domingo, novembro 26, 2006

Um excelente livro sobre Timor

I don’t want them forgotten: Rosa, Osvaldo, Raoul, Maria, Martinho, Arsenio. It would be easy to say in the glib way of those who can lead uninterrupted lives in placid places that such oblivion would be a fate worse that death. No fate is worse than death.

[Timothy Mo – The redundancy of courage. London, Paddleless Press, 2002, p. 7 (1st ed: Chatto and Windus 1991)]

Não quero que eles sejam esquecidos: Rosa, Osvaldo, Raul, Maria, Martinho, Arsénio. Seria fácil dizer da forma superficial daqueles que podem levar vidas ininterruptas em lugares plácidos que tal esquecimento seria um destino pior que a morte. Nenhum destino é pior que a morte.

[Timothy Mo – A redundância da coragem. Lisboa, Puma Editora, 1992, p. 9]


Ha’u lakohi ema haluha sira: Rosa, Osvaldo, Raul, Maria, Martinho, Arsénio. Sei fasil atu dehan, ho jeitu laseriu hanesan ema ne’ebé hala’o sira-nia moris ho kalma no dame iha fatin hakmatek, katak haluha sira hanesan ne’e sei sai destinu aat liu duké mate. La iha destinu aat liu duké mate.

[Timothy Mo – The redundancy of courage. London, Paddleless Press, 2002, p. 7 – tradusaun ba tetun husi JP Esperança ho Fernanda Correia]


A bra’is atu bligu ro’o: Rosa, Osvaldo, Raul, Maria, Martinho, Arsénio. Heki fasil odi dale, los jeitu tetseriu megees atu mane punsole ro’o-si’i mori los kalma los dame her hati tenega, ke bligu ro’o megees kede’e heki sai destinu klao desi duké mate. Tet dia destinu klao desi duké mate.

[Timothy Mo – The redundancy of courage. London, Paddleless Press, 2002, p. 7 – tradusaun la tokodede pe JP Esperança los Fernanda Correia]



There’s no such thing as a hero – only ordinary people asked extraordinary things in terrible circumstances, and delivering.

[Timothy Mo – The redundancy of courage. London, Paddleless Press, 2002, p. 448 (1st ed: Chatto and Windus 1991)]


Não há uma coisa a que se chama herói – apenas pessoas vulgares pediam coisas extraordinárias em circunstâncias terríveis – e entrega.

[Timothy Mo – A redundância da coragem. Lisboa, Puma Editora, 1992, p. 543]


Os heróis não existem – apenas pessoas vulgares a quem são pedidas coisas extraordinárias em circunstâncias terríveis, e que as fazem.

[Timothy Mo – The redundancy of courage. London, Paddleless Press, 2002, p. 448 – a tradução para português é minha]

Buat ida naran erói la eziste – iha de’it ema baibain ne’ebé tenke halo buat estraordináriu iha situasaun aat tebetebes, maibé konsege halo duni.

[Timothy Mo – The redundancy of courage. London, Paddleless Press, 2002, p. 448 – tradusaun ba tetun husi JP Esperança ho Fernanda Correia]


Lapar iso gala erói tet eziste – dia mesa atu normál mane tenke punu lapar estraordináriu her situasaun klao lobaloba, mas konsege punu riko.
[Timothy Mo – The redundancy of courage. London, Paddleless Press, 2002, p. 448 – tradusaun la tokodede pe JP Esperança los Fernanda Correia]

Jornalismo moderno

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terça-feira, novembro 14, 2006

Sorriso lindo


Ola familia e amigos. Por aqui continuamos todos bem e felizes.

quinta-feira, novembro 09, 2006

Blogosfera, conspirações e artes marciais

A crise, a blogosfera e a liberdade de expressão

Há um blog que se destacou especialmente durante o período mais agudo da crise recente em Timor, pelo número de visitas e porque, não obstante a sua não escondida parcialidade (anti-Austrália, anti-Xanana, anti-Ramos Horta, anti-Igreja timorense), teve um papel muito importante nos dias de caos nas ruas, há alguns meses atrás, quando a capital vivia a ferro e fogo. Era ao “Timor-Online” que recorríamos para saber que supermercado tinha a porta entreaberta para vender produtos essenciais quando todo o comércio estava fechado a sete chaves, era neste blog que líamos a cobertura mais actualizada do que ia acontecendo (também cheguei a participar umas quantas vezes com pequenas informações do que ia vendo por aí: “evitem a área tal porque está neste momento sob ataque”, “no sítio tal estão uns tipos com armas”, “os australianos já chegaram e andam a passear os tanques e a posar para a fotografia em frente ao Hotel Timor”). Depois, à medida que a situação foi acalmando e se começou a caminhar para a normalidade, o blog perdeu essa dimensão que era o seu aspecto mais interessante, mas continuo a espreitar de vez em quando o que lá se diz, principalmente porque, apesar das opiniões facciosas das pessoas que o fazem, os comentários são um interessante espaço de debate onde podemos ler as outras opiniões sobre o que por cá se vai passando.

Há dias dizia-se lá que tinha havido ameaças de morte contra os promotores do blog, o que é preocupante. Podemos não concordar com as opiniões da pessoa que se esconde no anonimato do pseudónimo Malai Azul, mas a liberdade de expressão é um direito inatacável. Quando eu tive um período de alguma actividade num grupo da Amnistia Internacional em Lisboa, no tempo do saudoso José Manuel Cabral – um valoroso amigo que nos deixou demasiado cedo – a A.I. vendia umas camisolas de manga curta com uma frase de Voltaire: “Posso não concordar com o que estás a dizer, mas defenderei até à morte o teu direito de o dizeres”. Seria muito bom se fossem feitos uns milhares de camisolas dessas para distribuir cá em Timor.

As artes marciais têm culpa da crise?

Apareceu há pouco tempo na imprensa a notícia de um relatório encomendado pelos australianos, onde se falava de possíveis ligações de grupos de artes marciais a partidos políticos aqui em Timor, e sobre o papel desses grupos na instabilidade no país. Não li o relatório, pelo que não posso pronunciar-me sobre o seu mérito, mas algumas notícias tinham um tom alarmista, muito distante da realidade, e por vezes traziam uma lista de organizações e respectiva suposta filiação. Parte das organizações da tal lista não têm nada a ver com artes marciais nem com grupos de jovens. A CPD-RDTL, por exemplo, é uma estrutura dissidente da Fretilin com grupos organizados por todo o país, entre a população rural principalmente, que se tem destacado pela rejeição da actual Constituição (defendiam – não sei se continuam a fazê-lo – que só a Constituição da Fretilin de 1975, de partido único, marxista-leninista, era válida). Também rejeitavam a transformação das Falintil em FDTL, e o Governo liderado por Mari Alkatiri, e várias outras coisas do actual Estado leste-timorense – diziam por vezes nos jornais que tudo isto era criação dos malais da ONU. Tinham uma postura pública bastante visível na época da UNTAET e nos primeiros tempos da independência, mas ultimamente não se tem ouvido falar tanto deles.

Os malais lunáticos que todos os dias aparecem com uma nova teoria da conspiração, onde aumenta o número e variedade dos conspiradores, ficaram eufóricos e vieram logo para os seus blogs e para as mesas do bar do Hotel Timor explicar a quem os quisesse ouvir como as escolas de artes marciais junto com os partidos da oposição estavam por detrás da onda de violência e ajustes de contas que tem assolado Timor. Ignoraram sistematicamente (não colocando negrito, não mencionando nos títulos – que eram do género “O que a Comissão de Inquérito da ONU escondeu”) a parte das notícias que referia que: «uma das conclusões chave do relatório é que centenas de pequenos grupos de jovens estão "a tentar, de maneiras diferentes mas positivas, engajarem-se e unificarem as suas comunidades " ».

Insistiam numa suposta ligação da PSHT – Persaudaraan Setia Hati Terate (Irmandade do Coração Leal da Flor-de-Lótus) aos dois principais partidos da oposição. Não mencionavam a ligação oficial e assumida publicamente do KORKA (Kmanek Oan Rai Klaran) à Fretilin. Quando o KORKA aderiu à Fretilin Xanana Gusmão e outros manifestaram publicamente a sua apreensão, perguntando se era intenção deste partido passar a dispôr de uma milícia privada. Tinham presente o exemplo da Indonésia onde Prabowo Subianto tinha tentado usar algumas organizações de pencak silat como uma extensão do partido do Governo, GOLKAR. Prabowo promoveu mesmo o estabecimento de uma nova organização, os Satria Muda Indonesia (Jovens Cavaleiros da Indonésia), que tinha uma relação de total promiscuidade com os Kopassus, e que foi activamente implantada por ele também aqui em Timor. Também a PSHT foi promovida por elementos dos Kopassus aqui em Timor-Leste, provavelmente por ser considerada mais um elemento de “indonesificação” da juventude local, mas contrariamente à SMI a PSHT tinha uma história quase centenária e tradições espirituais bastante mais profundas do que os partidarizados Satria Muda Indonesia. Provavelmente é por isso que, como nota Ian Douglas Wilson em The Politics of Inner Power: The Practice of Pencak Silat in West Jawa, a PSHT continua normalmente a sua actividade no novo país independente (como noutros: França, Holanda, Rússia, etc...) enquanto a SMI desapareceu com a saída dos indonésios (e parece que muitos SMI estiveram activos nas milícias em 1999). Perante as críticas por a Fretilin ter acolhido uma organização de artes marciais no partido, Mari Alkatiri disse que era sua intenção disciplinar a actividade dos jovens do Korka. A entrada para o partido no poder parece não ter provocado grandes alterações nas actividades públicas do Korka, continuaram a aparecer ocasionalmente pequenos episódios de porrada entre membros dessa organização e de outras – como é habitual em Timor – mas eu pessoalmente não tenho conhecimento de situações em que o Korka tenha agido como uma milícia ou aparecido enquanto estrutura nos conflitos dos últimos meses.

As organizações de artes marciais, enquanto estruturas organizadas a nível nacional, não tiveram um papel relevante no aparecimento e desenvolvimento da crise, nem na violência que esta trouxe. A violência de rua é baseada primordialmente na discriminação recente entre gente de lorosa’e e de loromonu, e os episódios de feridos ou mortos entre estilos de artes marciais não são uma coisa nova causada pela crise, mas sim a continuação de inimizades antigas que encontram na presente tensão social (e clima de impunidade) um espaço adequado para a sua actualização. As organizações de artes marciais não estão implantadas no território por zonas geográficas ou grupos etno-linguísticos. A PSHT, por exemplo, tem grupos de treino espalhados e implantados por todos os distritos de Timor-Leste (olhe à sua volta, procure grafítis que digam “SH” ou “Terate” ou com o desenho de um coração com raios à volta), e não está de maneira nenhuma partidarizada (fazem parte da organização pessoas de todos os quadrantes políticos e sociais timorenses, da Fretilin, da oposição e apartidários). A ideia de que a PSHT enquanto organização pudesse ter alguma coisa a ver com a promoção do divisionismo geográfico em Timor é completamente ridícula, os “irmãos” que dela fazem parte acreditam que devem ser solidários entre si e que sofrerão uma retaliação sobrenatural (do tipo ficar gravemente doente, p.ex.) se fizerem mal a outro “irmão” (saudara), independentemente do lugar do país (ou do mundo) onde ele nasceu.

Tavez a única organização de artes marciais que pudesse ser caracterizada como tendo um pendor mais regional fosse precisamente o Korka, embora também aí haja membros das várias zonas do país, porque a referência a “Rai Klaran” remete para as montanhas da região central de Timor-Leste, em volta do Tata Mai Lau, e porque se diz que o estilo nasceu em Ainaro. Mas não me consta que tenha havido durante o seu desenvolvimento nenhuma espécie de discriminação dos candidatos a praticantes (o FCP em Portugal é um clube do Norte mas há portistas e jogadores do Porto que são do Sul...). São outras as razões porque aparecem insígnias das organizações de artes marciais nas situações de violência. Estes sistemas tradicionais de combate têm as suas escolas espalhadas pelos bairros, em pátios, quintais e clareiras; quando a discriminação entre gente de leste e de oeste ficou ao rubro, os que eram o grupo em minoria no bairro onde moravam fugiram ou foram expulsos, de forma que muitos bairros ficaram só com o grupo maioritário. Nos confrontos frequentes que houve nos últimos meses os grupos de prática de artes marciais que treinam em cada bairro colocaram-se naturalmente na linha da frente da “protecção do bairro”, daí que apareçam os seus símbolos e os seus membros nas cenas de pancadaria. E quando há algum ferido ou morto o “espírito de corpo” torna-se ainda mais forte no grupo. Há dias as imagens no telejornal da RTTL do funeral de um membro dos Kera Sakti (a quem os familiares enlutados diziam que tinha sido decepada a cabeça depois de ter desaparecido a caminho da universidade em que se ia inscrever) mostravam muitos jovens a acompanhar a cerimónia vestidos com o uniforme deste estilo de kung fu. Há uns meses, também no telejornal local, numa reportagem sobre armamento apreendido pelas forças internacionais via-se na coronha de uma das armas o desenho das insígnias da PSHT. Antes que os malucos azuis comecem a disparatar a gritar “conspiração!” é bom esclarecer que há muitos “irmãos” praticantes de Setia Hati quer na PNTL quer nas FDTL, e que houve vários lugares em Díli em que, quando em 25 de Maio a tropa atacou o quartel da PNTL, os polícias que aí estavam de serviço despiram a farda e abandonaram as armas que tinham, para poderam fugir incógnitos. Seria absurdo querer tirar ilações sobre “conspirações” a partir de um desenho feito por um miúdo qualquer. No excelente documentário de Carmela Baranowska, "Scenes from an occupation", sobre o período de violência das milícias antes do referendo de 1999, também há um jovem activista do CNRT com uma camisola de membro da PSHT. A Mocidade Portuguesa, uma organização controlada ideologicamente pelo Estado Novo de Salazar, ensinava judo em Timor, porém seria estúpido dizer que o judo e o Kodokan são salazaristas; o Presidente russo Vladimir Putin é um judoca conhecido, seria incorrecto considerar que isso é a mesma coisa que dizer que o Judo está partidarizado na Rússia.

Em Portugal no tempo em que o jogo do pau era popular como as artes marciais aqui agora

Como sempre que se fala em violência em Timor aparecem uns quantos malais iluminados a sentir-se superiores por virem de países onde “nunca há porrada e toda a gente vive numa harmonia social perfeita” (antes fosse!), é bom lembrar pelo menos como eram as coisas há uns tempos nessas terras. Na Austrália havia caça organizada ao aborígene. Em Portugal era assim há umas décadas:

Podemos dizer o mesmo – mas com mais certeza – das manifestações de violência que, por volta dos anos 20 e 30, acompanhavam geralmente as romarias e, mais concretamente, delas faziam parte ritual.
Não nos referimos só às disputas entre jovens que podem ter origem em rivalidades amorosas, sobretudo quando os rivais pertencem a grupos territoriais diferentes (717), nem às frequentes brigas provocadas pelo vinho (718). Eram outrora comuns e hoje não são raras (719). Referimo-nos, sim, a verdadeiras guerras entre aldeias, que explodiam, quase sistematicamente, no decurso das romarias e suficientemente recentes para que os velhos se lembrem de nelas terem participado e os mais jovens de a elas terem assistido. Se os velhos que entrevistámos são pouco loquazes relativamente aos aspectos sexuais da festa no tempo da sua juventude, os seus testemunhos são, pelo contrário, constantes e explícitos e as emoções ainda bastante vivas no que diz respeito a estas batalhas, permitindo-nos assim considerá-las como parte integrante da romaria. O pároco de Baçal relata fielmente alguns exemplos do fim do século XIX e princípios do século XX: alguns duraram um dia e uma noite, outros saldaram-se por mortos e dezenas de feridos (720). O pároco de Foz Côa mostra a inserção ritual e o desenrolar esperado e estereotipado destas batalhas na romaria da sua paróquia, até uma época mais recente. A naturalidade com que refere a continuação jovial do arraial, imediatamente após a separação dos adversários pela polícia e o transporte dos feridos (ou eventualmente dos mortos), mostra bem o carácter inelutável e sistemático desta fase da peregrinação (721). De alguma forma também este sangue fazia parte da festa.
(...)
As descrições detalhadas que recolhemos directamente dos actores de outrora centram-se na rivalidade entre aldeias (722). Antigas discórdias por vezes não resolvidas: «Discutiremos isso na romaria», velhos ressentimentos herdados de outra geração e que determinam uma agressividade latente, solidariedade entre os jovens «que começaram», ou então, muito simplesmente, recusa de aceitar uma humilhação ou uma injúria imediata... todos estes motivos podem conjugar-se – e ligar-se em torno de uma fatalidade própria da romaria – num fundo de hostilidade e de alianças tradicionais de que já não se sabe a origem. (...) Uma oração de joelhos, depois, agitando ameaçadoramente os cajados, um grito: «Viva Tinalhas!» (...) E era então que frequentemente estalava a briga. Entre homens. A pau e pedra. (...) Extremavam-se os campos, sempre os mesmos: Salgueiros e Póvoa de um lado, Juncal, Freixial e Tinalhas do outro (724).
(...)
Os antigos combatentes estão de acordo acerca dos factores desta evolução que puseram termo às guerras de aldeias: a escola, a Guarda Nacional [Republicana], os sermões do pároco «quando ele é bom...». “ in Pierre Sanchis – Arraial: Festa de um Povo – as romarias portuguesas. Lisboa, Publicações D. Quixote, 1992, 2ªed, p. 175-177

Ou ainda:
Ernesto Veiga de Oliveira - Festividades Cíclicas em Portugal. Lisboa, Publicações D. Quixote, 1984, pp.323-324 (Citado em O jogo-do-pau como representação de estatuto e hierarquia nas sociedades tradicionais): “E era o «varrer» da feira ou do terreiro, refregas épicas, verdadeiras lutas campais, de paus que cruzavam no ar, no furor das pancadas, num jogo largo de feira ou «varrimento» (...), entre nuvens de pó, no meio da gritaria das mulheres que fugiam em todas as direcções”.

O assunto também foi tratado por autores de ficção que retratavam nos seus romances a sociedade daquele tempo. Transcrevem-se de seguida alguns excertos de Terras do Demo [ Aquilino RIBEIRO - Terras do Demo. Lisboa, Círculo de Leitores, 1983] :

“(...) -Eh, rapaziada da Seitosa - disse ele -, então que febre vos fazem as vacas?
-Ainda aí apareces, filho de sete curtas!? - increpou o Zé Narciso. - Vais pagar o descaramento...
E à mão tente despediu-lhe o lodo à nuca. O Brás aparou a pancada no ombro e respondeu-lhe com uma chuçada valente do sombreiro à arca do peito.
O outro pulou e, trás, trás, só deixou de bater pela cabeça, pelos braços, pelo corpo todo, quando o viu estrumado por terra, a roncar.
O Espadagão vinha com uma enxada para lhe britar a cabeça, mas o Cláudio vendeiro deitou-lhe o gadanho e o golpe foi quebrar-se nas costelas:
- Conho, em homem no chão não se dá! (...) [pág. 134]

Passavam maltas, de varapau a estreloiçar contra varapau, varrendo nas arrecuas do batuque o terreiro coalhado de gentiaga: Viva Lamosa! (...) [pág. 136]

Entre eles nem ficava chão para cair um alfinete. E por entre estes e as vareiras, as maltas e ranchos cavalavam. Lá rompia Granjal de lodo no ar, tau-tau, viva a rusga! (...)
Aí disparava um cavaleiro, todo farófia, chapéu de aba larga, pau de choupa entalado debaixo da perna:
- Olá, gentes, abram passagem!
Bem arreada besta, crinas rentes, franjas na retranca, rifadora por de mais. O ar dele era rebentio, com a pinta de rico, e o poviléu apartava-se à banda. Mas lá desembocava outra malta:
- Viva Tabosa!
- Viva!
- Viva até que morra!
E arremetia por ali dentro, aos safanões, ó cetrás, em borborinhos de poeira, num zafarrancho de mil demónios. (...) [pág. 241]

- Foge! Foge! - exclamou a Zabana para Glorinhas diante dum roldão de caceteiros em enovelada correria.
Eram as maltas do Granjal e da Vila da Ponte que se acometiam, naquela sua inveterada rixa de povos fronteiriços e forçudos. Emborcando tarimbas do negócio e trilhando os dorminhões, acossado pelo estreloiçar dos paus, o poviléu varreu às bandas.
Glorinhas e a Zabana meteram para a porta do santuário, em que uma onda medrosa se atropelava. A espaldas delas, retiniam pragas, gemidos e gritos de aqui-d’el-rei. Mas acudia a tropa e os desordeiros tresmalhavam a pés de cavalo. Curioso, o povo refluía sobre o lugar da refrega, que durara o tempo dum credo. Escabujava no chão homem ferido, se não morto, e vozes de mulher gemiam, testemunhando a justiça do céu e da terra. (...) [pág. 257]

Se nas primeiras décadas do séc. XX houvesse malucos azuis e um blog “Portugal-Online” ser-nos-ia naturalmente aí explicado que a cacetada da velha que havia nas aldeias portuguesas existia precisamente por causa de uma conspiração organizada pelos espanhóis, pelo Presidente Bernardino Machado, pelos monárquicos e pela Nossa Senhora de Fátima.

Defensores do bairro

Disseram-me (não sei se é verdade, porque não fui verificar pessoalmente) que no Bairro de Bemôri os velhos continuam a jogar às cartas com os vizinhos como antigamente sem se preocuparem com a origem geográfica de cada um, e que os jovens da área sempre estiveram unidos para defender o bairro no tempo em que ainda havia o caos nas ruas. Talvez seja por isso que o lugar tem a reputação de ser um dos mais calmos de Díli. Muitos dos bairros mais problemáticos são precisamente aqueles de onde parte da população foi escorraçada por ter nascido noutra metade do país. Muitos dos jovens apanhados em zaragatas pelas forças internacionais desculpam-se dizendo que estavam só a defender o bairro. Eu sou céptico em relação aos jovens que se juntam dizendo que estão a defender-se de ataques exteriores se no bairro a que eles pertencem as casas tiverem as paredes cheias de grafítis racistas e xenófobos. Porque esses comentários são escritos precisamente pelos jovens do bairro. Há inclusivamente uma pressão intensa sobre os jovens sossegados que não se querem meter em conflitos para virem também para a rua andar à porrada, em vez de chamarem a polícia e ficarem quietos em casa – os rufias e arruaceiros de cada bairro são nessas situações promovidos de repente à categoria de heróis vigilantes. Os polícias e militares internacionais têm endurecido o tom de voz nos apelos à população, explicando que qualquer pessoa apanhada num cenário de conflito na posse de flechas de Amboíno (rama-Ambon), lanças e, claro, armas de fogo, será imediatamente presa – como explicava em tétum na RTTL o simpático militar australiano porta-voz da tropa do país dele, com certeza ninguém pensa ir caçar nas ruas da capital. É que se a catana é aqui uma ferramenta multi-usos que existe em todas as casas as flechas de Amboino são armas perversas de destruição que não têm outra utilidade que não seja fazer mal às pessoas.

Até há cerca de uma semana quase todos os dias havia pedrada entre dois grupos de jovens, na estrada para Comoro, um de cada lado da via, na zona perto do mercado. Quando os rapazes estavam mais entusiasmados tínhamos que esperar um bocado ali parados ou ir por um caminho alternativo, quando eles estavam mais bem dispostos e as pedradas eram só para para não perder a prática, eles paravam de atirar pedras uns aos outros e faziam-nos sinal para passarmos. Há um ou dois meses, em dois seguidos, tive oportunidade de assistir de um edifício alto a confrontos na zona de Caicôli, envolvendo muitas dezenas de jovens – assim que alguém começava a bater num ferro a dar o alarme via-se os miúdos (e miúdas!) a correr das casas e quintais para a estrada apanhando pedras, paus, canos de ferro, etc, e depois avançavam e recuavam enfrentando o outro grupo, no meio de gritos e risadas. Alguns e algumas não teriam mais de doze anos. Um que levou uma pedrada numa perna foi gozado pelos colegas que estavam ao lado dele. Fez-me lembrar das “guerras de torrões de areia” que fazia às vezes com os meus amigos quando era criança. Nem sempre os confrontos são assim, alguns são bastante mais graves.

Em Timor-Leste há uma cultura de impunidade, está espalhada na sociedade a ideia de que os que cometem crimes não terão de responder por eles num tribunal. Isso é desde logo uma herança do tempo da ocupação indonésia, e também da facilidade com que os organizadores da violência de 1999 escaparam à justiça devido à necessidade de o novo Estado manter boas relações com a Indonésia. A Igreja Católica foi inexcedível no apoio aos deslocados da crise desde o primeiro momento e está a ter actualmente um papel extremamente positivo nos esforços de pacificação das comunidades, mas na altura da manifestação da Igreja contra o Governo em 2005 – quando muitos manifestantes se fartaram de usar slogans e cartazes com mensagens racistas e de intolerância religiosa – perdeu uma boa oportunidade de lançar uma campanha de educação para a tolerância a nível nacional. Quando numa noite nessa altura dois portugueses e um polícia foram sequestrados na residência do Bispo de Díli e espancados, o Padre Maubere apareceu na televisão a dizer que era normal que os jovens tivessem tido tal atitude porque estavam nervosos por as suas reivindicações não serem ouvidas. Que eu saiba não houve ninguém julgado e condenado por rapto e tortura na sequência desse caso. Em 4 de Dezembro de 2002 houve confrontos graves e muita destruição na cidade de Díli, os culpados também nunca foram julgados e condenados. Há quem faça apelos à violência nos jornais sem qualquer consequência.

Apesar de tudo a situação tem vindo a melhorar francamente, já há esquadras permanentes da polícia da ONU em alguns lugares de Díli, os polícias já andam por aí a fazer patrulhas a pé e acompanhados de agentes da PNTL... Há diariamente na RTTL um espaço de antena para a UNPOL e os militares australianos onde se comenta a lista de casos de polícia do dia (que têm vindo a diminuir), para que a população seja informada com objectividade sobre as ocorrências relativas a problemas de segurança, em vez de ouvir os boatos que por cá correm (e o tom alarmista de certos blogues que dizem que “Eles andem aí!!”). Continua no entanto a existir um clima de medo e de suspeição mútua no seio das comunidades. Algumas acções de criminosos xenófobos durante o último mês, como entrar numa microlete com uma faca à procura de gente de leste, ou esperar no caminho de ida para uma escola e mandar as crianças nascidas no oriente voltarem para casa, reforçaram esses receios. Em Díli não é preciso fazer uma coisa dessas muitas vezes, basta um único incidente para que no dia seguinte toda a gente fale disso e vá “acrescentando um ponto”. Também já há menos deslocados nos campos, mas muitos dos que aí estão continuam com medo não do “lobo mau” mas dos próprios vizinhos.

Nas ruelas interiores dos bairros continua a haver grupos de moços que se sentam em convívio à noite, às vezes com um jerrican de vinho de palma ou aguardente para animar os espíritos. Já antes se fazia, e tocava-se viola e cantavam-se umas cantigas; agora contam-se histórias de valentia - real ou de fanfarronice - contra “os outros”, a UNPOL em geral, a GNR... Não acredito que os australianos estejam cá só pelos lindos olhos dos timorenses, naturalmente têm a sua própria agenda. Mas o que não ajuda nada para a resolução da situação é fomentar os receios do povo com histórias sobre “bichos-papões”, como faz o “Timor-Online”, em vez de apelar a que as comunidades deixem de seguir as maçãs podres que existem no seu seio, e a que tomem a paz nas suas próprias mãos. É preciso dizer que o António, ou Manuel, ou Zé, que andem com uma catana a ameaçar pessoas são criminosos, no lugar de dizer que são sempre outros os maus.