no Ministério da Educação não contratar professores que não saibam tétum).
(2) – As crianças, mesmo aquelas que não têm o tétum como uma das suas línguas maternas, tornam-se na maior parte das comunidades rapidamente bilingues assim que entram na escola, de forma natural, ao brincar e conviver no recreio com crianças provenientes de famílias com línguas maternas diversas. O tétum tornou-se língua franca de Timor de forma natural, como uma maneira prática de as comunidades se entenderem, mesmo antes de o tétum ser língua oficial e uma das línguas da escola. Qualquer fataluco ou baiqueno que venha morar para Díli vê os seus filhos (antes monolingues na língua regional) a falar tétum com os vizinhos poucos meses depois de chegarem, de forma natural, sem ser sequer preciso ensiná-los.
(3) – O tétum é em Timor-Leste a língua de unidade nacional, a língua em que toda a gente se pode entender, em que o povo (mesmo as crianças da escola primária) pode ver as notícias na televisão nacional. O português é a língua oficial que dá acesso à alta cultura, ciência, etc (não porque o tétum não pudesse ser língua de ciência, mas porque as condições sócio-económicas e demográficas não o permitem: o mercado leitor timorense é reduzido, os produtores de conhecimento e bens culturais de alta cultura em tétum são muito poucos).
(4) – Uma criança leitora é um professor de si mesmo. Desde que tenha aprendido a ler numa língua em que há livros.
(5) – Uma criança aprende mais facilmente línguas quando é pequenina.
(6) – As pré-escolas e escolas primárias timorenses podem ser facilmente lugares de imersão em tétum, já que todos os professores, e muitos dos alunos, falam esta língua. A questão depois seria planificar o ensino do português, logo desde a chegada à pré-escola, e dar aos professores que ainda não dominam este idioma as aulas planificadas que os ajudem no seu trabalho. Será que se justifica trazer as línguas regionais para a equação?
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domingo, janeiro 05, 2014
Ainda o jogo do pau - Resposta a Frederico Martins
O meu texto
partilhando algumas das minhas inquietações sobre os rumos atuais do jogo do
pau motivou uma resposta interessante de Frederico Martins, à qual vou tentar
responder aqui:
Olá João,
Não sou um erudito do jogo do pau nem da cultura portuguesa. Tenho feito um esforço de investigação, dentro dos limites do meu conhecimento, e partilho do desejo de ver o jogo do pau a ser estudado mais profundamente por alguém mais capaz. Darei as minhas opiniões como o meu ponto de vista, que não pretende ser uma verdade absoluta, mas sim a minha interpretação actual, que face à escassez de fontes, nunca posso afirmar com grandes certezas.
Não vejas isto como uma oposição aos teus argumentos, pois concordo pelo menos com a grande parte destes, e até apresento mais alguns pontos a favor, no entanto esta é a forma como vejo estas questões do ponto de vista de um praticante de Esgrima Lusitana e amante do Jogo do Pau.
Também não sou um
erudito do jogo do pau ou da cultura portuguesa e, como tu, tenho mais
perguntas do que respostas... E de resto uma abordagem científica não significa
apresentar-se como detentor da verdade, mas sim como alguém que tem opiniões
fundamentadas, que podem ser invalidadas por novos dados.
1- “Jogo” e “pau” //Acho o problema não só na palavra jogo mas também na palavra “pau” não desgosto da expressão, de forma alguma, mas vejo na população em geral o torcer do nariz à apresentação da mesma. E foi nesse sentido que se tentou aplicar o nome de Esgrima Lusitana.
Para suportar o nome de jogo do pau, poderia acrescentar que já vi em alguns textos antigos portugueses a expressão “mestre no jogo das armas” ou “jogar às armas” o que indica que na cultura portuguesa o “jogo” significava também treino militar.
Vários outros tratados de armas Italianos pelo menos também se referem a treino militar como “jogo”, como Achille Marozzo (1484-1553), Antonio Manciolino Séc. XVI, entre outros. Por exemplo, fazendo distinção entre “gioco stretto” e “gioco largo” referindo-se a diferentes distâncias. Estes tratados falam geralmente de vários tipos de armas e não de uma espada especifica.
Nessa altura não creio que fizesse confusão a ninguém. No entanto a esgrima olímpica não se chama jogo de espada, mas sim esgrima, e hoje em dia, na população em geral, jogo já não tem nenhuma conotação marcial e como já referi anteriormente, é mal interpretado por quem não conhece, por isso o mestre Nuno Russo está a tentar aplicar o nome de Esgrima Lusitana.
Este nome, não é no entanto uma invenção totalmente moderna. Já Zacharias d’Aça em 1883 se referia ao jogo do pau como a Esgrima Nacional, assim como António Caçador (1963) sub-titula o seu livro sobre jogo do pau. Creio que já dai advêm a necessidade de demonstrar que se trata de uma esgrima ou de uma actividade marcial(de combate) e não de um jogo, como tem sido vista a expressão mais recentemente.
Eu sinceramente preferia ver o nome Jogo do pau a ser utilizado, mas percebo e suporto a utilização de Esgrima Lusitana, que faz sentido no mundo em que vivemos e é mais rapidamente compreendido pelo publico em geral. Também podes ver o nome Esgrima Lusitana, como sendo a escola do mestre Nuno Russo, que inclui o varapau e o bastão e segue um programa técnico especifico.
Para te dizer a
verdade até preferia que o problema dos “lusitanos esgrimistas” fosse com a
palavra “jogo” e não com a palavra “pau”. Não tenho nada contra os esforços de
utilização da técnica do jogo do pau nas modalidades de esgrima histórica
reconstituída levados a cabo pelo mestre Luís Preto, mas o jogo do pau têm uma
veneranda tradição e história por si mesmo, independente de hipotéticas origens
em esgrimas de armas de corte, e não deve envergonhar-se de ser uma arte
marcial de uso do pau para combate. Neste texto podem encontrar-se alguns dados
interessantes sobre essa tradição: http://www.freewebs.com/pontuada/O_jogo_do_pau_em_Portugal.pdf.
Além das
referências que mencionas também esta enciclopédia http://www.freewebs.com/pontuada/Enciclopedia_1949-imprimir.pdf (não sei qual, tirei as fotocópias
de uma que havia na biblioteca da minha escola quando era puto – mas no texto
diz-se que 1949 é a “actualidade”) define o jogo do pau como “esgrima
característica portuguesa”. Parece-me
que a designação de “esgrima portuguesa” ou “esgrima nacional” foi sendo
associada ao jogo do pau em diversas fontes eruditas, normalmente escritas, mas
o povo e os praticantes continuaram a usar normalmente a designação tradicional
de “jogo do pau”. Dizes tu que “no
entanto a esgrima olímpica não se chama jogo de espada, mas sim esgrima, e hoje
em dia, na população em geral, jogo já não tem nenhuma conotação marcial”.
Penso que os praticantes de jogo do pau não deviam ter a atitude de uma marca
de refrigerantes que se preocupa com a escolha de um nome que permita uma maior
penetração no mercado, se os mestres que nos ensinaram uma arte marcial, que
receberam por sua vez de outros mestres, sempre lhe chamaram jogo do pau,
porque é que temos de lhe mudar agora o nome? E se o problema é marketing
porque é que não lhe chamam algo como “PSJ
- Portuguese Staff Jitsu” ou “MMA com
um Grande Cacete” – provavelmente iam atrair imensos malucos pagantes... E
já agora, para ilustrar como a “população em geral” pode estar errada a
propósito de conotações marciais, eis o que John Clements diz a propósito da
esgrima olímpica: “Yet some say modern
sport fencing (particularly foil fencing) is so far removed from its martial
origins as to barely qualify as swormanship“ (em “Renaissance Swordmanship –
The Illustrated Use of Rapiers and Cut-and-Thrust Swords”, p. 14)
2- Nunca vi preconceito em relação aos nomes das pancadas. A única pessoa que vi utilizar nomes diferentes foi o Luis Preto quanto ensina estrangeiros. Mas isso advêm da ideia dele de que ao ensinar-se qualquer actividade, se deve utilizar palavras que as pessoas compreendam. Assim, em inglês faz sentido utilizar nomes ingleses para as pancadas, apesar das outras artes marciais todas fazerem o contrário. Não discordo que isso seja mais eficaz na aprendizagem, no entanto gosto bastante da ideia de utilizar os nomes em Português por uma questão de manter uma ligação cultural à arte praticada. Quanto à utilização desses nomes “arcaicos” em português, em em vez de nomes mais compreensíveis, como “Obliqua” ou “ascendente”, não creio que seja necessário, pois não custa assim tanto a um português aprender um termo da própria língua, e em todas as aulas que tive sempre foram os termos utilizados.
Acho que isso tem
a ver com a atitude de quem ensina e quem aprende, em relação ao que é
ensinado. Nas escolas de MMA (artes marciais misturadas?) ensinam-se técnicas,
competências motoras, formas de movimentar o corpo com objetivos ofensivos ou
defensivos. Se um determinado pontapé veio da Tailândia ou um estrangulamento
chegou do Brasil, depois de ter tido origem no Japão, isso pouco interessa aos
envolvidos, a não ser como curiosidade. Porém na maior parte das artes
marciais, sejam antigas ou reformulações mais recentes, os mestres são
portadores de uma cultura que transmitem junto com as técnicas, e os alunos
querem normalmente sentir algum tipo de comunhão com essa cultura. No dojo de
judo temos a etiqueta japonesa e as ideias de Jigoro Kano sobre pedagogia, nos
de aikido ou shorinji kempo temos um pacote cultural que inclui até muito de
religião, nas rodas de capoeira do mundo inteiro gringos e malais de todas as
cores e línguas cantam em português sobre o Senhor do Bonfim e Besouro Mangagá.
Não sei o suficiente sobre os alunos de esgrima histórica aí pelas europas,
posso acreditar que um grupo que se especialize em estudar, por exemplo, “La
Verdadera Destreza” tenha algum apreço pela cultura espanhola (e pela história
de Espanha da época), mas suponho que em geral os entusiastas da esgrima
marcial antiga europeia não estejam interessados em aprender jogo do pau
enquanto arte marcial portuguesa de combate com vara, nem lhes interesse a cultura
portuguesa, e que só queiram do jogo do pau as técnicas que possam ser aplicáveis
ao seu passatempo. Se este for o caso, a posição do mestre Luís Preto será
semelhante à de um mestre de Muay Thai num ginásio de MMA, onde as pessoas só
querem aprender os pontapés que ele traz e não teriam paciência para o “Wai
khru ram muay”, por exemplo. Nesse contexto, faz todo o sentido que ele dê
nomes ingleses às técnicas.
3- Se o caso a favor da ligação do jogo do pau com a esgrima de armas antigas fosse apenas os nomes dos ataques, como referidos no livro do rei D. Duarte I (1391-1438), eu veria isso como uma mera curiosidade, e não como um argumento histórico de referência. Quase como um mito.
E foi assim que vi essa ligação durante muito tempo. No entanto, para uma análise mais séria da ligação creio que é essencial a análise de dois documentos “descobertos” mais recentemente. Falo do “Memorial Da Prattica do Montante” de D. Diogo Gomes de Figueiredo (1651) e “Do Arte de Esgrima” de Domingos Luis Godinho (1599). Quem é conhecedor de jogo do pau, sabe que no norte sempre se praticou o combate contra vários adversários, ainda hoje há grupos muito tradicionais a praticarem o jogo contra dois e o jogo do meio. Está prática bem documentada em vídeo e presente também no programa técnico do mestre Nuno Russo, está também descrita no mais antigo manual de jogo do pau que conheço, “A arte do Jogo do Pau” Joaquim António Ferreira (1886).
Estes textos podem ser analisados mais profundamente para uma melhor compreensão dos mesmos, no entanto deixo aqui a primeira linha de algumas das chamadas “regras” ou situações que estes 3 autores descrevem.
"Memorial Da Prattica do Montante" Mestre de Campo Diogo Gomes de Figueyredo (1651):
-“Regra para brigar com gente por detraz e por diante”
-"Serve esta regra para brigar em hũa rua larga com gente por detras o por diante”
"Do Arte de Esgrima" - Domingo Luis Godinho (1599)
Autor portugues mas o texto está em espanhol, traduzi aqui para simplificar.
- "sercado em plasa campo o calhe”
- ”sercado en calhe mea angosta de atras e adelante”
“A arte do Jogo do Pau” Joaquim António Ferreira (1886)
-“Quando eu seguir por uma estrada e me apareça um inimigo pela frente e outro pela retaguarda”
-"Quando me encontrar cercado de inimigos devo (…)"
São apenas dois exemplos de cada autor, mas cada um tem muitos mais exemplos, sendo que a grande parte das regras que ensinam são mesmo contra vários adversários em várias situações.
Cada manual, de diferentes mestres e de séculos diferente, apresenta soluções ligeiramente diferentes, o que creio ser natural. Pode-se até dizer que isto é o comum em todas as artes marciais e que não evidencia nenhuma ligação especial ao jogo do pau. No entanto, há que reparar, dos vários autores europeus de tratados de esgrima antiga com as mais variadas armas, e de várias nacionalidades, Alemães, Italianos, Ingleses, e de vários séculos, apesar de um ou outro mencionarem ocasionalmente o combate contra vários adversários, nenhum deles trata tão profundamente do assunto, como o Figueiredo, Godinho ou Ferreira tratam nos seus manuais. E isto é quase único na tradição portuguesa. Autores como George Silver (ca. 1560s–1620s) e Giacomo di Grassi(Séc. XVI) dedicam um ou outro paragrafo a combate contra vários adversários, enquanto que dos 3 autores portugueses, cada um tem pelo menos 10 regras especificas contra vários adversários. Dos autores antigos não só com o montante mas Godinho refere o mesmo com qualquer tipo de espada. Isto, sendo que não há muitos mais manuais de esgrima de autores portugueses deste tempo, é grande parto do que conhecemos da nossa esgrima.
Para quem conhecer o jogo do pau, deixo aqui uma regra de Godinho: http://jogodopau.tumblr.com/post/43481457974/cercado-numa-praca-campo-ou-rua
Esta descrição quase que se podia pôr lado a lado, e adaptar passo a passo ao jogo do pau, ainda hoje praticado por muitos grupos de jogo do pau e presente no programa técnico de Esgrima Lusitana. como diria o Carlos do Carmo, se isto não é jogo do pau, eu sou chinês(com a devida ressalva de que com certeza, gostava que existisse um estudo mais profundo do tema, do que aquele que eu consigo fazer).
Não conhecia
estes autores portugueses, obrigado pelas referências. Entretanto encontrei a
página da AGEA Editora (http://www.ageaeditora.com/), vou tentar adquirir algum
do material publicado por eles.
Como eu disse no
meu outro texto, acho que é possível uma ligação. Duvido é que seja uma ligação
direta, como aquela em que o mestre Luís Preto acredita: “Jogo do Pau is Historical Fencing and Historical Fencing is Jogo do Pau”
e <<Regarding Jogo do Pau as “Portuguese
staff fencing” is not correct, since it actually is a medieval fencing skill,
with either long sword or staffs, depending on the social conditioning factors
that determine which weapons are at hand.>> (in “Combat in
Outnumbered scenarios – The origin of historical fencing”). Eu acho que é
errado declarar que “o jogo do pau não é esgrima de pau portuguesa porque é uma
técnica medieval de esgrima com espadas ou paus”, o que estiver mais a jeito.
Basta ir reler o texto que mencionei, ou perguntar ao mestre Nuno Russo (que
foi o mestre de Luís Preto) o que lhe ensinaram os seus próprios mestres, para
ver que o que o jogo do pau é. O jogo do pau é um sistema de combate tradicional (“arte marcial”)
português com pau longo, contra um ou vários adversários; o jogo do pau pode ter sido influenciado na
sua génese pela esgrima do montante adaptada pelos instrutores militares medievais
para ensinar aos membros da plebe arrebanhados para servir como peões na infantaria
dos senhores feudais uma forma mais eficaz de usarem os seus chuços. As tuas
citações sobre o combate contra vários adversários, ou o facto de a vara ser normalmente
agarrada numa das extremidades, podem ser argumentos que apoiam esta hipotética
influência. Parece-me correta esta análise do mestre Luís Preto no seu blog: “Defensively,
it is an art in which, regardless of the weapon being handled, the parries are
executed with the part of the weapon that corresponds to the edge of a bladed
weapon. As can be seen in the images below, the nuckles are always directed
outwards and, thus, the parry being shown is intercepting the incoming strike
with the same area of the defender's weapon, regardless of it being bladed or
round.” (in http://jogodopau.blogspot.pt/2013/12/jogo-do-pau-stick-or-sword-art.html).
Mas parece-me que cria confusão desnecessária a colocação de fotografias do uso
da bengala neste texto, uma vez que, como dizes, o “bastão português” ou “bengala
portuguesa” é uma modalidade desenvolvida pelo mestre Nuno Russo. Portanto não
pode ser “a medieval fencing skill, with either long sword or staffs”. Aliás, o
tamanho é mais próximo do da falcata lusitana do que do montante medieval...
Por outro lado, poderia ser interessante ver a execução dos sarilhos do jogo do pau com uma espada longa, como um montante.
Parece-me também que
uma coisa importante a ter em conta nestas análises é que a motricidade humana
não é apenas biológica, mas também culturalmente marcada. As pessoas andam,
dançam, sentam-se, gesticulam... e usam sistemas complexos de combate desarmado,
ou com armas tradicionais, de formas diferentes em diferentes culturas e
sociedades. Há muito em comum se compararmos os deslocamentos de um japonês com
uma katana ou com um jo, como há muito em comum se observarmos os movimentos de
um praticante de kalaripayattu com um pau ou com uma espada, é apenas natural
que haja coisas semelhantes em artes marciais desenvolvidas no extremo
ocidental da Europa, em que uma pode ter influenciado a outra, e que tenham
ataques de uma “wide-motion, bashing, power-oriented striking art“ como
acontece no jogo do pau e acontecia na esgrima de montante.
4- Lusitana refere-se neste caso de uma forma geral ao povo português, tal como “Os Lusiadas”, não se tenta limitar a um grupo de portugueses de um local especifico, mas de forma generalizada. Tal como Luso-Americano, refere-se a um Portugal e América e não a Entre Douro e Tejo e América.
Prefiro “portuguesa”
ou “lusa”, como em “equipa lusa”, por exemplo. Não gosto da designação de “lusitanos”
para os portugueses por várias razões. Uma é que é uma designação errada, na
época das invasões romanas os lusitanos coexistiam com outros povos nativos na
Península Ibérica e a sua área incluía uma parte do que agora é Portugal mais
ou menos entre o Douro e o Tejo e uma parte do que agora é a Espanha. Outra
razão é que me faz lembrar idiotices do tempo da historiografia salazarista,
como dias da raça e coisas assim. Carlos Consiglieri em “Os lusitanos e a
historiografia” fala das “ideias
ultra-românticas de historiadores que tentaram construir uma identidade
nacional a partir dos Lusitanos”, mas Portugal é um país de mestiçagens
várias, e a hipervalorização dos lusitanos faz-se à custa de desvalorizar as contribuições de outros povos que para cá vieram, incluindo os próprios
romanos. Diz-nos também a “História de Portugal” coordenada por Rui Ramos: “Como os estudos genéticos revelaram
recentemente, esta História deixou marcas na composição da população. Na
Península Ibérica, os portugueses são aqueles em cujos genes mais vestígios se
encontram de duas das mais importantes migrações para a Península desde o
século I: os judeus sefarditas, chegados do Médio Oriente no início da era
cristã, e os berberes muçulmanos, vindos do Norte de África no século VIII.”
E esta miscigenação é ainda mais acentuada no sul do país. Uma terceira razão é
que os espanhóis também têm invocado ao longo dos séculos o título de
descendentes dos lusitanos. Mauricio Pastor Muñoz, no seu livro “Viriato”
conta-nos sobre como a partir do século XVII se publicaram em Espanha livros
com Viriato como protagonista. P.ex.: “Assim,
A. González Bustos publica a sua comédia intitulada O Espanhol Viriato, onde enaltece a figura de Viriato.”
Depois, já no séc. XX: “Pouco depois,
Viriato, a quem o padre Mariana chama “libertador quase de Espanha”, passou a
denominar-se “caudilho Viriato” e é comparado a Francisco Franco. Em todos os
trabalhos que fazem referência a Viriato, principalmente nos manuais de
História de Espanha, insiste-se na imagem de Viriato como “caudilho” de Espanha”
(p. 263). E etc, etc. Mais recentemente a série de televisão espanhola “Hispania– La Leyenda” também faz equivaler as designações “lusitanos” e “espanhóis”.
5- Quase todas a técnicas de varapau europeias, Sejam italianas, francesas etc, utilizam o varapau de forma semelhante, isto é, em rotação completa, segurando numa das pontas. No entanto, práticamente só em Portugal se vê ainda a pratica de jogo do pau contra vários adversários. Não digo que seja tudo a mesma coisa, e creio que em Portugal, por alguma razão esta prática se preservou em excelente forma, mas não me surpreende existirem formas bastante similares por toda a Europa. O Garrote canário que vi e já experimentei com um mestre que nos visitou é substancialmente diferente do jogo do pau português.
O quarterstaff
inglês não é propriamente segurado pela ponta. Nem o maide ceathrún irlandês, a
acreditar em John W. Hurley (“Shillelagh – The Irish Fighting Stick”). Tenho o “TheMartial Arts of Renaissance Europe”, de Sydney Anglo, e logo na capa vê-se uma
imagem antiga de lutadores europeus a agarrarem o pau pelo meio. Nem a vara do
jogo do pau açoriano, de acordo com Luís Preto: “consists exclusively of single
combat, using the stick primarily at short distance by holding the stick in the
middle” (“Jogo do Pau – The Ancient Art and Modern Science of Portuguese Stick
Fighting”, p. 17). Mas concordo que haja uma tendência europeia para pegar no
pau pela ponta e bater em rotação.
6- O bastão português é de facto uma adaptação recente, e como é praticado hoje, é um aperfeiçoamento tomado a cabo pelo mestre Nuno Russo, o qual tem todo e quase exclusivo mérito por isso. As menções de utilização de bengala tradicionalmente são realmente muito esporádicas e não creio que nunca tenha sido uma pratica corrente. No entanto creio que a adaptação da técnica do varapau a bastões de um certo peso, é excelente e extremamente eficaz, refletindo todos os conceitos e princípios do varapau, inclusive o tal combate contra vários adversários, que é para mim, a melhor aplicação de armas para defesa pessoal que alguma vez vi.
Nada a dizer. O
mérito deve ser reconhecido, e a modalidade de bastão criada pelo mestre Nuno
Russo parece-me muito interessante como complemento ao jogo do pau tradicional.
Alonguei-me tanto que tive que dividir isto. São questões que requerem de facto discussão e agradeço o teu post por isso. Abraço.
Já agora, sabes
se há alguns livros sobre esgrima histórica em Portugal? Não as reedições dos
escritos na época em que ela ainda não era “histórica”, que mencionaste, mas
alguma coisa escrita nos últimos anos?
Um abraço,
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domingo, dezembro 01, 2013
Algumas questões de semântica em torno do jogo do pau
1.
Uma
é a embirração que têm com o nome da modalidade que praticam. Gostam do jogo do
pau, mas não gostam do nome por que tem sido designado de geração em geração.
Por isso chamam-lhe “esgrima lusitana”. Parece que o problema deles é com a
palavra “jogo”, talvez tenham receio de serem confundidos com jogadores
de micado ou de ai-manulin (1). O Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea,
da Academia das Ciências de Lisboa, publicado em 2001, tem entre as acepções da
palavra “jogo”: «manejo de uma arma. + de espada, de florete, de pau». E de
resto “jogar”, ou os seus equivalentes, tem uma longa tradição em diversas
artes marciais, quer do Ocidente quer do Oriente. A capoeira, antes de tornar
nesta modalidade de alegria e harmonia, de paz e amor, que se espalhou por
todos os cantos do mundo, foi um sistema de combate urbano usado em lutas que
frequentemente acabavam em mortes, no qual se usavam também paus, catanas e
navalhas (2), mas já nessa época os praticantes diziam que jogavam capoeira (3). Uma das regiões historicamente mais
importantes no desenvolvimento de muitos estilos de pencak silat (4) foi a parte ocidental da ilha de Java, de cultura
e língua sundanesa. Pois na região de Cianjur eles chamam, em sundanês, “maenpo” ao pencak silat, em que “maen” significa “jogar” (5). E, já agora, na Roma antiga as escolas de
gladiadores, onde eram treinados alguns dos lutadores com mais destreza técnica
para o combate até à morte do mundo antigo, eram chamados “ludus” (“ludi”, no
plural) (6), palavra que também está na origem da palavra portuguesa “lúdico”…
2.
Li
também que alguns consideram “enviesada” e “arrepiada” como palavras arcaicas.
Isso faz-me lembrar as conversas que tinha com alguns lisboetas, quando estava
na Faculdade, sobre os livros do Aquilino Ribeiro. A maioria só tinha lido, ou
tentado ler, “O Malhadinhas”, e dizia que o escritor usava muitas palavras
arcaicas. Eu por outro lado, moço de origens rurais, compreendia sem precisar
de ir ao dicionário uma percentagem muito maior do léxico do autor. Voltando
novamente ao Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia: “ao
arrepio – em direcção oposta à normal”; “enviesado/a – que se deslocou
obliquamente, na diagonal; que se moveu de esguelha, de viés”. No lugar de onde
venho estes são vocábulos normais do português actual.
3.
Dizem
alguns que o jogo do pau vem directamente da técnica medieval de esgrima do montante.
Que essa possa ser a sua origem remota é plausível. Quem habitualmente
desenvolvia sistemas tecnicamente complexos de combate eram as classes
guerreiras, o que no caso português seria a nobreza dos cavaleiros. Noutros
contextos culturais e históricos algo similar terá ocorrido com o arnis ou eskrima
(uma arte marcial filipina, rebaptizada “kali” por alguns estadunidenses de
origem filipina nos EUA), desenvolvido a partir do treino militar dado pelos padres
guerreiros jesuítas espanhóis às milícias do povo nas Visaias para se
defenderem das incursões dos piratas muçulmanos vindos de Mindanao (7). Mas em
Portugal o povo não tinha montantes. O povo alimentava a família com o que
cultivava nas terras em que vivia, mas que pertenciam aos senhores feudais ou
ao clero, e os homens do povo tinham que aceitar ser incorporados na infantaria
dos exércitos dos seus senhores em alturas de guerra. Na guerra medieval os
peões constituíam a maior parte dos efectivos dos exércitos, mas eram
pobremente armados. Usavam armas rudimentares, como chuços e alabardas de
diversos tipos, que em muitos casos não diferiam provavelmente muito de um pau
com choupa ou com uma foicinha na ponta. Portanto, se houver uma ligação antiga
entre o jogo do pau e a técnica de armas das guerras medievais, o mais provável
é que o seu antepassado não fosse a esgrima de montante propriamente dita, mas sim
uma adaptação feita pelos instrutores para as armas da peonagem, uma espécie de
“artes marciais para os pobres”. Eu nunca empunhei um montante real, mas
suponho que tenha um peso bastante diferente do de um chuço ou um pau, o que
imediatamente exige soluções técnicas distintas. No caso do pau, a adaptação da
técnica teria que ir muito mais longe, já que a vara (sem choupa) é uma arma de
impacto e o montante é uma arma de corte (apesar de o jogo do pau preservar
como característica importante o facto de não se agarrar o pau do adversário ou
o seu corpo – coisa perigosa com lâminas – ao contrário do que acontece
actualmente com muitos estilos de eskrima/arnis, ou com o sistema reconstruído
do “garrote” canário, e ter o cuidado de manter as mãos bem longe do alcance da
arma do adversário, ao contrário de muitas das artes marciais com pau deste
mundo).
Não
chega dizer que há documentos antigos que provam que o jogo do pau tem a mesma
técnica da esgrima do montante. Há que explicar de que forma é que o provam. E
não será porque os cavaleiros também chamavam às técnicas “arrepiadas” e “enviesadas”…
Em bojutsu também deve haver técnicas arrepiadas e enviesadas (com estas
denominações em japonês, claro), mas evidentemente não se pode invocar nem a
designação, nem a mera existência destes ângulos de ataque, para dizer que é
essa a origem do jogo do pau. E a referência ao bojutsu faz-me recordar um
vídeo a que assisti há muitos anos, mostrado pelo Mestre Nuno Russo no Ginásio
Clube Português, em que ele trocava umas pauladas amigáveis com um
nãoseiquantagésimo Dan de bojutsu, que se fartava de apanhar, coitado…
4.
E
“lusitana” porquê? A região dos lusitanos era uma zona entre os rios Douro e o
Tejo, e um pedaço da Espanha actual na mesma latitude, o que deixa de fora as
regiões do Minho e Trás-os-Montes, tradicionalmente consideradas os mais
importantes centros de irradiação do jogo do pau. Para além disso, ainda que
provavelmente andassem também à paulada de vez em quando, não poderiam fazer
jogo do pau se este vier da técnica da esgrima do montante medieval… A
verdadeira “esgrima lusitana” seria provavelmente o manejo da falcata!
5.
Não
sei o suficiente sobre o “jeux de baton”
francês para poder ter uma opinião sobre se é igual, ou semelhante,
tecnicamente ao jogo do pau português. Os estilos de juego del palo tradicionais das Canárias parecem-me ter diferenças
técnicas importantes, pelo menos na forma que chegou aos nossos dias como
resultado de uma prática contínua de geração em geração (não estou a incluir o “garrote”,
que várias fontes dizem ser o que se chama uma prática reconstituída, como a
esgrima histórica que se faz actualmente em vários países). Parecer-me-ia
difícil argumentar que as técnicas do juego
del palo canário sejam semelhantes às do manejo do montante de guerra.
Conheço
referências ao jogo do pau nas zonas da raia galega, o que faz todo o sentido
dada a porosidade da fronteira para os membros das comunidades rurais da zona e
a continuidade linguística e cultural entre galegos e portugueses do Norte.
Seria interessante saber se há descrições de sistemas tecnicamente semelhantes
ao jogo do pau que tenham existido noutras regiões de Espanha. E, já agora, se
tiverem existido, porque é que se extinguiram, ao contrário dos sistemas
português continental, açoriano, e canário… Suponho que noutras zonas de
Espanha há também populações rurais, conservadoras, que andavam de cajado na
mão… e que tinham antepassados incorporados nos exércitos dos seus senhores na
Idade Média.
6.
Nalguns
textos invoca-se uma origem histórica para a modalidade de “bastão português”
praticada nas escolas ligadas ao Mestre Nuno Russo. Diz-se que os varredores de
feiras iam lutar de bengala para as feiras após a proibição das varas nos
recintos das mesmas (?), ou que as populações urbanas andavam de bengala e
teria havido uma adaptação do jogo do pau tradicional para o uso da bengala.
Mais uma vez, uma destas ideias – a segunda – é plausível, mas ainda não a vi
provada. A canne francesa está bem
documentada historicamente (8), mas ainda não tive conhecimento de documentação,
ou de uma tradição, que mostre que tenha havido um desenvolvimento semelhante
em Portugal, ou uma continuidade de evolução técnica no passado entre o jogo do
pau e a “bengala ou bastão português”. A História não se escreve com base em
argumentação do tipo “não temos provas, mas achamos que devia ter existido e
devia ter sido assim”. Dito isto, parece-me um desenvolvimento interessante
esta técnica de “bastão português” que temos visto aparecer nas últimas duas
décadas, que pode inclusivamente atrair pessoas pela sua mais fácil aplicação
na autodefesa (hoje em dia já pouca gente anda de cajado…). Mas se é um
desenvolvimento recente porque não assumi-lo e dar o devido crédito ao(s)
Mestre(s) que o desenvolveu(veram)? Claro que os praticantes ficam sempre com a
opção de procurar uma escola onde se faça apenas jogo do pau tradicional, com
vara longa, mas quem gostar pode ir aprender este novo “bastão português”
sabendo ao que vai…
Enfim,
alguns pensarão que nada disto é importante, mas eu pessoalmente gostaria de
ver aparecer mais investigação séria sobre o desenvolvimento do jogo do pau.
Para quem se interessa por este assunto, termino recomendando a leitura regular
do excelente blog de pesquisa sobre referências à arte marcial portuguesa ao
longo dos tempos que se pode encontrar neste link http://jogodopau.tumblr.com/ .
(1)
Ai-manulin - jogo infantil timorense em que
envolve o lançamento de um pauzinho.
(2)
A introdução da navalha como uma arma que se
tornaria tradicional na capoeira deve-se aos fadistas e outros imigrantes
portugueses no Brasil.
(3)
Ver, entre outros, Capoeira – The History of an Afro-Brazilian Martial Art, de Mathias
Röhrig Assunção,
um excelente livro sobre a história da capoeira, que deveria servir de
inspiração a qualquer historiador de uma arte marcial.
(4)
Pencak silat (lê-se [pêntchak sílat]) – um nome
genérico para artes marciais oriundas da Indonésia, Malásia, Brunei,
Timor-Leste e partes do Sul das Filipinas.
(5)
Ver “Pencak
Silat merentang waktu”, de O’ong Maryono, na pág. 196.
(6)
Ver p.ex. “The
Gladiators”, de Fix Meijer, pág. 39.
(7)
Ver o interessante ensaio de Ned R. Nepangue e
Celestino C. Macachor intitulado “Cebuano Eskrima – Beyond the Myth”.
(8)
Consultar, por exemplo, “Histoire de la savate,
du chausson et de la boxe française (1797-1978)", de Jean-Grançois Loudcher, um
livro sobre a história das artes marciais francesas metodologicamente sério na
sua investigação.
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quinta-feira, maio 02, 2013
Pequenas histórias muito simples para crianças muito pequenas
Nos últimos anos tem aparecido em Timor-Leste uma profusão
de materiais básicos escritos em tétum e em várias outras línguas locais, sob a
forma de cartilhas ou pequenas histórias muito simples para crianças muito
pequenas. A escassez de materiais para crianças maiores deve-se provavelmente
ao facto de estes serem mais difíceis de criar. Sejamos sinceros, qualquer
pessoa pode tirar meia dúzia de fotografias, ou fazer alguns desenhos, e colocar-lhe
umas legendas por baixo, em tétum ou noutra língua, e fica uma cartilha feita.
Claro que há uma grande diferença entre uma dessas cartilhas e um manual
escolar para a fase de alfabetização concebido com critérios pedagogicamente
adequados. Da mesma forma têm aparecido vários livrinhos com histórias simples,
normalmente algumas frases acompanhadas por desenhos, que podem ser lidos a
crianças até aos 4-5 anos pelos pais ou irmãos mais velhos, e podem ser lidos
pelas próprias crianças por volta dos seis anos de idade. São úteis e estão a
preencher uma lacuna que existe em Timor-Leste, mas deveriam ser acompanhados
de materiais mais ambiciosos para outras faixas etárias.
Um exemplo deste tipo de histórias é o livrinho *“Avoo Leto - Tau foer ba foer fatin”,
em que um avô ensina ao neto a importância de não atirar lixo para o
chão (o que é um hábito extremamente generalizado em Timor-Leste). Um livro de
intenção pedagógica, que cumpre o que se propõe, com uns desenhos bonitos, mas
que infelizmente não pode ser distribuído nas escolas devido à quantidade de erros ortográficos que tem.
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