
Ainda a praxe…
Cara leitora, imagina que vais na rua e um desconhecido te exige que lhe entregues o Bilhete de Identidade, que removas uma ou mais peças de roupa, que o deixes pintar-te toda a cara e pôr-te pasta de dentes no cabelo. Imagina que ele te diz que tu és pior que um verme, que te manda cantar canções com letras obscenas e que te faz deitar no chão enquanto um gajo que não conheces de lado nenhum faz flexões em cima de ti. Isso é… Bem, isso é agressão, assédio sexual, atentado contra o pudor, ou outras coisas inventariadas no código penal. Imagina agora que o tal desconhecido está vestido com capa e batina pretas. Isso é praxe!
A praxe não é coisa nova, os rituais de iniciação são velhos como a humanidade. Nas sociedades tradicionais a entrada na vida adulta é normalmente precedida de provas que podem assumir a forma de mutilações como a circuncisão e a excisão. Por cá as práticas foram mudando, mas quem nunca ouviu a geração dos nossos pais a dizer coisas como «não é homem quem nunca foi à tropa»? E o mundo militar é pródigo nestas coisas. As provas são tanto mais duras e os rituais mais elaborados e penosos quanto é restrito o acesso ao estado, grau ou instituição de que se quer fazer parte. Um instrutor de uma tropa de elite pergunta ao jovem recruta exausto e ofegante: «Você está cansado? Ai sim? Então faça lá mais trinta flexões… E agora, está cansado? Não? Ainda bem, nós queremos aqui homens de barba rija e com tomates. Venha de lá uma completa de cinquenta!...» Se o infeliz não faz o que lhe pedem é colocado fora do grupo, indigno de pertencer aos “eleitos”: «Então berre aí bem alto para os seus camaradas ouvirem que você é um paneleiro de merda que só presta para o “arre-macho”». Quem não se submete não pode ser um “iniciado”, um “veterano”, e é ameaçado com a ostracização. «Se não fores praxado, não vais fazer amigos na Faculdade».
Antigamente a praxe coimbrã era altamente ritualizada, quando ser estudante universitário era inacessível à maioria da população. O caloiro não podia andar na rua depois das sete, sob o risco de ser apanhado pelas trupes e ser mimoseado com penas como o cabelo rapado. Tinha também “protecções”, como o facto de estar acompanhado pelo pai ou pela mãe na ocasião, por exemplo, poupando assim ao vexame os familiares. A praxe tinha regras que os veteranos tinham também de seguir. A massificação do acesso à universidade, em vez de tornar obsoletos estes rituais, “apimbalhou-os”, pô-los ao nível da sociedade “Big Show Sic”. Entre a praxe desses tempos (a tal “tradição académica” de que eles falam) e a palhaçada actual há a mesma relação que existe entre o confessionário da aldeia dos avós (onde o pároco ameaçava com o fogo do Inferno quem não cumprisse as penitências todas) e o “Perdoa-me”, aquele programa de televisão execrável que era líder de audiências.
Também já defendi a praxe, mas depois pus-me a pensar, um hábito que se vai tornando cada vez mais raro nas nossas universidades. Que “integração” traz a “praxe”? Não há maneiras melhores de fazer amigos do que ser humilhado, ridicularizado, usado como um boneco masoquista nas mãos de sádicos ou de pessoas com problemas não-resolvidos ao nível da socialização ou da sexualidade? A preocupação com a dignidade do ser humano não pode começar aqui mesmo com os nossos colegas inexperientes, caloiros recém-chegados a este mundo que deveria ser do humanismo, da busca do conhecimento?
P.S. – Não tenho brincos no nariz, nas orelhas, nas sobrancelhas ou em qualquer outro lugar mais íntimo, nem tenho o cabelo verde, nem sou filiado ou simpatizante do Bloco de Esquerda. Evidentemente que não tenho nada – a não ser divergências ideológicas – contra quem é enquadrável nestas características, mas achei pertinente este esclarecimento porque tenho visto algumas mentalidades pequeninas a combater as ideias contra esta praxe com argumentos do género «eles dizem isso porque são radicais com o cabelo roxo».
João Paulo Tavares Esperança
Publicado no jornal “Fazedores de Letras” (da Associação de Estudantes da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa), nº30, Dez 99, p.5
No Instituto Piaget de Macedo de Cavaleiros a queixa de outra aluna (Ana Sofia Damião)passou "incólume" à justiça:
ResponderEliminar"a aluna consentiu nas praxes a que foi sujeita"
Assinou o Juiz de serviço.
De facto é notável como os nossos tribunais continuam a produzir sentenças "exemplares"! Entra-se como queixoso e sai-se como arguido! Notável!
Mas numa coisa este Juiz acertou: “não ofenderam a moral pública, nem chocaram a consciência ou sentido ético-jurídico da comunidade”
Este estado pútrido só é possível porque a generalidade da sociedade consente ou é cúmplice de estas práticas.
À Ana Sofia Damião e a todos aqueles/as que se atrevem a fazer a "via crucis" das vias legais, expondo as suas vivências privadas, a solidariedade de aqueles, infelizmente ainda poucos, que pensam que ensino superior representa também valores superiores, e não estes, que o tribunal cauciona.
Amílcar A., Bragança
http://anti-praxe.blogs.sapo.pt/
No dia da minha praxe fui considerada V.I.P...porque razão não sei...mas devido a algum civismo dos baptizantes não houveram situações de extrema.
ResponderEliminarWell...tirando o facto de ter entrado numa banheira horrível, de ter graxa na cara, e de ter soprado 10 preservativos ate rebenta-los na cara.
Resultado...ter acabado a faculdade sem ter baptizado ninguém(não me arrependo).
Nem cá vou contar o que se passou na faculdade de Veterinária...
Enfim, sorry a invasão..
Bjokas
TENTATIVAS PARA EXTINGUIR OU LIMTAR A PRAXE...
ResponderEliminarNa UTAD:
“actos e iniciativas de praxe académica só são considerados como tal quando realizados no campus académico ou nos espaços imediatamente adjacentes a instalações da universidade, sendo expressamente proibida a sua prática noutro lugar”.
"nenhum aluno é obrigado a participar dos actos e que estes “não podem prejudicar o normal funcionamento da universidade”.
O Conselho de Veteranos da UTAD considera, no entanto, que o documento está ferido de inconstitucionalidade
o venerável ancião Paulo Rosa Santos, considera que “o CV não foi tido nem achado para a elaboração destes regulamentos da praxe, que foram feitos sem o conhecimento e muito menos com o consentimento do CV
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Puro surrealismo!
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