1.
Uma
é a embirração que têm com o nome da modalidade que praticam. Gostam do jogo do
pau, mas não gostam do nome por que tem sido designado de geração em geração.
Por isso chamam-lhe “esgrima lusitana”. Parece que o problema deles é com a
palavra “jogo”, talvez tenham receio de serem confundidos com jogadores
de micado ou de ai-manulin (1). O Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea,
da Academia das Ciências de Lisboa, publicado em 2001, tem entre as acepções da
palavra “jogo”: «manejo de uma arma. + de espada, de florete, de pau». E de
resto “jogar”, ou os seus equivalentes, tem uma longa tradição em diversas
artes marciais, quer do Ocidente quer do Oriente. A capoeira, antes de tornar
nesta modalidade de alegria e harmonia, de paz e amor, que se espalhou por
todos os cantos do mundo, foi um sistema de combate urbano usado em lutas que
frequentemente acabavam em mortes, no qual se usavam também paus, catanas e
navalhas (2), mas já nessa época os praticantes diziam que jogavam capoeira (3). Uma das regiões historicamente mais
importantes no desenvolvimento de muitos estilos de pencak silat (4) foi a parte ocidental da ilha de Java, de cultura
e língua sundanesa. Pois na região de Cianjur eles chamam, em sundanês, “maenpo” ao pencak silat, em que “maen” significa “jogar” (5). E, já agora, na Roma antiga as escolas de
gladiadores, onde eram treinados alguns dos lutadores com mais destreza técnica
para o combate até à morte do mundo antigo, eram chamados “ludus” (“ludi”, no
plural) (6), palavra que também está na origem da palavra portuguesa “lúdico”…
2.
Li
também que alguns consideram “enviesada” e “arrepiada” como palavras arcaicas.
Isso faz-me lembrar as conversas que tinha com alguns lisboetas, quando estava
na Faculdade, sobre os livros do Aquilino Ribeiro. A maioria só tinha lido, ou
tentado ler, “O Malhadinhas”, e dizia que o escritor usava muitas palavras
arcaicas. Eu por outro lado, moço de origens rurais, compreendia sem precisar
de ir ao dicionário uma percentagem muito maior do léxico do autor. Voltando
novamente ao Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia: “ao
arrepio – em direcção oposta à normal”; “enviesado/a – que se deslocou
obliquamente, na diagonal; que se moveu de esguelha, de viés”. No lugar de onde
venho estes são vocábulos normais do português actual.
3.
Dizem
alguns que o jogo do pau vem directamente da técnica medieval de esgrima do montante.
Que essa possa ser a sua origem remota é plausível. Quem habitualmente
desenvolvia sistemas tecnicamente complexos de combate eram as classes
guerreiras, o que no caso português seria a nobreza dos cavaleiros. Noutros
contextos culturais e históricos algo similar terá ocorrido com o arnis ou eskrima
(uma arte marcial filipina, rebaptizada “kali” por alguns estadunidenses de
origem filipina nos EUA), desenvolvido a partir do treino militar dado pelos padres
guerreiros jesuítas espanhóis às milícias do povo nas Visaias para se
defenderem das incursões dos piratas muçulmanos vindos de Mindanao (7). Mas em
Portugal o povo não tinha montantes. O povo alimentava a família com o que
cultivava nas terras em que vivia, mas que pertenciam aos senhores feudais ou
ao clero, e os homens do povo tinham que aceitar ser incorporados na infantaria
dos exércitos dos seus senhores em alturas de guerra. Na guerra medieval os
peões constituíam a maior parte dos efectivos dos exércitos, mas eram
pobremente armados. Usavam armas rudimentares, como chuços e alabardas de
diversos tipos, que em muitos casos não diferiam provavelmente muito de um pau
com choupa ou com uma foicinha na ponta. Portanto, se houver uma ligação antiga
entre o jogo do pau e a técnica de armas das guerras medievais, o mais provável
é que o seu antepassado não fosse a esgrima de montante propriamente dita, mas sim
uma adaptação feita pelos instrutores para as armas da peonagem, uma espécie de
“artes marciais para os pobres”. Eu nunca empunhei um montante real, mas
suponho que tenha um peso bastante diferente do de um chuço ou um pau, o que
imediatamente exige soluções técnicas distintas. No caso do pau, a adaptação da
técnica teria que ir muito mais longe, já que a vara (sem choupa) é uma arma de
impacto e o montante é uma arma de corte (apesar de o jogo do pau preservar
como característica importante o facto de não se agarrar o pau do adversário ou
o seu corpo – coisa perigosa com lâminas – ao contrário do que acontece
actualmente com muitos estilos de eskrima/arnis, ou com o sistema reconstruído
do “garrote” canário, e ter o cuidado de manter as mãos bem longe do alcance da
arma do adversário, ao contrário de muitas das artes marciais com pau deste
mundo).
Não
chega dizer que há documentos antigos que provam que o jogo do pau tem a mesma
técnica da esgrima do montante. Há que explicar de que forma é que o provam. E
não será porque os cavaleiros também chamavam às técnicas “arrepiadas” e “enviesadas”…
Em bojutsu também deve haver técnicas arrepiadas e enviesadas (com estas
denominações em japonês, claro), mas evidentemente não se pode invocar nem a
designação, nem a mera existência destes ângulos de ataque, para dizer que é
essa a origem do jogo do pau. E a referência ao bojutsu faz-me recordar um
vídeo a que assisti há muitos anos, mostrado pelo Mestre Nuno Russo no Ginásio
Clube Português, em que ele trocava umas pauladas amigáveis com um
nãoseiquantagésimo Dan de bojutsu, que se fartava de apanhar, coitado…
4.
E
“lusitana” porquê? A região dos lusitanos era uma zona entre os rios Douro e o
Tejo, e um pedaço da Espanha actual na mesma latitude, o que deixa de fora as
regiões do Minho e Trás-os-Montes, tradicionalmente consideradas os mais
importantes centros de irradiação do jogo do pau. Para além disso, ainda que
provavelmente andassem também à paulada de vez em quando, não poderiam fazer
jogo do pau se este vier da técnica da esgrima do montante medieval… A
verdadeira “esgrima lusitana” seria provavelmente o manejo da falcata!
5.
Não
sei o suficiente sobre o “jeux de baton”
francês para poder ter uma opinião sobre se é igual, ou semelhante,
tecnicamente ao jogo do pau português. Os estilos de juego del palo tradicionais das Canárias parecem-me ter diferenças
técnicas importantes, pelo menos na forma que chegou aos nossos dias como
resultado de uma prática contínua de geração em geração (não estou a incluir o “garrote”,
que várias fontes dizem ser o que se chama uma prática reconstituída, como a
esgrima histórica que se faz actualmente em vários países). Parecer-me-ia
difícil argumentar que as técnicas do juego
del palo canário sejam semelhantes às do manejo do montante de guerra.
Conheço
referências ao jogo do pau nas zonas da raia galega, o que faz todo o sentido
dada a porosidade da fronteira para os membros das comunidades rurais da zona e
a continuidade linguística e cultural entre galegos e portugueses do Norte.
Seria interessante saber se há descrições de sistemas tecnicamente semelhantes
ao jogo do pau que tenham existido noutras regiões de Espanha. E, já agora, se
tiverem existido, porque é que se extinguiram, ao contrário dos sistemas
português continental, açoriano, e canário… Suponho que noutras zonas de
Espanha há também populações rurais, conservadoras, que andavam de cajado na
mão… e que tinham antepassados incorporados nos exércitos dos seus senhores na
Idade Média.
6.
Nalguns
textos invoca-se uma origem histórica para a modalidade de “bastão português”
praticada nas escolas ligadas ao Mestre Nuno Russo. Diz-se que os varredores de
feiras iam lutar de bengala para as feiras após a proibição das varas nos
recintos das mesmas (?), ou que as populações urbanas andavam de bengala e
teria havido uma adaptação do jogo do pau tradicional para o uso da bengala.
Mais uma vez, uma destas ideias – a segunda – é plausível, mas ainda não a vi
provada. A canne francesa está bem
documentada historicamente (8), mas ainda não tive conhecimento de documentação,
ou de uma tradição, que mostre que tenha havido um desenvolvimento semelhante
em Portugal, ou uma continuidade de evolução técnica no passado entre o jogo do
pau e a “bengala ou bastão português”. A História não se escreve com base em
argumentação do tipo “não temos provas, mas achamos que devia ter existido e
devia ter sido assim”. Dito isto, parece-me um desenvolvimento interessante
esta técnica de “bastão português” que temos visto aparecer nas últimas duas
décadas, que pode inclusivamente atrair pessoas pela sua mais fácil aplicação
na autodefesa (hoje em dia já pouca gente anda de cajado…). Mas se é um
desenvolvimento recente porque não assumi-lo e dar o devido crédito ao(s)
Mestre(s) que o desenvolveu(veram)? Claro que os praticantes ficam sempre com a
opção de procurar uma escola onde se faça apenas jogo do pau tradicional, com
vara longa, mas quem gostar pode ir aprender este novo “bastão português”
sabendo ao que vai…
Enfim,
alguns pensarão que nada disto é importante, mas eu pessoalmente gostaria de
ver aparecer mais investigação séria sobre o desenvolvimento do jogo do pau.
Para quem se interessa por este assunto, termino recomendando a leitura regular
do excelente blog de pesquisa sobre referências à arte marcial portuguesa ao
longo dos tempos que se pode encontrar neste link http://jogodopau.tumblr.com/ .
(1)
Ai-manulin - jogo infantil timorense em que
envolve o lançamento de um pauzinho.
(2)
A introdução da navalha como uma arma que se
tornaria tradicional na capoeira deve-se aos fadistas e outros imigrantes
portugueses no Brasil.
(3)
Ver, entre outros, Capoeira – The History of an Afro-Brazilian Martial Art, de Mathias
Röhrig Assunção,
um excelente livro sobre a história da capoeira, que deveria servir de
inspiração a qualquer historiador de uma arte marcial.
(4)
Pencak silat (lê-se [pêntchak sílat]) – um nome
genérico para artes marciais oriundas da Indonésia, Malásia, Brunei,
Timor-Leste e partes do Sul das Filipinas.
(5)
Ver “Pencak
Silat merentang waktu”, de O’ong Maryono, na pág. 196.
(6)
Ver p.ex. “The
Gladiators”, de Fix Meijer, pág. 39.
(7)
Ver o interessante ensaio de Ned R. Nepangue e
Celestino C. Macachor intitulado “Cebuano Eskrima – Beyond the Myth”.
(8)
Consultar, por exemplo, “Histoire de la savate,
du chausson et de la boxe française (1797-1978)", de Jean-Grançois Loudcher, um
livro sobre a história das artes marciais francesas metodologicamente sério na
sua investigação.