Só falo português com o meu filho de quatro meses. Canto-lhe desde o primeiro dia a Canção de Embalar do José Afonso para o adormecer (que ele reconhece perfeitamente) e ando-lhe a ler o Romance da Raposa, de Aquilino Ribeiro. Ele gosta muito, provavelmente do som da voz acompanhado de sorrisos e contacto visual, já que as aventuras da raposa matreira, fagueira e lambisqueira ainda estão, por enquanto, para além da sua compreensão. A minha esposa, por outro lado, só fala tétum com ele. Eu e ela conversamos sempre em tétum um com o outro, mas usamos português com os meus pais que moram aqui ao lado. O nosso filho será bilingue. Aqui é uma coisa rara, em Timor é o que acontece com quase toda a gente. A minha mulher falava habitualmente tétum em casa, tocodede com parte dos tios e vizinhos em Liquiçá, e indonésio em todo o percurso escolar até ao fim da escola secundária. Quando foi para Díli para a Universidade passou a estudar em português e morou durante três anos em casa de tios de etnia chinesa, do lado materno, falantes de hakka. Ela sabe apenas algumas frases básicas nesta língua, mas temos esperança de voltar brevemente para Timor e dar oportunidade ao nosso bebé de contactar diariamente com as primas chinesas, acrescentando assim mais um idioma aos que ele dominará desde tenra idade.
Há aldeias timorenses que ficam em zonas de fronteira entre várias línguas diferentes e onde é comum toda a gente ser plurilingue. Porém, não é a mesma coisa ser multilingue em tétum, búnac e quêmac, ou em português, alemão e francês. Não há Aquilinos nem Goethes nem Zolas em línguas timorenses. Por enquanto. Isto significa que ao encetar a aprendizagem de um novo idioma com uma grande tradição literária e científica o aprendente inicia uma caminhada que o pode levar muito longe no conhecimento das realizações do espírito humano, mas quando se propõe aprender uma língua quase ágrafa o seu percurso será necessariamente diferente e serão outras as tradições que poderá ter esperança de vislumbrar. Os plurilingues timorenses falam maioritariamente idiomas que abrem portas internas dentro da sua ilha, mas que não constituem janelas para o mundo, nem sequer para a sua própria história. Daí que o português seja tão importante.
Na imaginação popular os bilingues são umas criaturas esquisitas, uma espécie de bicéfalos, com dois cérebros monolingues perfeitos independentes no mesmo corpo. Os textos clássicos falam sobre estratégias para conseguir isto, a mais famosa das quais é ter pessoas distintas a falar sistematicamente línguas diferentes para a criancinha na fase de aquisição da linguagem, como acontece com o meu filho – chama-se a isto o princípio de Grammont. Na verdade, a investigação mais recente sobre bilinguismo já se apercebeu de algo que as pessoas das comunidades bilingues sabem há muito tempo: os indivíduos bilingues não são uma fusão de dois monolingues num só, e misturam línguas, saltam de um idioma para outro no meio de uma conversa, e fazem tudo isto de acordo com regras definidas de forma bem rigorosa. Contudo, apesar de não corresponderem às expectativas irrealistas do povo, os bilingues precoces têm vantagens significativas na sua condição de co-proprietários de várias línguas: conseguem falar com mais gente e com grupos diversos; experimentam naturalmente a sensação de pertença a diferentes culturas; têm pronúncias nativas em mais do que uma língua, e, tendo à partida maiores probabilidades de ter uma soma mais abrangente de sons no conjunto dos seus sistemas fonológicos, terão maior facilidade em aprender a pronunciar correctamente novos idiomas; têm acesso à literatura ou outras realizações culturais associadas a cada uma das línguas que conhecem.
Na Europa cada vez mais se valoriza o conhecimento de muitas línguas, há quem defenda que todos os cidadãos europeus deveriam conhecer pelo menos mais duas, além da materna. Mas saber línguas também já não é o que era, hoje em dia é valorizado o conhecimento em função das necessidades. Já passou o tempo em que se esperava que todos os alunos de uma língua estrangeira aprendessem a ler os grandes escritores. Agora fala-se cada vez mais em ensino-aprendizagem centrado no aprendente e por objectivos específicos. E também há muito que deixou de haver a insistência nas supostas grandes virtudes pedagógicas da aprendizagem de línguas mortas como o latim e o grego antigo (mortas porque já não há quem as aprenda num processo normal de imersão na família na fase de aquisição da linguagem, apesar de o latim continuar a ser cultivado no Vaticano, onde até se criam neologismos).
E de vez em quando usam-se línguas vivas para falar com os mortos. Na casa dos meus sogros toda a gente sabe tocodede, mas a língua habitual quotidiana é o tétum, e é neste idioma que falam comigo. Mas quando fui levado à uma-lulik da família para ser apresentado como mane-foun aos espíritos dos antepassados, foi em tocodede que o meu sogro se lhes dirigiu. Às vezes a tradição ainda é o que era.
2 comentários:
JP,
Entendo perfeitamente a tua postagem. Tenho duas línguas maternas, porque em casa falava-se as duas, pois a minha mãe é macassae e o meu pai era naueti. Falávamos e falamos com a mãe em macassae; e com o pai apenas naueti. Mas, em algumas situações, na presença de falantes só macassae que não falam naueti e a mãe não quer que eles saibam aquilo que ela nos quer transmitir, a mãe fala naueti connosco. E entre nós, quando crianças, falávamos apenas naueti.
A partir de 1975, vivendo no seio de outros timorenses falantes de tétum, insensivelmente, passámos a falar também tétum entre nós, os irmãos. Entretanto, a nossa família aumentou com o nascimento de mais sobrinhos e filhos, e, assim, falamos com eles apenas português; mas, eles entendem e falam também o tétum quando necessário, mesmo em Lisboa.
Voltando um pouco atrás, temos duas línguas maternas (por vezes misturamos as duas línguas numa conversa, isto é, um está a falar macassae e o outro inconscientemente responde-lhe em naueti), e como segunda língua e língua de trabalho e de sobrevivência português. O tétum é apenas a terceira língua; no meu caso adquri-a aos dezasseis anos, por incrível que pareça, em Lisboa.
Há um dado que importa realçar. Quando estamos a discutir uma questão (com uma certa zanga), utilizamos, inconscientemente, o português.
Assim, o ser bilingue ou multilingue a mim só me tem ajudado a raciocinar melhor (pois, uma língua traduz uma certa visão da realidade circundante de um dado espaço/lugar e também de um dado tempo / de uma época histórica em concreto) e
a facilitar a aprendizagem de outras línguas estrangeiras quando era necessário.
Abraço.
Sebastião
João Paulo, este texto é belíssimo.
Um abraço para vocês (para o pequenino João, um bjito)
Margarida
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