domingo, dezembro 21, 2008

Os malais têm memória de passarinho

É sempre perigoso querer medir inteligências, à maneira daquela corrente da psicologia estadunidense obcecada com QIs. Lembro-me de quando andava na faculdade ter sido cobaia de colegas meus, estudantes de psicologia, que andavam a participar nos esforços dos professores deles para adaptar os testes de QI para a realidade portuguesa. O problema é que os testes desse género medem competências específicas, e um lavrador lá da minha terra pode ter um péssimo resultado neles mas ter por outro lado capacidades e conhecimentos, ligados ao seu labor de amanhar a terra para nela semear a vida, que os doutos psicólogos nem sabem que existem.

Um texto recente do jornalista/escritor Pedro Rosa Mendes que deu muito que falar mencionava a existência de uma geração de timorenses que “chegou à idade adulta e ao mercado de trabalho sem muitas vezes conhecer conceitos como a lei da gravidade, o fuso horário ou as formas geométricas”. Sorri quando li isto no artigo, recordando os seis anos em que dei aulas na universidade em Timor e as muitas vezes em que expliquei nas aulas conceitos básicos, incluindo exercícios como “Se a estátua do Cristo-Rei fica a oito quilómetros daqui, isso significa uma distância de quantos metros?” ou “Se a altura da Maria é cento e cinquenta centímetros, quantos metros mede a Maria?” (os alunos que fizeram a escola primária no tempo colonial português – mesmo os que revelavam muitas dificuldades nas matérias leccionadas nas diversas cadeiras do curso – não tinham normalmente qualquer dificuldade em responder a isto, bem ao contrário de muitos jovens). Escrevi neste blogue em diversas ocasiões textos sobre a necessidade de preparar programas e currículos pensados a partir da realidade local, e não num qualquer gabinete distante por pessoas que sonham com um público-alvo que não existe. Mas não é disso que quero falar agora. O tema de que me ocupo aqui é a existência de algumas competências que os timorenses têm na sua esmagadora maioria e que deixam atónitos os malais que por cá andam. Uma delas é um refinadíssimo sentido de orientação. Todo o timorense sabe sempre para que lado está o mar e qual é a direcção para as montanhas. Daí que o seu sistema de coordenadas geográficas de uso quotidiano seja diferente do nosso. Enquanto o meu limitado cérebro só consegue computar direcções como ir em frente e virar à esquerda ou à direita, os timorenses dão habitualmente indicações como “sa’e” e “tun” (“subir” e “descer”). Isto é complicado de processar quando vou de motorizada com a minha mulher, seguindo as instruções dela para irmos a casa de alguma amiga, e todos os caminhos possíveis no cruzamento são completamente planos!...

Uma outra capacidade que os timorenses em geral têm extremamente desenvolvida é a memória para genealogias complexas, e para os rostos associados a elas. Vindo do ocidente onde, cada vez mais, família significa a família nuclear com poucas caras, fico com um nó no cérebro de cada vez que tento compreender todos os laços de parentesco da família alargada que algum familiar ou amigo me tenta pacientemente explicar. Uma das primeiras coisas que duas pessoas fazem aqui quando se encontram pela primeira vez é começar a explicar áreas geográficas de origem ou de ramificação das respectivas famílias, posicionando-se assim na complicada teia de parentescos e alianças que ocupa um papel central na forma como os timorenses se vêem no mundo. Tudo coisas demasiado complexas para malais, que têm memória de passarinho.

5 comentários:

Margarida Azevedo disse...

João Paulo,

espero que estejas bem assim como família e amigos.

Espero que não te importes mas vou reencaminhar este teu texto. E colocar hiperligação no uma Lulik blogue (algo em contrário, é só dizeres).

abraço,
M.

Anónimo disse...

Sempre defendi que Timor é dos Timorenses e que, assim sendo, há que respeitar a terra e os povos que nela vivem, as suas culturas específicas.

Isto é uma coisa.

Outra bem diferente é fingir que "não sei quê". Por exemplo, fingir, que, "ah, não sei quê, eu dei aulas no pré-secundário em Timor" (ou no Básico, ou mesmo no universitário, para o caso é indiferente). Não. Em Timor, não há disso de "pré-secundário". Pelo menos, em termos comparativos (ou mesmo absolutos), não há que misturar alhos com bugalhos.
Os meus alunos do "pré-secundário", em Bogoró, em Maubara, não compreendiam de forma alguma conceitos como o movimento aparente do Sol ou a simples contagem do tempo. Certa vez, espetei uma estaca no chão e tentei explicar-lhes, traçando os riscos da sombra no chão, de hora a hora, como se media a passagem do tempo. Apenas obtive sorrisos, risos, gargalhadas. Duvido de que algum deles tenha sequer vislumbrado qual o sentido daquilo que para eles não passava de evidente e hilariante palhaçada com que o seu professor "malai" resolvera presenteá-los.
Ninguém está a falar de QI; onde diabo viu isso, no artigo de Pedro Rosa?
Eu também não sei matar o búfalo com uma lança, e isso não faz de mim um perfeito ignorante, ao pé de qualquer timorense.
Nem acho, como "malai", que espetar um ferro no coração de um animal seja um distinto sinal de civilização, de elevação cultural ou sequer de extraordinário "Q.I."
E quem diz matança do búfalo, diz sentido de orientação, diz destreza para a luta corpo-a-corpo ou diz memória genealógica.
Mas o que raio tem uma coisa ver com a outra, afinal? O que é que esse tipo de competências tem a ver com o seu "limitado cérebro", usando as suas próprias palavras?

João Soares disse...

Olá João
O Bioterra deseja a si e restante família, e ao povo timorense que tanto amamos, um Natal pleno de afectos e Paz.
Um abraço

João Paulo Esperança disse...

Ao JPG,

Ó homem, não se amofine, nem leia no meu texto coisas que eu não escrevi. Vamos a alguns factos para esclarecer o seu confuso e angustiado cérebro (que certamente terá um QI de 500 ou até para cima, não estou a pôr isso em causa).

1. O meu texto não é sobre o artigo de Pedro Rosa Mendes (um tipo porreiro, por sinal, além de escritor e jornalista que admiro). Certamente um malai inteligente como você poderia ter compreendido isso. Apenas citei uma frase do texto dele porque vinha a propósito para ilustrar um ponto. Reparou certamente que o exemplo que dei a seguir continua o raciocínio de Pedro Rosa Mendes expresso nessa frase, tal como o seu exemplo sobre os relógios de sol. A verdade é que não se fazem omeletes sem ovos, e o sistema de ensino timorense têm carências muito graves. Isto para além de outros factores, como por exemplo as deficiências ao nível da nutrição nas cruciais fases do desenvolvimento precoce que frequentemente deixam as crianças marcadas para toda a vida.

2. Você diz que:

Nem acho, como "malai", que espetar um ferro no coração de um animal seja um distinto sinal de civilização, de elevação cultural ou sequer de extraordinário "Q.I."

Pessoalmente não sou grande apreciador destas actividades que provocam sofrimento nos animais, embora tenha tido oportunidade ao longo da vida de participar na matança do porco em casa do meu avô aí em Portugal, segurando o animal enquanto lhe espetavam a faca. Os malais também matam animais, como certamente já terá tido ocasião de verificar. Suponho que você também não considera “um distinto sinal de civilização, de elevação cultural ou sequer de extraordinário Q.I.” espetar muitos ferros nas costas de um animal, como se faz na cultura do seu (nosso) país nas touradas, com presença e aplausos das elites culturais da nação, transmissão televisiva e muitos discursos sobre a celebração de uma tradição de séculos.

Sou eu que estou enganado ou haverá um certo tom de sobranceria nesse seu comentário? A civilização ocidental já terá ultrapassado essa fase primitiva de espetar ferros no coração dos búfalos, parece poder ler-se nas entrelinhas. Não se esqueça, por favor, em futuros comentários de comparar também o grau de civilização e de elevação cultural de um povo que alimenta o gado bovino (herbívoro) com carcaças industrialmente transformadas de animais mortos

[http://www.defra.gov.uk/animalh/bse/controls-eradication/causes.html].


3. E continua:

E quem diz matança do búfalo, diz sentido de orientação, diz destreza para a luta corpo-a-corpo ou diz memória genealógica.

Sendo professor terá certamente estudado diferentes teorias da pedagogia e da psicologia, e saberá portanto que há muito boa gente que considera os testes de QI obsoletos. Não me parece que seja preciso eu vir aqui “ensinar o Pai Nosso ao vigário”. Da mesma forma, também deveria saber que as competências da mente humana são plurais, e que é redutor querer pôr tudo no mesmo saco. Howard Gardner têm uma teoria famosa sobre isso. Se você der uma volta aí pelas feiras em Portugal vai certamente ter oportunidade de encontrar ciganos a vender roupa que são muito melhores no cálculo aritmético do que você com todo o seu QI, mesmo que possam não perceber os relógios de sol. Isso não lhes permitirá construir reactores nucleares ou descobrir a cura do cancro, mas permite-lhes fazer outras coisas necessárias ao seu trabalho.
Procurando um bocadinho só na Internet encontrei este excerto que poderá ser útil para o seu esclarecimento:

“As pessoas com altas capacidades ou com talentos excepcionais diferem dos outros indivíduos pelas potencialidades que apresentam e pelo elevado nível de execução e concretização de que são capazes nas suas áreas de interesse. Pode ser uma forma de inteligência que se apresenta bastante desenvolvida e estruturada (por exemplo: a lógica-matemática), uma alta habilidade (por exemplo: para a liderança) ou um talento artístico (por exemplo: a criação musical). Tradicionalmente chamam-se sobredotadas a estas pessoas mas o termo tende a ser substituído por "Indivíduo Portador de Alta Capacidade".” [http://www.academiadesobredotados.com/]

É-lhe assim tão difícil aceitar que grande parte dos timorenses possa ter capacidades mentais superiores às suas em certas áreas, como as da “inteligência visuo-espacial” e da “inteligência socio-interpessoal”?

Sebastião disse...

JP,
Desejo-vos, a ti e Família, um Feliz Natal e Próspero Ano Novo 2009.

Sebastião