quarta-feira, agosto 05, 2015

A espera



A data prevista está ultrapassada. Vamos à consulta já com a tralha toda no carro, para o caso de ser necessário ficar já internada. É de facto assim, e dirigimo-nos então para a maternidade, na outra ponta do hospital. A Mana Di vai depois lá ter. De ambos os lados da sala de partos, a todo o comprimento, há divisões, feitas com cortinas, onde acontecem os partos, com duas parturientes por divisão. Eu fico fora da sala de partos, os homens não podem permanecer, só podem entrar e sair, para verem o seu filho e mulher depois do nascimento. As parturientes levam uma familiar ou amiga para as acompanhar durante a sua provação. Cá fora famílias sentam-se no relvado, como nos piqueniques do 1º de maio da minha infância, mas aqui não há risadas e animação. As mulheres sentam-se juntas, falam em sussurros com o ar entendido de veteranas, com o respeito solidário de quem já lutou muitas batalhas, algumas terão talvez já perdido algumas. Os homens, de aspeto esgazeado, ficam na maioria calados. Há um grupo de militares das FDTL, vários de camuflado, outros à paisana, provavelmente um terá a mulher lá dentro e os restantes fazem companhia ao camarada. Os homens, em geral, parecem perdidos ali, soldados de retaguarda que da janela do seu escritório veem partir para uma incursão perigosa atrás das linhas inimigas um pelotão de tropas especiais, admirando de longe com apreensão um tipo de heroísmo que lhes está vedado. É só para mulheres, que são o sexo forte. Há uma estátua da Nossa Senhora de Fátima no hall de entrada, de vez em quando vai alguém lá que lhe toca e se persigna, em oração silenciosa. De resto, independentemente das religiões ou falta delas, todos compreendem intuitivamente que aqui é território sagrado, um espaço onde é mais fina a linha que divide a vida da tragédia. Timor-Leste conseguiu progressos importantes nos últimos anos nesta área, mas ainda é altíssima a taxa de mortalidade de mães e bebés. Só as crianças que por ali brincam permanecem alheadas do drama – a maravilhosa inocência da infância.

Há um telheiro cá fora, à porta da maternidade, com bastantes cadeiras, é a sala de espera. Tento concentrar-me nos passarinhos que cantam nas árvores que rodeiam o edifício e ignorar os lamentos de dor que chegam lá de dentro e os gritos estridentes de um grupo de equivalentes indonésios do João Paião na televisão da sala de espera. Vejo famílias que partem, passam com um recém-nascido nos braços, as suas trouxas e um balde (que pode ter roupas sujas, ou a placenta para enterrar ou pendurar numa árvore, conforme os costumes). A mulher combalida, de sorriso cansado, anda devagar. Em muitos casos, as suas provações não terminaram. A tradição manda que a mulher que deu à luz seja escaldada frequentemente no corpo com água quentíssima e que não lave a cabeça durante quarenta dias, sofrendo estoicamente a caspa e a gordura e os piolhos. Para boa parte das famílias a tradição ainda é o que era.

De vez em quando uma maca de rodas transportando uma mulher sai da maternidade e entra pelos corredores resguardados com telheiros que, por entre as zonas de relva, levam a outros edifícios. Creio que vão para as cesarianas, realizadas noutro local. Um jardineiro desenrolou uma mangueira que atravessa o primeiro destes corredores e todas as macas têm de dar um saltinho à força de braços.

Minutos depois das duas da tarde, a Mana Di vem-me chamar. A minha filha nasceu. Ela e a mãe estão bem. Correu tudo bem, parto normal como os dois mais velhos, por baixo do seu ar pequenino e meigo a minha mulher é uma Super-Mulher discreta. Agora já posso entrar. Vou pegar na minha menina ao colo, falar com a minha mulher. O alívio e a felicidade misturam-se, é como se me tirassem um peso de cima. Entretanto é preciso sair dali, há outra senhora no mesmo cubículo à espera de dar à luz, fico a aguardar no hall que elas sejam transferidas para um dos quartos de permanência pós-parto.  

Enquanto por ali espero, um segurança aparece a berrar lá fora por um altifalante que a hora da visita já acabou. A sério! Com um altifalante! Com apenas uma parede a separá-lo de umas duas dúzias de mulheres em pleno trabalho de parto! Repetiu a sua cantilena sem parar durante uns dez minutos: “a visita já acabou, as pessoas que vieram de visita têm que desaparecer da sala de espera, há gente que anda aqui a fumar, até há mulheres que andam aqui a fumar, a visita já acabou, etc, etc.”

No quarto do pós-parto o ambiente é muito mais descontraído. Mães e parentes conversam comparando experiências, umas tiveram uma boa hora, outras tiveram uma hora não tão boa, mas o pior já passou. A Fernanda e a Cármina dormem lá a primeira noite, acompanhadas pela Mana Di. No dia seguinte de manhã ainda tenho oportunidade de ouvir, da porta, parte do sermão da profissional de saúde que prega – sabendo que em muitos casos é em vão – contra os aspetos mais nefastos da tradição, dando bons conselhos às mães. A minha mulher e filha têm alta pelas dez da manhã.       

É a nossa vez de partir, fazendo o cortejo feliz de celebração da vida.


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