Volta e meia surge um texto de algum estudante das coisas das
línguas em Timor a dizer que o tétum é um crioulo de base lexical portuguesa, o
que é tão correto como dizer que o inglês é, na verdade, um crioulo de base
lexical francesa.
Este livro (“Ordered Profusion
– Studies in Dictionaries and the English Lexicon”), por exemplo, diz que no
“Shorter Oxford English Dictionary”
28,30% das palavras têm origem no francês antigo, incluindo o anglo-francês, ou
no francês; 28,24% são de proveniência latina; e apenas 25% do vocabulário é de
origem germânica (juntando aqui também o inglês antigo, o inglês médio, o nórdico
antigo e o holandês.
O tétum não é um crioulo de base lexical portuguesa; podemos
considerar que o tétum-praça é um crioulo cuja base lexical é o tétum-téric, o
português surge só como um superestrato posterior. A zona de Díli era originalmente
de língua mambai. É possível que muitos dos cerca de 1200 indivíduos (dos quais
15 eram brancos) que para cá vieram aquando da transferência da capital de
Lifau para aqui falassem um crioulo de base lexical portuguesa semelhante ao
crioulo de Malaca (ainda conhecido por alguns habitantes do antigo bairro de Bidau
na década de 50 do séc. XX), mas não falavam tétum (língua pouco relevante na
parte ocidental da ilha). O afluxo de gentes de vários lugares à capital provavelmente
levou a que o tétum, que na parte oriental da ilha já funcionava como língua
franca entre os vários reinos, se tornasse a língua de Díli. As línguas francas
tornam-se muitas vezes o idioma da população do centro urbano mais importante da
sua região; veja-se os casos do malaio Betawi que se tornou a língua de Batávia
(atual Jacarta), o crioulo malaio em Cupão e o crioulo guineense em Bissau. O
uso do tétum como língua segunda por uma grande quantidade de falantes de outros
idiomas, com destaque para os mambais, levou a que passasse por um processo de
simplificação, a que podemos chamar crioulização, mas continuando a ser de
origem tétum boa parte do léxico básico deste tétum-praça. Numa primeira fase
absorveu também muitos termos do malaio, língua franca do comércio entre ilhas,
depois passou por um processo de relexificação parcial com vocabulário do
português (daí que o tétum-praça atual – e não obstante algumas propostas
puristas recentes – inclua grande percentagem de léxico de origem portuguesa,
não apenas para os registos mais elevados e os domínios mais técnicos, mas
também para coisas do dia a dia como a fauna e flora locais, as saudações entre
as pessoas e os termos de parentesco). Mas continua a ser suficiente comparar
uma lista de Swadesh para o tétum-praça e para um crioulo de base lexical
portuguesa para ver as diferenças…
Outra coisa que se lê de vez em quando é que o tétum-praça se
chamaria assim por ser a língua do mercado. Devem pensar que estão da praça do
peixe de alguma vila piscatória portuguesa… A praça de armas era onde residia o
governador e a sua guarnição, era o centro urbano. O tétum-praça era portanto o
tétum da cidade (por modesta que fosse a cidade).
1 comentário:
Boa!!! E este é um ponto de importante diferenciação com os crioulos africanos e indo-portugueses, estes sim de base portuguesa.
Vai um texto bacana para se pensar a dimensão crioula de todas as línguas!!!!
http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/4568.pdf
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